© André Gomes |
A velha retórica filosófica poderá definir a alma como algo imaterial, inexistente para além de uma auto-consciência de valores éticos e morais erguidos por religiões impregnadas por paradigmas de orientação espiritual. E se enquanto vivos acreditamos que temos uma alma capaz de despoletar emoções e competente para distinguir o bem do mal, já haverá dúvidas sobre que caminho toma a mesma depois da morte. As religiões não se poupam a certezas. As doutrinas de cada uma assim o provam. A ciência dúvida. As filosofias especulam. No fim, o homem acreditará no que quiser, apesar das religiões serem as que melhor conseguem “materializar” o ser e a sua essência num “pacote” único.
O homem saberá melhor que ninguém a necessidade de exteriorizar emoções. A angústia tem e sempre teve um aperto singular na expressão da alma. No caso da música soul, e em especifico o embrião que foi o gospel, a manifestação religiosa tomou as rédias de uma expressividade individual que mais tarde se foi politizando. Da raiva, do amor, da necessidade de liberdade até a uma afirmação racial de princípios próprios, a música, que começou por ser entoada em campos de trabalho e depois generalizada em encontros religiosos, tornou-se no veículo por excelência de verbalização de revoltas individuais, de denúncias de opressão.
É historicamente inegável que muita da música contemporânea tenha nascido num caldeirão afro-americano onde o confronto descarado entre a angústia e uma alegre liberdade espiritual tenha sido o principal motor para a erecção de paradigmas fundamentais que ainda hoje subsistem na nesta cultura multiracial. Da interpretação da bíblia às primeiras entoações religiosas em vozearia black gospel music, das praise songs aos acordes blue note que inspiraram os blues, do ragtime do final do século XIX ao jazz, da miscelânea rhythm and blues às primeiras harmonias rock, do funk ao hip-hop, a matriz sonora afro-americana cresceu e evoluiu para além do bundo que dominava as choças da escravatura para um conjunto de linguagens suburbanas – hoje completamente refinadas.
A alma tomou forma como música bem para além das velhas teorias filosóficas. Ela tornou-se viva, consciente e material através de acordes instrumentais e vocalizações. Aliás é na voz que a alma se expressa. É a voz que formaliza o conceito soul, que constrói uma identidade estética que dá forma a emoções ora alegres ora tristes. É nela que se tornam transparentes alguns costumes seculares: a tradição religiosa e o respeito pelo núcleo familiar.
Com o evoluir das ultimas décadas, a música soul foi se caracterizado. De Sam Cooke a Ray Charles, de Little Richard a James Brown, da Stax Records – onde militaram Otis Redding ou Isaac Hayes – à concorrente Motown – onde cresceram vozes singulares como Marvin Gaye, as Supremes, os Temptations ou os Jackson 5 – a soul music cresceu e deu ao mundo alguma das mais tocantes músicas, algumas mesmo intemporais, sugerindo todas elas uma certa sensação de alívio e um prazer espiritual capaz de devolver luz às trevas.
Além de um evidente negócio para muitas corporações, há ainda alma na música soul, ainda há um coração que bate para além dos lucros. Mas mais importante, e talvez muito ignorado nos últimos anos, ainda existe uma capacidade de distanciar-se dos piores exemplos estilísticos do r&b – para não falar de uma propositada intenção das majors em confundir a música soul tradicional com a tradição mais abrangente de um r&b aberto aos mais disparatados estímulos. A música soul de cariz tradicional tem tido a sua evolução natural, a instrumentalização tornou-se mais eloquente, as electrónicas fizeram-se sentir. Mas se o termo tradicional se poderá aplicar mais a um tipo de escrita, a tradição também poderá ser posta à prova com a introdução de ideias capazes de estimular a criatividade dos seus autores, bem como entusiasmar quem aprecia um género que se estima pelo aparente conservadorismo da sua ideologia.
Apesar de nos últimos anos a soul andar perdida num labirinto criado pelo r&b brejeiro de Hollywood e por vezes ser refém de uma determinada imagem criada pela MTV, ainda surgem nomes fora do típico circuito – femininos, no caso que este artigo apresenta – interessantes o suficiente que, sem estarem presos ao eterno filão da Motown, da Stax ou Fame, criam com os mesmos sentimentos que moveram Gladys Knight, Aretha Franklin ou Carla Thomas e, numa aparente comunidade virtual, comungam interesses com vozes contemporâneas como Jill Scott, Erykah Badu, India.Arie, Meshell Ndegeocello.
Ayo e Joy Denalane são jovens e nasceram na Alemanha. Ambas vêm o mundo à sua maneira. São duas formas de interpretação. Dois tipos de formalidade soul em que ambas prestam homenagem aos clássicos e simultaneamente abrem a porta para um abrangência estilística que enriquece o cânone da soul no mundo. Eis os mais interessantes registos soul dos últimos tempos.
Ayo Joyful |
Joy Denalane Born & Raised 2007 NESOLA RECORDS +info http://www.joydenalane.com http://www.nesola.de |