SWR Barroselas Metalfest
Barroselas
22-24 Abr 2016
DIA 3 |
Dia Três
Estou sujo, roído de piolhos e os porcos quando olham para mim vomitam, disse nenhum punk. E também não há de o ter dito nenhum dos cãezinhos que esses mesmos punks levam ao festival, ignorando que os animais em questão não suportam ruídos tão extremos - pelo que o que faz falta em cada esquina não é um Salazar, mas um deputado do PAN. Enfim. O terceiro dia começou mais cedo, para dar tempo à despedida, arrancando com um bom concerto em modo noise rock dos 800 Gondomar, que na verdade são de Rio Tinto, e prosseguindo com a chafurdice kraut dos Hey Colossus, que se apresentaram em muito melhor forma do que aquela que os tinha levado ao Milhões de Festa do ano passado. Se os primeiros mais não conseguiram que uns esporádicos aplausos, os segundos terão conquistado certamente o público: é barulhento, é pesado, e é brutal. Não precisa de muito mais para vingar aqui.
Curiosamente, esses três adjectivos também se aplicam aos Valkyrja, que acabaram por sofrer do mesmo problema que os Marduk; demasiado previsíveis para o seu próprio bem. O black metal, por ora sempre interessante, aqui não foi mais que chatinho; e a violência, sempre agradável, teve auras de "mais do mesmo", uma violência que comparada com o que tinha já visto foi só uma briga entre miúdos da creche. Mas que importam os Valkyrja quando há Serrabulho? Não há palavras para descrever o festão potenciado por estes manos do grind. Ou talvez haja, e talvez essa palavra seja "genial". A rave party dos Serrabulho faz-se, ao início, com Darth Vader; e daí resvala para o techno azeiteiro e pornográfico, que faz com que se abra de pronto um circle pit onde as seguintes personagens coabitam alegremente: o Nemo, um alien, um tipo com chapéu de hélice em tronco nu, dois a segurar daquelas velas que soltam faíscas e os próprios membros da banda, quando para ali se atiravam, já depois de atirarem o recheio de duas almofadas para os cabelos dos incautos. Nós somos os Aborted e estamos aqui, caralho!, uma frase marcante num espectáculo que contou ainda com uma bruta invasão de palco (consta que este cedeu) e uma versão de "Territorial Pissings", dos Nirvana. Serrabulho é a melhor banda do mundo, porra!
Os Archgoat, que eram quiçá um dos nomes mais aguardados desta edição, pelo menos a julgar pela quantidade de gente séria que se colocou em frente ao palco, trouxeram consigo a banda-sonora de uma bíblia a arder - a mesma que alguém lá colocou às colunas, e que no final eu e o charmoso fotógrafo Bodyspace trouxemos para casa (aquela merda fede, Deus do céu). Para além do poderio avassalador do instrumental, destacou-se a voz, vinda directamente da fossa das Marianas para prestar tributo a Satanás. E porque é para isso que ela serviu, questiona-se a escolha dúbia de um ou dois atrasados mentais que, num concerto de black metal (e não foi este o único em que isso aconteceu), acham boa ideia subir ao palco e pedir ao público que se junte para um momentito ou outro de crowdsurf. A esses dedico o meu mais profundo ódio e nojo: o black metal não é para palhaçadas, filhos da puta. O que vale é que aquele espaço estava ocupado quase exclusivamente por trves... E lá tiveram os meninos do surf de descer desiludidos do palco. Mais desiludidos ficaram todos os presentes, com a duração do concerto: escassos quarenta minutos, o que potenciou algumas audíveis reclamações...
E depois vi Jucifer.
Até agora tenho falado do apelo de Barroselas para aqueles que fazem realmente parte desta tribo metálica, dos concertos que vi por lá de graus diversos de excelência e das minhas primeiras impressões sobre o festival em si, visto que a 19º edição constituía a minha estreia. Apetece largar tudo para trás, queimar as notas, as fotografias, apagar este texto e devolver a credencial para comprar um, quatro, trinta passes com atraso - porque o Metalfest merece, porque o Metalfest não me preparou para este concerto (e ainda bem!), porque o Metalfest escondeu o nome Jucifer entre os Archgoat e os Incantation, o nome-mãe que no palco secundário e ao longo de 50 minutos brotou da terra, brotou do sludge que brotou do vácuo que num piscar de olhos rebenta em infinitas constelações, Jucifer, assim mesmo, três curtas sílabas e um som monstro; 50 minutos, talvez menos, talvez mais, não sei, a memória já não aguenta e o corpo ainda se ressente. A 24 de Abril de 2016 eu vi Jucifer, eu olhei para aquele palco, para aqueles cabelos louros que esvoaçavam com o estardalhaço da guitarra, para aquele sorriso demoníaco que espreitava por entre os pratos e o choque rítmico, eu vi Jucifer: o concerto da minha vida. Em resposta, Jesus declarou: "Digo-lhe a verdade: Ninguém pode ver o Reino de Deus, se não nascer de novo", e eu peço perdão, meu Pai, peço-Te perdão por ter renegado o metal após a adolescência, perdoa-me o meu ódio e a minha indiferença e as roupas que eu despi pois eu voltei a abraçar a carne, beijei o Deus recôndito e permiti ao ferro que reentrasse no meu sangue. Porque eu vi Jucifer: uma barragem de noise filho-da-puta, colossal monstro que se ergueu como Adamastor perante marinheiros, besta altamente imprevisível onde cada variação em riff despoletava um novo e rasgado sorriso na minha face semi-escondida pelos óculos e pelo hoodie preto, um estado de violência pura que desfez o meu espírito pagão - há um Deus, e ele é preto como a ausência, e ele é demoníaco como a ideia milenar de inferno. Eu vi Jucifer e a partir de agora todos os concertos serão a eles equiparados. Eu vi Jucifer: o end result do metal enquanto género, o ponto zero do som - nada será tão pesado quanto isto, nunca nada será tão brutal, apaixonante, electrizante e absolutamente extraordinário como estes dois seres humanos que se passeiam pelo mundo a pregar a boa nova do ruído. Podem fechar o metal, senhoras e senhores. Podem fechar o metal. Não sou eu quem o diz: é Jucifer.
Nem um pacote de açúcar - porque o corpo tremia - nem uma nota pasma e entregue em mãos à guitarrista de Jucifer, que de pronto devolveu um abraço carinhoso e agradeceu, manteve em mim a vontade de assistir ao resto do festival, que uma vez mais só acabaria a altas horas sem afters que valessem assim tanto a pena. Mas o que restava do espírito vislumbrou o death dos Incantation, que conseguiu soar mesmo muito bem depois *daquilo*, e o doom dos Conan, um vómito subtil que ecoou por entre o ranger daquelas guitarras graves e fez a terra tremer um pouquito, réplica do que se havia passado mais de uma hora antes. Metemo-nos no carro e fomos estrada fora até à Correlhã, sem ouvir mais nada que não a sirena perdida na cóclea, por entre curvas a 120km/h e um mar de luzes brancas a acariciar um céu mitológico. E Barroselas é o berço de todos esses mitos, um lugar estranho, mas quente, onde a vida pode mudar num só acorde. É a personificação da vida em festival. É animalesco e espiritual num corpo só. É um festival do caralho, foda-se.
Estou sujo, roído de piolhos e os porcos quando olham para mim vomitam, disse nenhum punk. E também não há de o ter dito nenhum dos cãezinhos que esses mesmos punks levam ao festival, ignorando que os animais em questão não suportam ruídos tão extremos - pelo que o que faz falta em cada esquina não é um Salazar, mas um deputado do PAN. Enfim. O terceiro dia começou mais cedo, para dar tempo à despedida, arrancando com um bom concerto em modo noise rock dos 800 Gondomar, que na verdade são de Rio Tinto, e prosseguindo com a chafurdice kraut dos Hey Colossus, que se apresentaram em muito melhor forma do que aquela que os tinha levado ao Milhões de Festa do ano passado. Se os primeiros mais não conseguiram que uns esporádicos aplausos, os segundos terão conquistado certamente o público: é barulhento, é pesado, e é brutal. Não precisa de muito mais para vingar aqui.
Curiosamente, esses três adjectivos também se aplicam aos Valkyrja, que acabaram por sofrer do mesmo problema que os Marduk; demasiado previsíveis para o seu próprio bem. O black metal, por ora sempre interessante, aqui não foi mais que chatinho; e a violência, sempre agradável, teve auras de "mais do mesmo", uma violência que comparada com o que tinha já visto foi só uma briga entre miúdos da creche. Mas que importam os Valkyrja quando há Serrabulho? Não há palavras para descrever o festão potenciado por estes manos do grind. Ou talvez haja, e talvez essa palavra seja "genial". A rave party dos Serrabulho faz-se, ao início, com Darth Vader; e daí resvala para o techno azeiteiro e pornográfico, que faz com que se abra de pronto um circle pit onde as seguintes personagens coabitam alegremente: o Nemo, um alien, um tipo com chapéu de hélice em tronco nu, dois a segurar daquelas velas que soltam faíscas e os próprios membros da banda, quando para ali se atiravam, já depois de atirarem o recheio de duas almofadas para os cabelos dos incautos. Nós somos os Aborted e estamos aqui, caralho!, uma frase marcante num espectáculo que contou ainda com uma bruta invasão de palco (consta que este cedeu) e uma versão de "Territorial Pissings", dos Nirvana. Serrabulho é a melhor banda do mundo, porra!
Os Archgoat, que eram quiçá um dos nomes mais aguardados desta edição, pelo menos a julgar pela quantidade de gente séria que se colocou em frente ao palco, trouxeram consigo a banda-sonora de uma bíblia a arder - a mesma que alguém lá colocou às colunas, e que no final eu e o charmoso fotógrafo Bodyspace trouxemos para casa (aquela merda fede, Deus do céu). Para além do poderio avassalador do instrumental, destacou-se a voz, vinda directamente da fossa das Marianas para prestar tributo a Satanás. E porque é para isso que ela serviu, questiona-se a escolha dúbia de um ou dois atrasados mentais que, num concerto de black metal (e não foi este o único em que isso aconteceu), acham boa ideia subir ao palco e pedir ao público que se junte para um momentito ou outro de crowdsurf. A esses dedico o meu mais profundo ódio e nojo: o black metal não é para palhaçadas, filhos da puta. O que vale é que aquele espaço estava ocupado quase exclusivamente por trves... E lá tiveram os meninos do surf de descer desiludidos do palco. Mais desiludidos ficaram todos os presentes, com a duração do concerto: escassos quarenta minutos, o que potenciou algumas audíveis reclamações...
E depois vi Jucifer.
Até agora tenho falado do apelo de Barroselas para aqueles que fazem realmente parte desta tribo metálica, dos concertos que vi por lá de graus diversos de excelência e das minhas primeiras impressões sobre o festival em si, visto que a 19º edição constituía a minha estreia. Apetece largar tudo para trás, queimar as notas, as fotografias, apagar este texto e devolver a credencial para comprar um, quatro, trinta passes com atraso - porque o Metalfest merece, porque o Metalfest não me preparou para este concerto (e ainda bem!), porque o Metalfest escondeu o nome Jucifer entre os Archgoat e os Incantation, o nome-mãe que no palco secundário e ao longo de 50 minutos brotou da terra, brotou do sludge que brotou do vácuo que num piscar de olhos rebenta em infinitas constelações, Jucifer, assim mesmo, três curtas sílabas e um som monstro; 50 minutos, talvez menos, talvez mais, não sei, a memória já não aguenta e o corpo ainda se ressente. A 24 de Abril de 2016 eu vi Jucifer, eu olhei para aquele palco, para aqueles cabelos louros que esvoaçavam com o estardalhaço da guitarra, para aquele sorriso demoníaco que espreitava por entre os pratos e o choque rítmico, eu vi Jucifer: o concerto da minha vida. Em resposta, Jesus declarou: "Digo-lhe a verdade: Ninguém pode ver o Reino de Deus, se não nascer de novo", e eu peço perdão, meu Pai, peço-Te perdão por ter renegado o metal após a adolescência, perdoa-me o meu ódio e a minha indiferença e as roupas que eu despi pois eu voltei a abraçar a carne, beijei o Deus recôndito e permiti ao ferro que reentrasse no meu sangue. Porque eu vi Jucifer: uma barragem de noise filho-da-puta, colossal monstro que se ergueu como Adamastor perante marinheiros, besta altamente imprevisível onde cada variação em riff despoletava um novo e rasgado sorriso na minha face semi-escondida pelos óculos e pelo hoodie preto, um estado de violência pura que desfez o meu espírito pagão - há um Deus, e ele é preto como a ausência, e ele é demoníaco como a ideia milenar de inferno. Eu vi Jucifer e a partir de agora todos os concertos serão a eles equiparados. Eu vi Jucifer: o end result do metal enquanto género, o ponto zero do som - nada será tão pesado quanto isto, nunca nada será tão brutal, apaixonante, electrizante e absolutamente extraordinário como estes dois seres humanos que se passeiam pelo mundo a pregar a boa nova do ruído. Podem fechar o metal, senhoras e senhores. Podem fechar o metal. Não sou eu quem o diz: é Jucifer.
Nem um pacote de açúcar - porque o corpo tremia - nem uma nota pasma e entregue em mãos à guitarrista de Jucifer, que de pronto devolveu um abraço carinhoso e agradeceu, manteve em mim a vontade de assistir ao resto do festival, que uma vez mais só acabaria a altas horas sem afters que valessem assim tanto a pena. Mas o que restava do espírito vislumbrou o death dos Incantation, que conseguiu soar mesmo muito bem depois *daquilo*, e o doom dos Conan, um vómito subtil que ecoou por entre o ranger daquelas guitarras graves e fez a terra tremer um pouquito, réplica do que se havia passado mais de uma hora antes. Metemo-nos no carro e fomos estrada fora até à Correlhã, sem ouvir mais nada que não a sirena perdida na cóclea, por entre curvas a 120km/h e um mar de luzes brancas a acariciar um céu mitológico. E Barroselas é o berço de todos esses mitos, um lugar estranho, mas quente, onde a vida pode mudar num só acorde. É a personificação da vida em festival. É animalesco e espiritual num corpo só. É um festival do caralho, foda-se.
· 29 Abr 2016 · 00:19 ·
Paulo Cecíliopauloandrececilio@gmail.com
DIA 3 |