DISCOS
Complicado
Haunted
· 29 Jun 2005 · 08:00 ·
Complicado
Haunted
2005
Bor Land


Sítios oficiais:
- Complicado
- Bor Land
Complicado
Haunted
2005
Bor Land


Sítios oficiais:
- Complicado
- Bor Land
O país perdia-se em lágrimas a cada vez que Toy anunciava a hora de conhecer novos desenvolvimentos ao drama das gémeas que o destino quis ver afastadas até ao dia em que o horário nobre as uniu. Perante o vibrato inconfundível com que Toy cantava o “sentiiiiiiiir” que ditava o fim a “Olhos de Água” - o título do tema-genérico e da telenovela -, o público quase se sentia obrigado a ceder incondicional margem de susceptibilidade e paciência ao jardineiro conhecedor do segredo de família, grisalhos entraves ao desfecho previsível da intriga e a um débil processo de montagem que permite a uma única actriz desempenhar dois papéis diferentes numa mesma cena. Se tudo isso é pornografia, Haunted - o disco de estreia de Complicado - revela-se, à medida que o soalho fica gasto, um sublime espécime de erotismo, enquanto representação meramente sugestiva do que pode arriscar a banalidade e caricatura quando demasiado ampliado. Neste caso, a variedade de sentimentos percorridos ao longo de uma relação revelada apenas no seu enquadramento doméstico. Os restantes episódios – ocorridos além de quatro paredes - ficam a cargo da imaginação e perspicácia de cada um para adivinhar desfechos.

Por isso, Haunted funciona como um mecanismo aleatório de complementos ocultos, situações caseiras a que acedemos durante o seu pico de intensidade e as respectivas consequências directas ou a prazo. A partir do segundo andar da baixa portuense onde a totalidade do disco foi gravado, Miguel Gomes elabora um atlas sentimental que tem por coordenadas os filtros aplicados a algumas das vocalizações e na simplicidade das quatro pistas a escala ideal ao pacto desenvolvido com “a visita”, convidada a assistir aos reveses da vida conjugal em forma de alegorias confessionais.

E, tal como um episódio de Sete Palmos de Terra (um dos links de www.complicado.net aponta para a série) que começa em comunhão e termina em turbilhão ou vice-versa, também Haunted vive assombrado pela ameaça da instabilidade e incerteza empolgantes. Daí que “Tonight” não se acanhe na altura de reproduzir – numa inflamatória introdução blues que muito agradará aos fãs dos Gomez dos primeiros discos - a erupção do protagonista masculino prestes a dar o braço a torcer numa discussão e, logo de seguida, “Sad Summer in Mindelo” tudo resolva numa delico-doce (elogio) canção de embalar que não destoaria se inserida no reportório de Nicolai Dunger. Arquitectado à regra e esquadro de uma cada vez mais apurada estética Bor Land (o recorrente Paulo Miranda tratou da masterização), Haunted é um apartamento revestido de arte espontânea (“dois ou três acordes e nenhum refrão” serve de inspiração a isso mesmo), apontamentos lo-fi espalhados sobre camas por fazer e uma segunda superfície composta por ambiências extraídas às diversas divisões. Por afinidade temática, é a sequela lógica do brilhante (e tão mal estimado) Room Without a View dos Slamo.

Complicado será manter o CD num dos dois suportes apropriados para efeito. Isto porque vai ficando folgada a cartolina que no reverso oculta a planta do apartamento imaginário. É, de facto, complicado manter a curiosidade do voyeur afastada desses simbolismos recônditos e longe do leitor um disco que revela detalhes inéditos a cada vez que é revisitado.
Miguel Arsénio
migarsenio@yahoo.com
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