DISCOS
Beck
Modern Guilt
· 01 Set 2008 · 08:00 ·
Beck
Modern Guilt
2008
XL / Popstock


Sítios oficiais:
- Beck
- XL
- Popstock
Beck
Modern Guilt
2008
XL / Popstock


Sítios oficiais:
- Beck
- XL
- Popstock
O disco cinzento de Beck obtém essa cor através da desdramatização a cargo de um Danger Mouse, que, inevitavelmente, conhece bem os cantos das minas que cava.
Não é difícil imaginar a criatividade de Beck como uma Gotham City que, em situação de apuro, não se acanha de lançar sobre o céu o sinal luminoso que solicita, neste caso, a intervenção de Danger Mouse, o super-produtor conhecido pelos magníficos desenlaces que garante a elementos químicos ricos de gestão delicada. À sua maneira, a criatividade de Beck é um território assombrado por apogeus passados, por um Sea Change eloquentemente lírico, que aprisionou afectos sem oferecer lancha para regresso, por discos existentes apenas nos rumores, por tudo aquilo que foi e que dificilmente voltará a ser. Por sua vez, Danger Mouse deve grande parte da sua fama à capacidade de revitalizar corpos como que estagnados no tempo ou simplesmente subaproveitados: violou dogmas históricos ao fundir, num intermédio The Grey Album, o White Album dos Beatles e The Black Album do rapper trafulha Jay-Z, ofereceu proeminência à estridência de Cee-Lo, que bem merecia o êxito massivo alcançado com “Crazy” nos Gnarls Barkley, coloriu e incomodou o adormecimento do genial MF Doom com The Mouse and the Mask. O tamanho da luva de Danger Mouse assenta bem a um Beck avesso a duetos e a partilhar ribalta, mas disposto a confiar a voz aos que a trabalham ou reinventam, sem cortar com o passado ou descurar as hipóteses futuras (desde o tutor Calvin Johnson aos Dust Brothers). Beck prefere, enfim, a produção daqueles que o auxiliam a adivinhar a sua modernidade depois exposta em disco.

Modern Guilt funciona assim como um buddy movie - um Arma Mortífera, mas pouco - protagonizado por Beck, investigador perdido num labirinto existencial (ideia transparente no tema-título “Modern Guilt”), e Danger Mouse, o compincha permanentemente preparado para quebrar o peso de alguns situações com um tiro bem apontado ao humor e ao delírio nostálgico. Depois, são necessárias algumas escutas para entender que, muito provavelmente, Modern Guilt só escapou ao rumo amargo e dolente de Sea Change, porque a lupa, incidente no envelhecimento de Beck, serviu principalmente para destacar as suas referências musicais das décadas de 60 e de 70, e nem tanto para ampliar as suas rugas. De alguma forma, o presente disco soterra o fluxo de consciência do californiano com todo o tipo de travessuras psicadélicas, colhidas ao rock de estrada e à surf music, às quais se acrescentam combinações perfeitamente lúdicas de ritmo e instrumentos de teclas próprios da daisy age, conforme vivida em tempos pelos De La Soul e Jungle Brothers. Não há um momento de fragilidade lírica por parte de Beck sem um ou mais loops coloridos que lhes sirvam de escudo tonificante. É por essa razão que a pressão dos dias de “Walls” é servida como se fosse uma marcha de Mardi Gras transposta para Beirute (com o perfume orquestral de Zach Condon à espreita). Os pólos anulam-se mutuamente, e sobra apenas o cinzento.

E mesmo que o impacto de Modern Guilt, a curto prazo, não seja tão bombástico quanto o do principesco motim funk instalado em Midnite Vultures, o brilho de muitas das suas principais pepitas acaba por ser polido por um convívio insistente. Também “Missing”, terceiro passo seguro de Guero, demorava até entranhar por completo o seu transe carnavalesco apontado ao balouçar do ventre. Calcula-se que, por volta de 2010, as qualidades mais distintas das fabulosas “Orphans” (o equilíbrio de uma confecção alargada) ou “Chemtrails” (ressurreição temporária dos Beatles) possam ter conquistado lugares estáveis nos alinhamentos escolhidos por Beck. Pela mesma altura, é provável que os mesmos concertos procurem um final de vertigem graciosa em “Volcano” : faixa expectante, à deriva no mesmo mar de interrogações de Sea Change, prestes a deixar-se esmagar pelo céu de um coro harmonioso moldado à maneira grandiosa dos Electric Light Orchestra (reis do disco sound de dimensões cósmicas).

O mundo espera que Beck sofra, de disco para disco, as fusões do camaleão, mas o réptil acha-se no direito de gozar como entender as suas próprias estadias ao sol. Modern Guilt (e o sinal de exit inserido no seu livrete) pode até ser a forma mais agradável de dar a entender que chegou a hora de atirar ao mar o cofre com todos os discos de juventude, que, para frustração de alguns, nunca chegaram a acontecer. Beck encara com elegância, brilho pontual e ânimo suficiente esse complexo Macaulay Culkin que também o afecta. Contudo, the show must go on, e não há-de ser por culpa de Modern Guilt que isso deixará de acontecer.
Miguel Arsénio
migarsenio@yahoo.com
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