NĂŁo Ă© difĂcil imaginar a criatividade de Beck como uma Gotham City que, em situação de apuro, nĂŁo se acanha de lançar sobre o cĂ©u o sinal luminoso que solicita, neste caso, a intervenção de Danger Mouse, o super-produtor conhecido pelos magnĂficos desenlaces que garante a elementos quĂmicos ricos de gestĂŁo delicada. Ă€ sua maneira, a criatividade de Beck Ă© um territĂłrio assombrado por apogeus passados, por um Sea Change eloquentemente lĂrico, que aprisionou afectos sem oferecer lancha para regresso, por discos existentes apenas nos rumores, por tudo aquilo que foi e que dificilmente voltará a ser. Por sua vez, Danger Mouse deve grande parte da sua fama Ă capacidade de revitalizar corpos como que estagnados no tempo ou simplesmente subaproveitados: violou dogmas histĂłricos ao fundir, num intermĂ©dio The Grey Album, o White Album dos Beatles e The Black Album do rapper trafulha Jay-Z, ofereceu proeminĂŞncia Ă estridĂŞncia de Cee-Lo, que bem merecia o ĂŞxito massivo alcançado com “Crazy” nos Gnarls Barkley, coloriu e incomodou o adormecimento do genial MF Doom com The Mouse and the Mask. O tamanho da luva de Danger Mouse assenta bem a um Beck avesso a duetos e a partilhar ribalta, mas disposto a confiar a voz aos que a trabalham ou reinventam, sem cortar com o passado ou descurar as hipĂłteses futuras (desde o tutor Calvin Johnson aos Dust Brothers). Beck prefere, enfim, a produção daqueles que o auxiliam a adivinhar a sua modernidade depois exposta em disco.
Modern Guilt funciona assim como um buddy movie - um Arma MortĂfera, mas pouco - protagonizado por Beck, investigador perdido num labirinto existencial (ideia transparente no tema-tĂtulo “Modern Guilt”), e Danger Mouse, o compincha permanentemente preparado para quebrar o peso de alguns situações com um tiro bem apontado ao humor e ao delĂrio nostálgico. Depois, sĂŁo necessárias algumas escutas para entender que, muito provavelmente, Modern Guilt sĂł escapou ao rumo amargo e dolente de Sea Change, porque a lupa, incidente no envelhecimento de Beck, serviu principalmente para destacar as suas referĂŞncias musicais das dĂ©cadas de 60 e de 70, e nem tanto para ampliar as suas rugas. De alguma forma, o presente disco soterra o fluxo de consciĂŞncia do californiano com todo o tipo de travessuras psicadĂ©licas, colhidas ao rock de estrada e Ă surf music, Ă s quais se acrescentam combinações perfeitamente lĂşdicas de ritmo e instrumentos de teclas prĂłprios da daisy age, conforme vivida em tempos pelos De La Soul e Jungle Brothers. NĂŁo há um momento de fragilidade lĂrica por parte de Beck sem um ou mais loops coloridos que lhes sirvam de escudo tonificante. É por essa razĂŁo que a pressĂŁo dos dias de “Walls” Ă© servida como se fosse uma marcha de Mardi Gras transposta para Beirute (com o perfume orquestral de Zach Condon Ă espreita). Os pĂłlos anulam-se mutuamente, e sobra apenas o cinzento.
E mesmo que o impacto de Modern Guilt, a curto prazo, nĂŁo seja tĂŁo bombástico quanto o do principesco motim funk instalado em Midnite Vultures, o brilho de muitas das suas principais pepitas acaba por ser polido por um convĂvio insistente. TambĂ©m “Missing”, terceiro passo seguro de Guero, demorava atĂ© entranhar por completo o seu transe carnavalesco apontado ao balouçar do ventre. Calcula-se que, por volta de 2010, as qualidades mais distintas das fabulosas “Orphans” (o equilĂbrio de uma confecção alargada) ou “Chemtrails” (ressurreição temporária dos Beatles) possam ter conquistado lugares estáveis nos alinhamentos escolhidos por Beck. Pela mesma altura, Ă© provável que os mesmos concertos procurem um final de vertigem graciosa em “Volcano” : faixa expectante, Ă deriva no mesmo mar de interrogações de Sea Change, prestes a deixar-se esmagar pelo cĂ©u de um coro harmonioso moldado Ă maneira grandiosa dos Electric Light Orchestra (reis do disco sound de dimensões cĂłsmicas).
O mundo espera que Beck sofra, de disco para disco, as fusões do camaleão, mas o réptil acha-se no direito de gozar como entender as suas próprias estadias ao sol. Modern Guilt (e o sinal de exit inserido no seu livrete) pode até ser a forma mais agradável de dar a entender que chegou a hora de atirar ao mar o cofre com todos os discos de juventude, que, para frustração de alguns, nunca chegaram a acontecer. Beck encara com elegância, brilho pontual e ânimo suficiente esse complexo Macaulay Culkin que também o afecta. Contudo, the show must go on, e não há-de ser por culpa de Modern Guilt que isso deixará de acontecer.