Os Pixies voltaram a juntar-se. Muita gente não consegue encontrar as razões para tal coisa. As razões artísticas, pelo menos. "No shit, sherlock!", elas não existem. É óbvio que é pelo dinheiro. Não adicionam nada ao panorama da música. Nada, absolutamente nada. O problema, para essa gente, é o facto de os Pixies serem uma banda de culto, uma banda de culto que enche um recinto com 50 mil pessoas a cantar em uníssono. E o facto de a maior parte das pessoas ter menos de 21 anos - não ter idade para ver os Pixies quando primeiro andaram por cá.
© Luís Bento |
Por razões óbvias (tinha quatro anos na altura), é-me impossível comparar o que se passou ontem no 10º Festival Super Bock Super Rock (um festival com uma organização extremamente deficiente, muito mal planeado) com o que se passou há treze anos nos Coliseus. Posso, ainda assim, comparar com o que se passou na Aula Magna em 2001, aquando do concerto a solo de Frank Black. Não teve absolutamente nada a ver. Se em 2001 um ogre disforme passeava pela sua carreira a solo, bem como por temas da sua banda, em 2004 um ogre disforme passeava por temas da sua banda, acompanhado pela sua banda. E isso marca a diferença.
Nestes treze anos que se passaram, milhares de pessoas tiveram tempo de conhecer de trás para a frente toda a discografia dos Pixies. Tempo para se flagelar por não ter havido hipótese de vê-los enquanto estavam no activo, ou para lamentar o facto de nunca poderem ver os Pixies, em carne e osso, juntos em palco. Era inconcebível há três anos que os Pixies se voltassem a juntar, mas quando os rumores começaram a surgir, há mais ou menos um ano, uma réstia de esperança acendeu-se nos corações de todos aqueles que literalmente cresceram, musicalmente falando, a ouvi-los. A confirmação da vinda a Portugal, então, pôs um sorriso na cara de todos aqueles que esperaram a vida inteira por este momento. Um momento que, infelizmente, já se foi. E isto de um sorriso ser causado por uma banda com letras tão surreais, de sangue, extraterrestres, violações, incesto, entre muitas outras histórias trágicas de proporções bíblicas, tem que se lhe diga.
Frank Black ainda não passou a barreira dos quarenta, mas a idade não interessa para quem, com pouco mais de vinte anos, regou as sementes daquilo que viria a ser o rock dos anos 90. O que não quer dizer que seja de menosprezar o trabalho dos outros membros do grupo. Kim Deal, a baixista/vocalista, e Dave Lovering, o baterista quase sempre relegado para segundo plano, sempre estiveram lá para ajudá-lo, nunca, nem por uma vez, tendo deixado o ogre disforme sozinho. Joey Santiago, o mago da guitarra, não sendo um guitarrista incrivelmente dotado, sempre tirou do seu instrumento os sons mais bizarros, dando vida às letras gritadas pelo companheiro.
Os Nirvana e os Radiohead põem os Pixies no topo das suas inspirações. Jonny Greenwood, dos Radiohead, diz que a sua banda já não usa tantas guitarras porque fazer da imitação dos Pixies carreira por mais que dois ou três álbuns acaba por tornar-se muito difícil. Tudo isto já foi dito até à exaustão. Mas talvez por ser verdade.
Tudo isto nos leva até ao anoitecer de dia 11 de Junho de 2004. O recinto está cheio, as pessoas, mesmo antes do final do concerto dos conimbricenses Wray Gunn, vão enchendo o espaço em frente ao palco principal montado no Parque Tejo. Ninguém quer perder o lugar para ver os quatro grandes. Os minutos vão sendo contados, os corações batem mais depressa, a hora aproxima-se. E eis que, à hora marcada, ou mesmo um bocado antes (mas alguém está a marcar tudo?), eles entram em palco. O ogre disforme mais careca que sempre, o guitarrista porto-riquenho com uns óculos muito modernos, a deusa do baixo, um pouco mais rechonchuda do que há dois anos no Paradise Garage com os Breeders - banda que mantém com Kelley Deal, a sua irmã gémea -, e o baterista que se tornou ilusionista, estão à nossa frente. Finalmente. É este o momento pelo qual toda a gente esperou, anos e anos a fio.
"Bone Machine", de Surfer Rosa, começou o concerto. Não se passaram treze anos; mesmo os trintões voltaram a ser adolescentes, a usar Converse All Star. Os Pixies continuam ali, estão vivos, toda a gente está viva. A maior parte do público conhece o repertório de trás para a frente, não há um único momento em que não se cante (grite?) em uníssono com Frank Black, facto que agrada visivelmente a Kim Deal, que vai sorrindo e sorrindo. Ao bom estilo de bandas punk como os Ramones, os Pixies não param nem por um segundo. Eles estão tocar tudo aquilo que toda a gente conhecia em disco, na perfeição. Há alguns arranjos novos, mas as canções continuam lá. O Frank Black continua lá. A Kim Deal continua lá. O Joey Santiago continua lá. O Dave Lovering continua lá. Estão todos lá.
A guitarra de Joey vai trazendo umas coisas novas aqui e ali. "Crackity Jones" e "River Euphrates" incitam à loucura. "Monkey Gone to Heaven", o ogre diz coisas como "Now there's a hole in the sky", olhamos para o céu, nem queremos acreditar que estamos ali. É quase noite, mas ainda é dia, estaremos a sonhar? Será possível estarmos na presença deles? "This monkey's gone to Heaven". Estaremos no Céu? Será isto o Céu? "All these monkeys are in Heaven". Só pode ser isso. "Caribou" e "Cactus" fazem momentos de extrema beleza, em que todos cantam, felizes, sentindo as palavras mesmo que não as compreendam. "Broken Face" e "Something against You", virá um mosh-pit? Será que me vão partir os óculos? "Isla de Encanta", olha, ele também canta em espanhol. Será que percebe português? De repente, o baixo começa. Todos conhecemos as notas. O ogre grita "Hey!". Nós gritamos com ele. "We're chained". Sim, estamos. Todos os que estão no Parque Tejo estão acorrentados uns aos outros. É a parte instrumental, Joey Santiago esmera-se. Ouvimos isto tantas e tantas vezes, conhecemos todas as variações, tudo o que ele toca. Preparamo-nos para os gritos de Charles Thompson, o terceiro. "Huh!" Todos. "Said the man to lady!" Continuamos com os gritos. Todos nós. "And Mary ain't you tired of this Huh?" Não, não estamos cansados. Ninguém está cansado. Continuamos a gritar contigo. Este "Hey", de Doolittle, é o primeiro ponto verdadeiramente alto desta noite. Como se fosse possível escolher apenas um ponto alto...mas é.
Vamos continuando. "U-Mass", "it's educational", não há experiência mais educacional que ver os Pixies. O baixo começa. Paramos todos. Será que pode ser verdade? Kim Deal canta: "And this I know...", oh, como sabemos bem essas palavras, Kim. "Gigantic, gigantic, a big, big love". Nunca uma canção sobre o tamanho dos órgãos reprodutores dos africanos serviu tão bem para ser cantada em uníssono. "Velouria", canção de Bossanova sobre extraterrestres. "And how does lemur skin reflect the sea?" Não sabemos, mas não faz mal. "In Heaven (Lady In the Radiator Song)" tem um arranjo diferente. E é Kim Deal que canta, não Frank Black a gritar. Perdoa-nos, Frank, mas é melhor assim. "In Heaven everything is fine". É aí que estamos. E está tudo bem. De repente, o ogre pega na guitarra acústica. O que é isto? Não pode ser... será...? A canção que marca o fim do mundo tal como o conhecemos em Fight Club, de David Fincher. "Where is my mind?", canta Frank Black. A sério, onde estão as nossas mentes? Não sabemos, e a culpa é tua, Frank. Os "huh-huh" de Kim Deal são substituídos pelos do público, à semelhança do que tinha acontecido na Aula Magna em 2001.
Continuamos todos a cantar. A passear pelo repertório dos quatro grandes. Chegamos a "Here comes your Man". Dentro do recinto, não há quem não conheça este tema. Se em outros havia gente, dentro do público, estupefacta com a reacção quase maníaca, doentia e feliz dos entuasiastas dos Pixies aos temas, neste todos sabiam o que se estava a passar ali. Todos cantavam "There is a wait so long (so long, so long) / you never wait so long / Here comes your man". O riff de guitarra é inconfundível. É quase criminoso falar-se em "canção pop perfeita", mas se existe alguma, é esta. Estamos a chegar ao fim da canção, e aquele break, quando a bateria pára para depois voltar a entrar, permite sempre, da minha parte, um gesto com a cabeça que foi substituído por um salto neste dia. Voltamos ao espanhol: "Vamos". "Vamos a jugar por la playa". Vamos, vamos, vamos daí. A parte do meio possibilita um improviso da parte de Joey Santiago, que acaba por deixar a guitarra abandonada para ir brincar com os pedais. Dave Lovering continua a bater na bateria, atira-lhe uma baqueta, Joey brinca com a baqueta e com a sua guitarra. Vamos, vamos. Joey manda a baqueta a Dave, que nestes treze anos se tornou ilusionista, apanha-a com mestria e continua a tocar, nunca parando. É de salientar todas as brincadeiras que Dave faz com as baquetas, sempre na perfeição, dominando completamente tudo.
Frank Black diz "obrigado" num português rudimentar. É a única coisa que se deve dizer, não há necessidade de andar cá com coisas, dizer que este é o melhor público de sempre. Nunca será, é sempre mentira, se se disser isto está-se a ser extremamente hipócrita. Preparam-se para sair, o público pede, o público clama, o público suplica por mais. O ogre diz umas coisas ao ouvido de Joey. O público grita coisas como "Debaser, Debaser!" ou "Gouge away, gouge away!" Ninguém sabe se foi por isso, mas começa "Gouge Away". "Stay all day / if you want to". Bem podiam ter ficado o dia inteiro, Pixies, ninguém se importava. Começa "Debaser". É a excitação total. Milhares de pessoas completamente passadas da cabeça ao som disto. Nunca Luis Buñuel foi tão universalmente aceite. Os gritos fortes de "Tame" fecham o concerto. Já é noite. Ainda há gente que grita por mais, mas não há mais. Quanto tempo foi? Ninguém sabe ao certo, mas quando se vivem experiências transcendentais, isso nunca interessa. Uma hora e pouco. Terá sido?
No último álbum de estúdio dos Pixies, Trompe Le Monde, existe um tema dos Jesus & Mary Chain, "Head On", em que a certa altura é dito: "I could die and I wouldn't mind". Após o concerto, todos nos sentíamos assim. Talvez tenha sido este o tema que falhou. Mas agora podemos dizer a toda a gente, contar as nossos netos: "Eu estive lá." Se ao menos pudéssemos voltar lá...
rodrigo.nogueira@bodyspace.net