DISCOS
Titãs
Nheengatu
· 21 Mai 2014 · 21:27 ·
Titãs
Nheengatu
2014
Som Livre


Sítios oficiais:
- Titãs
Titãs
Nheengatu
2014
Som Livre


Sítios oficiais:
- Titãs
O pulso ainda pulsa.
Um ouvinte desatento da música brasileira hoje em dia teria dificuldades para perceber que o Brasil não vive hoje um grande momento de sua história. Salvas raras exceções, a música brasileira (do rock independente ao axé, funk e sertanejo que toca nas rádios) pouco diz respeito sobre o cenário caótico que levou brasileiros às ruas em junho de 2013 e que se anuncia para o país nos próximos meses, preferindo cantar sobre o mar, os coqueiros, as ruas e as morenas bonitas do Rio de Janeiro ou relacionamentos impossíveis. Seria lindo, se não fosse tragicómico. É por isso que, quando alguém com um mínimo de relevância e dignidade resolve colocar três dedos na ferida, um pequeno sinal de esperança parece surgir no cenário sonoro por aqui. Depois de quase uma década sem lançar uma canção que preste, e quase vinte anos sem um bom disco, os hoje cinquentões roqueiros dos Titãs voltam ao activo com Nheengatu, um trabalho que, apesar de seus questionamentos inocentes, merece atenção.

Pequena nota introdutória ou retrospectiva: próximos musicalmente aos Xutos & Pontapés, os Titãs fazem parte da geração de ouro do rock brasileiro dos anos 80, elevada às paradas de sucesso em uma época marcada pelo fim da ditadura militar. Com riffs de guitarra apunkalhados, letras contestatárias e força poética pelas mãos de Arnaldo Antunes, o grupo paulistano (originalmente um octeto, hoje reduzido a um quarteto) fez história com (ao menos) três belos trabalhos: "Cabeça Dinossauro" ("Polícia", "AA UU", "Igreja"), "Jesus Não Tem Dentes No País dos Banguelas" ("Comida", "Nome aos Bois") e "O Blésq Blõm" ("Flores", "Miséria", "O Pulso") - este último calcado também na pesquisa de sonoridades brasileiras.

Nos anos 90, o grupo viveu uma fase de vacas magras após a saída de Antunes, mas se reabilitou perante ao público com o sucesso de vendas de um "Acústico MTV", que lhe deu alguma sobrevida. Entretanto, na década seguinte a banda veria integrantes morrendo (o guitarrista Marcelo Frommer) e deixando o grupo (o baterista Charles Gavin e o baixista Nando Reis), e conseguiria relevância apenas apelando para baladas açucaradas como "Epitáfio" e "Enquanto Houver Sol". Hoje, o grupo está reduzido a apenas Paulo Miklos (voz e guitarra), Sérgio Britto (voz e teclados), Branco Mello (voz e baixo) e Tony Bellotto (guitarra), acompanhados do baterista contratado Mário Fabre.

Posto isso, voltemos a 2014: ao contrário do que podem fazer crer as manchetes otimistas de alguns jornais e publicações, os dias de hoje revelam momentos de tensão no País. Os gastos astronómicos com a Copa do Mundo, o aumento da situação de insegurança (e o abuso da violência policial em manifestações e repressão ao crime), a inflação e a extrema lotação no transporte público fazem parte do cotidiano e da rotina da maior parte dos brasileiros.

É nesse espírito que nasce o novo disco dos Titãs, "Nheengatu" (um dos nomes que se dá à língua geral, uma mistura de português com tupi que foi vital para a comunicação na época do Brasil Colônia). Neta do clássico "Polícia" (de "Cabeça Dinossauro", disco de 1986), a canção que abre o disco, "Fardado", oferece palavras de ordem que podem soar tolas e pueris quando cantadas em estúdio por um cinquentão: "Você também é explorado/Fardado(...)Por que você não abaixa essa arma?". Entretanto, embaladas pelo riff explosivo de Bellotto e pela bem conduzida bateria do contratado Mario Fabre, tais palavras de ordem poderiam muito bem virar canção de protesto pelas gargantas de 10 mil pessoas nas ruas do País - afinal, "vem pra rua" ou "sem violência" (dois gritos que ficaram marcados nas manifestações de junho de 2013) também não primam exatamente por sua beleza poética.

Se "Fardado" recupera a veia dos Titãs pela estética esporrenta de "Cabeça Dinossauro", "Mensageiro da Desgraça" (um baião enrockado) e "República dos Bananas" (um quase ska), as duas canções que se seguem, relembram a mistura brasileira com punk rock que deu certo em "O Blésq Blõm", o último grande disco da banda. De cunho social, as duas cerram punhos ("Na selva de concreto/estou pronto pra lutar", em "Mensageiro") e tentam mostrar que o País pouco mudou nas últimas três décadas, apesar de relativa prosperidade económica ("Calúnias sociais/seus tipos bacanas/bundas e caras/da República dos Bananas”). A sensação de prosperidade também é questionada na balançada "Eu Me Sinto Bem", na qual o título positivo é contraposto à ideia de falta de dinheiro, com "nada para comprar, nem para trocar pilha/nada para guardar nem deixar no chão".

A raiva volta a aparecer na dupla "Fala, Renata" (velha conhecida dos fãs nos shows da banda) e "Canalha" — esta uma regravação do cantor setentista Walter Franco. Na primeira, armas apontadas para "quem fala muito, fala por falar" (e uma mensagem direta para o cantor Lobão, que depois de apoiar o Partido dos Trabalhadores no país, fez uma guinada para a direita e há tempos bufa contra casas de tijolos) e "não diz nada não, nada de bom nem ruim", enquanto a segunda, em interpretação rasgada de Branco Mello, resume o clima do álbum "com uma dor canalha que te dilacera".

Entre as duas, um retrato da violência em um país que responde por 11% dos assassinatos do mundo (segundo um estudo recente da ONU) aparece em "Cadáver sobre Cadáver", cujo refrão ("quem vive, sobrevive", escrito a quatro mãos por Miklos e Arnaldo Antunes) volta à manifestar bobagens líricas, mas reveladoras. Outro momento tolo em termos de letra é "Não Pode", toda sustentada em variações da frase que lhe dá título, mas na qual brilha a bateria de Mário Fabre. Um raro momento de força nas letras de Nheengatu aparece na densa "Pedofilia", diário quotidiano de um dos principais destinos do turismo sexual no mundo. E enquanto perdemos tempo em polémicas de internet tentando descobrir se a Copa vai mesmo acontecer por aqui, se um pastor homofóbico (o deputado Marco Feliciano, escolhido para chefiar a comissão parlamentar de Direitos Humanos) nos representa ou se #somostodosmacacos, os Titãs questionam "Quem São os Animais?", lembrando "que ninguém fala por você/você tem que respeitar o direito de escolher livremente", em uma faixa perfeita para cair no gosto das "rádios rock" do País.

E é justamente nesse sentido que reside o tal mérito de Nheengatu. Ainda que, mais uma vez, o brilhantismo poético não seja uma de suas forças, este é um disco que mostra um país insatisfeito - algo que pouco tem sido visto na música brasileira recentemente. Não é o caso de gente como Apanhador Só ou Passo Torto (que você deve ter conhecido aqui mesmo no Bodyspace), mas mesmo esses grupos têm pouca amplificação entre as diversas camadas sociais e etárias do Brasil, de maneira que não são poucos os que dizem que "a música brasileira morreu".

Com um disco angustiado, raivoso e que tenta tanger a velha energia de seus bons momentos, os Titãs acabam por falar a língua certa para os ouvidos interessados de gente que precisa de uma trilha sonora ou um riff de guitarra para se manifestar — ou no mínimo, conseguir cravar uma canção roqueira sequer no top 40 das rádios nacionais, dominada pelo pop internacional, funk e o sertanejo nacionais. Em 2013, o Brasil só teve uma canção de rock nessa faixa das mais tocadas nas rádios: "Meu Novo Mundo", do Charlie Brown Jr., cujos dois principais membros, Chorão e Champignon, morreram com um intervalo de seis meses no ano passado. Nheengatu pode parecer pouco, e pode não ser o melhor disco de rock brasileiro em muito tempo (assim como “Puro”, dos Xutos & Pontapés, não é com certeza o melhor disco do rock português dos últimos quinze anos), mas talvez seja suficiente para deixar o país minimamente mais roqueiro nos próximos meses.

É claro que tanto tiro para todo lado pode acabar sair pela culatra: em sua semana de pré-venda, no início de maio, Nheengatu foi divulgado pelo YouTube oficial da banda. Entre as faixas, era possível ouvir o jingle festivo que um dos maiores bancos do país preparou para a Copa do Mundo, cantado por gente como Fernanda Takai e... Paulo Miklos — dando margens a quem quiser acreditar que este trabalho possa ser apenas uma "conspiração maligna dos Titãs" para ficar bem na fita neste ano turbulento. Nos primeiros dias após o lançamento do trabalho, não faltou quem procurasse devastar ou louvar como obra-prima na rede social mais próxima de você.

Em pouco mais de meia hora, Nheengatu acaba por ser um disco tiro 12, que mira para todos os lados, causando mais estilhaços do que acertando em alvos certeiros. Pode não causar um impacto profundo (a não ser por alguma bala perdida), mas tem a capacidade de deixar marcas, mostrando a cara de uma banda que já cansou de falar sobre desordem, miséria e bichos escrotos. Vinte anos depois de seu último bom disco de inéditas, os Titãs mostram que o pulso... sim, ainda pulsa.
Bruno Capelas

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