Era inevitável que as memórias granuladas do Endless Summer se apropriassem do ruído de fita, vindo de alguma da música de carácter drone do (sobrepovoado?) subterrâneo norte-americano. Embora a “salvação pelo ruído� (termo terminantemente irritante tão em voga circa 2002) seja ainda uma força anímica considerável para tantos estudantes universitários, facção belas artes, com tendência para anti-sociabilidade, são cada vez mais frequentes os casos em que a beleza tem ganhado espaço ao fuzz. Casos como Chalenger de Burning Star Core ou as experiências mais recentes de Axolotl são casos reconhecidos de uma depuração do barulho, até este assumir uma faceta cada vez mais textural. A idade (e os ossos) não perdoa e até o militante Dominick Fernow (Prurient) já tratou de vestir uma camisolinha.

Esta situação não tem necessariamente haver com uma evolução continuada per se, mas sim com uma tendência natural para revelar todas as nuances melódicas que, numa música que se pretende de descoberta constante da multiplicidade do ruído, poderão ser um elemento intrusivo à catarse. É sempre seguro pensar nesta música enquanto escape, e para casos actuais de barulhinho bom como Jason Crummer ou Tusco Terror (para não falar no sempre essencial mundo que gravita em torno dos Wolf Eyes), a verdade é que existe um número excedente de geeks em Portland sem nada para dizer. Enfim, nem sempre a criação tem premência fora do cérebro do criador.

Carve Out The Face Of My God é o diamante lapidado das experiências levadas a cabo por Kyle Parker. Enquanto Gator Surprise, também ele passou muito tempo debruçado sobre pedais em busca do desconforto. Infinite Body seria o meio termo de graça (atingido no split com Emaciator, por exemplo) não fosse este último álbum resvalar em demasia para o sofá. Embora o peso desse passado ainda se sinta em Carve Out The Face Of My God, de modo a torná-lo mais interessante do que sub-produtos como Belong, Infinite Body está hoje muito mais próximo da serenidade europeia de editoras como a Touch ou a Mego em dias nostálgicos, do que do meio que o originou.

Tal, não é sinónimo de um defeito, mas quando o sentido de risco se desvanece quase por completo, alternativas como Tim Hecker revelam-se mais interessantes por comparação forçada. Subsistindo nos seus próprios méritos, as composições de Carve Out The Face Of My God soam demasiado amestradas. Uma placidez envolvente, mas vazia de ressonância visceral.

“Dive� é gloriosa na sua capacidade de sintetizar o álbum em cinco minutos. Sobre uma cama de ruído apaziguador, uma melancólica linha de teclado vai-se fazendo ouvir sem se impor, para uma densidade permeável de contornos voláteis. A sensação de deja-vu persiste, mas “Dive� tem o condão de nunca aborrecer. Isoladas, todas as peças de Carve Out The Face Of My God têm qualidades intrínsecas sem se distanciarem de uma matriz comum. Uma virtude que pode ser, paradoxalmente, a maior fraqueza.

“A Fool Persists� evoca as manipulações orquestrais de Ekkehard Ehlers numa miniatura de grandes planos. “Sunshine� não anda muito distante do Philip Jeck de Surf, com as vozes ultra-processadas a conferirem ao todo um teor algo opressivo em nada consonante com o título. Alguém que assistiu afincadamente às aulas mais prazenteiras de Kevin Drumm poderia ter em “Out To Where I Am� uma bela tese de mestrado. Nomes que num contínuo fazem todo o sentido e fantasmas que assombram este álbum sem se imporem. Para todos os desvios operados, Carve Out The Face Of My God orienta uma solução infalível: a beleza. Mesmo que esta nem sempre escape a uma certa mediania no seu conforto, garante-lhe relevância. E são poucos os discos que se podem gabar disso.