A globalização, a música electrónica e a Variz
· 13 Jul 2003 · 08:00 ·
Portugal esteve quase sempre alguns passos atrás da vanguarda, daquela fina camada de pessoas que consegue, através de uma série de coincidências e acasos, reescrever a história, dar-lhe um rumo próprio, moldá-la. Sempre estivemos atrás, quer por causa da nossa condição geográfica, quer por causa do nosso atraso cultural, quer por outra causa qualquer. As grandes revoluções, culturais e não só, raramente passaram por solo português, longe do epicentro europeu, longe das capitais cosmopolitas que sempre forneceram a matéria prima da criação, os grandes génios que têm o seu nome nos livros. Mas estamos cada vez mais envolvidos numa sociedade de informação e esse mesmo epicentro tende a dissolver-se. A importância do local físico, da nacionalidade, é progressivamente menos importante, em favor de percursos individuais que medem o passado com ferramentas que antes não existiam, como por exemplo a Internet. Na Europa Ocidental e nos Estados Unidos, as novas ideias, tendências, modas e conhecimentos percorrem as consciências de um novo contingente de criativos, profundamente ligados às novas tecnologias e ao paradigma tecnológico que as sustenta.

Concretizado agora na música, é este novo contexto que possibilita o aparecimento de muitos e novos projectos, certamente impossíveis há dez ou quinze anos atrás, como a mono¨cromatica, a Loop, a Crónica Electrónica ou a Variz, e é desta última que falo a seguir. É no fim dos anos 90 que surge, em Portugal, um conjunto de editoras que propõem, mais do que uma tipologia musical, uma nova maneira de olhar para a realidade, de que a música será o estridente ponto de partida. É a metáfora natural de um mundo (como o fora para Mondrian), onde se fala já na pós-pós-modernidade, onde se prevê um futuro que se dissolve já na imprevisibilidade. Mas não se julgue que esta “maneira de olhar” seja um reflexo embaciado das circunstâncias, já que se parte delas para criar um novo “underground”, nos antípodas do “underground” de décadas anteriores. O que existe agora é uma paradoxal pessoalidade no impessoal, através de um manifesto abstracto criado a partir de tensões que se liquefazem até atingir um estado de tensão pura, onde pouco se pode descrever com as palavras. No entanto, esta abstracção traz, como inovação, uma radicalidade quase desconhecida por terras lusitanas. A Variz nasce de membros dos zzzzzzzzzzzzzzzzzp!, que forjaram “uma espécie de proto-circuito electrónico”, e por isso já conscientes das limitações do mundo experimentalista em Portugal, ainda incipiente e, como referi no início, consequência da globalização de informação.


(E cabe-me agora abrir um parêntesis: é a abstracção uma característica intrínseca à música? É-o de certa forma, se fizermos um paralelismo com a pintura, por exemplo. Nesta última, a “figuração” foi sempre o mote até à charneira estabelecida por Kandinsky em 1910. A pintura tinha como tema a realidade. Desta forma reconhecíamos facilmente o que o pintor tinha à sua frente ou na sua cabeça. O que está na tela remete assim para situações concretas, quase palpáveis (esta situação modificou-se com o advento do impressionismo e do pós-impressionismo). Mas a música tem, na minha opinião, um tipo diferente de composição, até porque não se baseia, obviamente, nos sons naturais/vindos da natureza. Por isso, classificar a música como abstracta pode ser um pleonasmo.

Outra questão: não existe um “mundo visível” (neste caso audível) sonoro como o existe visualmente? Ou existe (o mundo do quotidiano, dos sons que constituem o nosso dia-a-dia), e só começou a integrar a esfera artística com a Música Concreta?
Fim de parêntesis.)


Voltando novamente à Variz: sendo uma editora recente, formada por Fernando Fadigas e Miguel Sá, tem uma discografia relativamente pequena. É já habitué o colectivo portuense @c (+Lia), formado por Pedro Tudela, Pedro Almeida e Miguel Carvalhais (que também integrou os zzzzzzzzzzzzzzzzzp!), e o designer/músico Miguel Soares, que editou também um álbum.

Quer @c quer Miguel Soares participam também na primeira edição da Variz (Portuguese Electr(o)domestic Tracks 1.0, posto nas lojas em 2001), que reúne 22 composições de outros tantos músicos. A diversidade na origem não se traduz nos resultados, até porque o ponto de partida é precisamente a “mono cor”, a exploração e manipulação de padrões e texturas, mas de uma forma extremamente gestual. O processo é tão importante como o fim. O conceito, mais do que o suporte da forma, fala por si só, transcende-a, transformando o som num acto de reflexão contínuo. Por outro lado, e como referi no início, o que acabamos por ouvir nos álbuns da Variz é um conjunto de sons que só poderia ser feito num contexto electrónico, onde os instrumentos analógicos são substituídos por Powerbooks, onde o conceito de Arte Total de Wagner dá lugar à correspondência digital entre imagem e som. Voltando a este Electr(o)domestic tracks 1.0, sendo o primeiro álbum da Variz acaba por ser uma apresentação eloquente dos clicks’n’cuts que irão ser o universo dos músicos de laptop que constituem a editora. O minimalismo grave de C’n’N, o dub repetitivo de Two Kinder Man, a acidez de Tolanplan ou o techno ambiental de Expander reflectem a ebulição da nova geração electrónica que se aproxima, próxima dos gurus da Thrill Jockey ou da Warp.
O segundo álbum lançado pela Variz, também de 2001, é composto por sete composições dos @c, improvisadas e gravadas ao vivo em locais como o Artemosferas ou o Frágil, e uma faixa multimédia, composta pelo colectivo e pela designer de imagem Lia, que demonstra o poder da relação som/imagem (ambos extremamente abstractos) e da força com que essa relação nos chega aos sentidos. @c é um dos projectos mais pioneiros e mais interessantes em territórios lusitanos, através de uma estética que faz lembrar, em certos momentos, o projecto Biosphere de Geir Jenssen. Certos momentos, disse eu. Nos outros, as batidas saem do círculo polar ártico para ir de encontro a outras latitudes, outros enquadramentos, outras estéticas. Mas, verdadeiramente, o local a que este álbum vai de encontro é ao cérebro.

Colagem sonora será o conceito que melhor define Migso, abreviatura de Miguel Soares. A sua música envolve sons e ritmos a roçar o insólito, num resultado de uma grande abrangência tímbrica. Porém, o que fica é mesmo a dissonância, a surpresa, a sensação de improviso. Não se pode falar numa unidade presente neste álbum, mas, ao invés, num conjunto de temas independentes e de diferentes personalidades, que flutuam do pastiche non-sense de “Beer Channel” até ao acid-jazz de “Summer’78”, passeando pela IDM, pelos sons concretos, e, acima de tudo, pela desconstrução sonora.

“This sound-specific project is abased on the concept of a planned functional music (...)”. A última edição da Variz, Metrónomo, parte de um conceito específico que explora a relação entre o som e os ambientes urbanos. Como está expresso no álbum, este projecto faz parte de um plano de intervenção urbana e artes públicas, e responde a uma necessidade concreta, a da criação de música para as estações do metro de Lisboa, o que leva a uma reinscrição do acto criativo no território do design, ou seja, de algo para além de arte, para ir de encontro à especificidade de um espaço e de uma dinâmica próprias. Migso, TwoKindermen ou Zzzzzzzzzzzzzzzzzp! São alguns dos nomes presentes.

Edições da Variz até à data:


V/A "Electr(o)domestic tracks 1.0" CD


@c "+" CD


Migso "002" CD


V/A "Metrómetro" CD

Nuno Cruz

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