Portugal esteve quase sempre alguns passos atrás da vanguarda, daquela
fina camada de pessoas que consegue, através de uma série de coincidências
e acasos, reescrever a história, dar-lhe um rumo próprio, moldá-la.
Sempre estivemos atrás, quer por causa da nossa condição
geográfica, quer por causa do nosso atraso cultural, quer por outra causa
qualquer. As grandes revoluções, culturais e não só,
raramente passaram por solo português, longe do epicentro europeu, longe
das capitais cosmopolitas que sempre forneceram a matéria prima da criação,
os grandes génios que têm o seu nome nos livros. Mas estamos cada
vez mais envolvidos numa sociedade de informação e esse mesmo epicentro
tende a dissolver-se. A importância do local físico, da nacionalidade,
é progressivamente menos importante, em favor de percursos individuais
que medem o passado com ferramentas que antes não existiam, como por exemplo
a Internet. Na Europa Ocidental e nos Estados Unidos, as novas ideias, tendências,
modas e conhecimentos percorrem as consciências de um novo contingente de
criativos, profundamente ligados às novas tecnologias e ao paradigma tecnológico
que as sustenta.
Concretizado agora na música, é este novo contexto que possibilita
o aparecimento de muitos e novos projectos, certamente impossíveis há
dez ou quinze anos atrás, como a mono¨cromatica, a Loop, a Crónica
Electrónica ou a Variz, e é desta última que falo a seguir.
É no fim dos anos 90 que surge, em Portugal, um conjunto de editoras que
propõem, mais do que uma tipologia musical, uma nova maneira de olhar para
a realidade, de que a música será o estridente ponto de partida.
É a metáfora natural de um mundo (como o fora para Mondrian), onde
se fala já na pós-pós-modernidade, onde se prevê um
futuro que se dissolve já na imprevisibilidade. Mas não se julgue
que esta “maneira de olhar” seja um reflexo embaciado das circunstâncias,
já que se parte delas para criar um novo “underground”, nos
antípodas do “underground” de décadas anteriores. O
que existe agora é uma paradoxal pessoalidade no impessoal, através
de um manifesto abstracto criado a partir de tensões que se liquefazem
até atingir um estado de tensão pura, onde pouco se pode descrever
com as palavras. No entanto, esta abstracção traz, como inovação,
uma radicalidade quase desconhecida por terras lusitanas. A Variz nasce de membros
dos zzzzzzzzzzzzzzzzzp!, que forjaram “uma espécie de proto-circuito
electrónico”, e por isso já conscientes das limitações
do mundo experimentalista em Portugal, ainda incipiente e, como referi no início,
consequência da globalização de informação.
(E cabe-me agora abrir um parêntesis: é a abstracção
uma característica intrínseca à música? É-o
de certa forma, se fizermos um paralelismo com a pintura, por exemplo. Nesta última,
a “figuração” foi sempre o mote até à
charneira estabelecida por Kandinsky em 1910. A pintura tinha como tema a realidade.
Desta forma reconhecíamos facilmente o que o pintor tinha à sua
frente ou na sua cabeça. O que está na tela remete assim para situações
concretas, quase palpáveis (esta situação modificou-se com
o advento do impressionismo e do pós-impressionismo). Mas a música
tem, na minha opinião, um tipo diferente de composição, até
porque não se baseia, obviamente, nos sons naturais/vindos da natureza.
Por isso, classificar a música como abstracta pode ser um pleonasmo.
Outra questão: não existe um “mundo visível”
(neste caso audível) sonoro como o existe visualmente? Ou existe (o mundo
do quotidiano, dos sons que constituem o nosso dia-a-dia), e só começou
a integrar a esfera artística com a Música Concreta?
Fim de parêntesis.)
Voltando novamente à Variz: sendo uma editora recente, formada por Fernando
Fadigas e Miguel Sá, tem uma discografia relativamente pequena. É
já habitué o colectivo portuense @c (+Lia), formado por Pedro Tudela,
Pedro Almeida e Miguel Carvalhais (que também integrou os zzzzzzzzzzzzzzzzzp!),
e o designer/músico Miguel Soares, que editou também um álbum.
Quer @c quer Miguel Soares participam também na primeira edição
da Variz (Portuguese Electr(o)domestic Tracks 1.0, posto nas lojas em 2001), que
reúne 22 composições de outros tantos músicos. A diversidade
na origem não se traduz nos resultados, até porque o ponto de partida
é precisamente a “mono cor”, a exploração e manipulação
de padrões e texturas, mas de uma forma extremamente gestual. O processo
é tão importante como o fim. O conceito, mais do que o suporte da
forma, fala por si só, transcende-a, transformando o som num acto de reflexão
contínuo. Por outro lado, e como referi no início, o que acabamos
por ouvir nos álbuns da Variz é um conjunto de sons que só
poderia ser feito num contexto electrónico, onde os instrumentos analógicos
são substituídos por Powerbooks, onde o conceito de Arte Total de
Wagner dá lugar à correspondência digital entre imagem e som.
Voltando a este Electr(o)domestic tracks 1.0, sendo o primeiro álbum da
Variz acaba por ser uma apresentação eloquente dos clicks’n’cuts
que irão ser o universo dos músicos de laptop que constituem a editora.
O minimalismo grave de C’n’N, o dub repetitivo de Two Kinder Man,
a acidez de Tolanplan ou o techno ambiental de Expander reflectem a ebulição
da nova geração electrónica que se aproxima, próxima
dos gurus da Thrill Jockey ou da Warp.
O segundo álbum lançado pela Variz, também de 2001, é
composto por sete composições dos @c, improvisadas e gravadas ao
vivo em locais como o Artemosferas ou o Frágil, e uma faixa multimédia,
composta pelo colectivo e pela designer de imagem Lia, que demonstra o poder da
relação som/imagem (ambos extremamente abstractos) e da força
com que essa relação nos chega aos sentidos. @c é um dos
projectos mais pioneiros e mais interessantes em territórios lusitanos,
através de uma estética que faz lembrar, em certos momentos, o projecto
Biosphere de Geir Jenssen. Certos momentos, disse eu. Nos outros, as batidas saem
do círculo polar ártico para ir de encontro a outras latitudes,
outros enquadramentos, outras estéticas. Mas, verdadeiramente, o local
a que este álbum vai de encontro é ao cérebro.
Colagem sonora será o conceito que melhor define Migso, abreviatura de
Miguel Soares. A sua música envolve sons e ritmos a roçar o insólito,
num resultado de uma grande abrangência tímbrica. Porém, o
que fica é mesmo a dissonância, a surpresa, a sensação
de improviso. Não se pode falar numa unidade presente neste álbum,
mas, ao invés, num conjunto de temas independentes e de diferentes personalidades,
que flutuam do pastiche non-sense de “Beer Channel” até ao
acid-jazz de “Summer’78”, passeando pela IDM, pelos sons concretos,
e, acima de tudo, pela desconstrução sonora.
“This sound-specific project is abased on the concept of a planned functional
music (...)”. A última edição da Variz, Metrónomo,
parte de um conceito específico que explora a relação entre
o som e os ambientes urbanos. Como está expresso no álbum, este
projecto faz parte de um plano de intervenção urbana e artes públicas,
e responde a uma necessidade concreta, a da criação de música
para as estações do metro de Lisboa, o que leva a uma reinscrição
do acto criativo no território do design, ou seja, de algo para além
de arte, para ir de encontro à especificidade de um espaço e de
uma dinâmica próprias. Migso, TwoKindermen ou Zzzzzzzzzzzzzzzzzp!
São alguns dos nomes presentes.
Edições da Variz até à data:
V/A "Electr(o)domestic tracks 1.0" CD
@c "+" CD
Migso "002" CD
V/A "Metrómetro" CD