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Topes Ilustres 2016 - Luiz Gabriel Lopes | LG Lopes / Graveola
· 17 Dez 2016 · 21:13 ·


Para mim, 2016 foi um ano intenso, de forte dedicação à estrada e à música. Das trevas que hoje pairam no cenário político brasileiro, novamente dominado por velhos vampiros manipuladores do povo, a lição que salta é novamente a da urgência da micropolítica: as estruturas que aí estão não podem dar conta da complexidade do real. A necessidade de fortalecer esferas autônomas de atuação, ligadas à dinâmica concreta das cercanias e à construção de pontes de comunicação e troca entre pontos distintos do globo, me parece a única saída concreta para um futuro possível. 
 
Não por acaso, me move de forma cada vez mais sólida a crença no poder das artes, especialmente da música, como veículo catalisador dessa transformação. Não só pelo potencial sensibilizador, na esfera consciencial, mas também pelo poder de mobilização em torno de pautas comuns, onde se possa visualizar ângulos mais generosos de mergulho no cotidiano, alavancando a grande transição de paradigma de que tanto necessita o planeta.
 
Nesse sentido, dos milhares de estímulos vividos durante esse ano, elegi cinco concertos que pude assistir ao vivo, em contextos muito distintos. Artistas e formatos muito diferentes entre si. 
 
Sentir de perto a magia da música, a vibração alquímica que nos transforma e nos fortalece: eis aí algo em que verdadeiramente acredito.
 
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Chico César - Teatro Oficina (São Paulo, Brasil, março)
 
Minha admiração pela obra e pela figura de Chico César vem de muito tempo. A primeira música que aprendi a tocar no violão foi um de seus mais primorosos hits, a linda balada "À primeira vista", e se hoje me dedico de corpo e alma a este ofício devo muito ao contato com suas canções. 
 
Fui assistir Chico numa temporada que ele fez no Teatro Oficina, lendário e místico terreiro das artes situado no centro de São Paulo. O teatro passava por dificuldades financeiras, sofria ameaças de despejo. Chico, em solidariedade, ofereceu-se para fazer ali umas tantas apresentações, para levantar fundos e ajudar a reverter a situação.
 
Munido apenas de seu violão, passeando pelo teatro de tronco nu, e contracenando com atores da companhia numa espécie de concerto-performance, Chico cantou um repertório principalmente de canções de amor, ora doces, ora maliciosas, mas que sempre propagavam um afeto luminoso, de cura. 
 
Lembro-me que vivíamos um dos momentos mais tensos do processo do golpe de estado no Brasil, nas proximidades da criminosa votação do impeachment da presidenta Dilma Roussef na câmara, e que saí dali com os olhos marejados, como num reencontro com algumas dimensões de minha afetividade que já começavam a enrijecer-se diante de tanta estupidez. 
 
A suavidade contra a guerra, a sensibilidade contra a surdez. O "estado de poesia" de Chico César é uma ética, uma forma de encarar o mundo. Para que não nos desorientemos em meio ao turbilhão: perceber que somente com beleza é que se constrói alguma transformação.
 
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James Blake - Roskilde Festival  (Roskilde, Dinamarca, julho)
 
Não é mesmo à tôa que o Roskilde é considerado um dos maiores festivais do mundo: seu cartaz apresenta uma variedade de números que, indo do metal à música étnica, abarca um mapa do que há de mais fresco e interessante na produção contemporânea atual. Tive a honra de participar do festival na condição de artista, atuando com o Graveola no Pavillon Stage, num concerto inesquecível. E felizmente, ficamos por lá mais um dia, para curtir os outros shows.  
 
Vimos muita coisa, mas certamente o concerto que mais me impressionou foi o do britânico James Blake. Era o último número do último dia, no palco principal. O show começou as 2 da manhã, mas o público não dava sinais de cansaço. Pelo contrário, vibrava totalmente em sintonia. 
 
Blake, nos teclados e na voz, dividia o palco com um guitarrista que emanava sons atmosféricos indescritíveis de seu instrumento, e um baterista que, munido de um pad e um hi-hat, fazia milagrosos grooves.
 
Arranjos simples e engenhosos, composições com essência e sentimento, interpretações primorosas. Uma aula de música pop, na mais generosa acepção do termo. Realmente inspirador.
 
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Terrakota - Festival Pé Na Terra (Fuseta, Portugal, agosto)
 
Já escrevi algumas vezes sobre o quanto admiro a trajetória e a obra desta grande banda que são os Terrakota. Alta consistência artística e pesquisa musical profunda, em mais de 20 anos de uma sólida história na música independente.
 
Para mim, desde que os conheci, sempre foram um nome consagrado, quase mítico, não só no cenário da música portuguesa, mas no circuito da world music como um todo. A relação do grupo com o ativismo político e ecológico também sempre me interessou bastante.
 
O mais curioso é que só os fui assistir ao vivo pela primeira vez este ano, quando tocava com os TiãoDuá no lindo festival Pé Na Terra, no Algarve, e num dia off que se seguiu, pude presenciá-los em toda sua potência e maturidade naquele mesmo palco.
 
Um concerto-odisséia, com uma complexa linha dinâmica e dramatúrgica que hipnotizava o público com sua riqueza de timbres, acessando sonoridades que remetiam das planícies desérticas africanas aos terreiros do nordeste brasileiro. Um espetáculo completo, com intervenções cênicas, figurinos e forte densidade musical. Permanecem sendo, sem dúvida, um dos principais nomes da música produzida em Portugal.
 
 
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Lineker & Chicão - OcupaFunarte (São Paulo, Brasil, maio)
 
Logo após o golpe de estado que destituiu a presidenta Dilma Roussef no Brasil, um sem número de ocupações surgiram, em protesto aos temerosos rumos da política nacional. Várias unidades da Funarte foram ocupadas por todo o país, e eu, estando em São Paulo, estive presente no processo de ocupação da unidade da Funarte SP. 
 
Um coletivo de artistas e profissionais da cultura se organizou de maneira autônoma e auto-gestionada para manter lá uma programação, e muitos concertos memoráveis aconteceram. Todos gratuitos, abertos ao público, num ímpeto de fortalecer a rede de resistência e promover debates em torno das estratégias de mobilização.
 
Um dos concertos que mais me impactou foi o do duo formado entre o cantor Lineker e o pianista Chicão, que a despeito do formato aparentemente minimal, literalmente botaram a casa abaixo. 
 
Com um repertório e uma performance diretamente ligados às questões de gênero e sexualidade, Lineker foi fazendo um strip-tease durante a evolução do show, interpretando as canções com muita personalidade, sobre os arranjos derretidos do piano impressionista do Chicão. Passando por temas de diversos autores jovens, a apresentação culminou numa estarrecedora performance do clássico "Geni e o Zepelin", de Chico Buarque: ao final, com o cantor já praticamente nu sobre o palco, a platéia ovacionava de pé.
 
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Juliana Perdigão & Os Kurva - OcupaFunarte SP (São Paulo, Brasil, maio)
 
No mesmo contexto da ocupação da Funarte em São Paulo, na lendária sala Guiomar Novaes, minha querida Juliana Perdigão apresentou o explosivo repertório de seu novo álbum, "Ó", ao lado de sua incrível banda, denominada "Os Kurva". 
 
Já mencionei um sem número de vezes o quanto sou fã da singular capacidade da Juliana de tecer com sua música uma trama complexa de sons e significados, densa e saborosa. sua versatilidade como cantora e instrumentista, bem como sua refinada habilidade de fazer escolhas potentes e improváveis, das canções aos músicos da banda, me parece ser o que faz dela precisamente uma das mais interessantes intérpretes em atuação hoje na música brasileira.
 
Juliana, com uma maquiagem azulada que a fazia parecer habitante de um outro planeta, seduziu a platéia que disputava espaço na sala cheia, com uma apresentação energética e calorosa. as pessoas se levantavam das cadeiras pra dançar e se jogar ao ambiente anárquico que a música instaurava. 
 
Memorável momento foi quando, justo na hora do bis, a energia elétrica caiu, e Juliana fez a última música, a epopéica “Marchinha da Alcova Libertina”, em formato totalmente acústico, já ofegante e próxima do público. Episódio registrado de maneira sagaz pelo Igor Marotti, cineasta de plantão que ali estava munido de sua xamânica câmera-eye.
 
Luiz Gabriel Lopes

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