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Rui Eduardo Paes apresenta apresenta Bestiário Ilustríssimo II
· 06 Mar 2015 · 11:34 ·


O crítico, musicólogo e ensaísta Rui Eduardo Paes acaba de editar um novo livro sobre músicas, Bestiário Ilustríssimo II / Bala - edição Chili com Carne. Em exclusivo para o Bodyspace, Eduardo Paes não só apresenta o novo livro como desvenda pistas para o futuro.

Porquê a edição de uma continuação de Bestiário Ilustríssimo?

Porque senti que o primeiro volume não bastava para esgotar o conceito que apliquei no livro, mesmo que no início não tivesse a intenção de o continuar. Trata-se do que, por ironia, chamo de “anti-enciclopédia”, porque é uma enciclopédia sem organização alfabética dos nomes tratados, capítulo a capítulo. Muitos músicos tinham ficado de fora, músicos que acho demasiado importantes para não estarem referidos. A ideia de Bestiário Ilustríssimo II tive-a quando colaborava no então jornal Blitz, entre finais da década de 1980 e inícios da de 90, e já então a série “enciclopédica” de textos que publiquei com esse mesmo título geral pareceu-me dolorosamente incompleta. Agora sim, com o Bestiário Ilustríssimo II / Bala sinto que o projecto está mais completo. Se bem que, com a imensidade de grandes músicos que há por aí, outros tenham ficado de fora. Seria impossível incluí-los a todos...

Este livro tem como último capítulo uma secção chamada "Bala", que funciona também como livro autónomo. Porque é que escolheste esta estrutura atípica?

Aconteceu porque senti que o 50º e último capítulo do Bestiário Ilustríssimo II, o Bala precisamente, se autonomizou. Explicando... O novo livro começa com a recuperação do primeiro texto do meu livro Stravinsky Morreu, que foi publicado no começo dos anos 2000 e hoje está inacessível porque a minha editora de então, a Hugin, fechou as portas. Muitos leitores meus, e a própria editora com que hoje estou ligado, a Chili Com Carne, foram-me repetidamente pedindo que eu reeditasse os cinco livros lançados pela Hugin. Depois de nove anos (contados até à data do lançamento da primeira edição de Bestiário Ilustríssimo, em 2012) sem ter um novo livro, achei que isso significaria um regresso ao passado e não um prosseguir do meu caminho como autor. Assim, e como já tinha feito antes com a reciclagem de um par de prosas, recuperei para este volume apenas esse texto, adaptei-o e dei-lhe um novo nome porque introduz a temática geral que quis dar a este novo volume: o tempo. Os capítulos que se seguem são como que uma aplicação das considerações temporais que surgem nesse capítulo de abertura, o mais longo e mais teórico do livro. Quando cheguei ao último, retomei as considerações sobre o tempo numa outra perspectiva e foi isso que definiu a sua diferença. Tudo o que vem antes desemboca ali, e tudo o que o Bala é explica também o que está para trás. Pegando na noção de “tempo-de-bala”, a técnica cinematográfica inaugurada pelo filme Matrix, expus a minha impressão de que eu, como crítico ou musicólogo, mas igualmente todos nós como ouvintes, estamos sempre atrasados em relação à música. Mais: os próprios músicos numa situação de performance, e sobretudo os músicos improvisadores, estão em décalage relativamente às deixas propostas pelos seus parceiros no palco. O que acaba por ir ao encontro das presentes teses científicas sobre o tempo, dando uma ainda maior relevância ao coelhinho de Alice no País das Maravilhas, que corre de um lado para o outro agarrado ao relógio a dizer que está atrasado. Por isso é que neste Bestiário Ilustríssimo II / Bala tanto posso destacar uma obra musical surgida há 20 anos como um disco de edição recente. Estamos tão atrasados em relação a um como ao outro. O Bala surge, pois, como uma síntese, com outros nomes e outras músicas, do que está no Bestiário Ilustríssimo II, e é também um outro Bestiário Ilustríssimo. Daí a decisão de publicar um “dois-em-um”, dois livros num só ou um livro que na verdade são dois. Por isso, em vez de ter capa e contracapa, tem duas capas. Quando se chega ao final de um dos livros (é indiferente que se comece pelo Bestiário Ilustríssimo II ou pelo Bala, se bem que este seja, para todos os efeitos, o último capítulo do Bestiário Ilustríssimo II), é só virá-lo ao contrário para ler o resto.

Tens como tema central a música, mas escreves sobre artistas tão diferentes como Maja Ratkje ou Lady Gaga, Vijay Iyer ou Otomo Yoshihide. O que te leva a escolher estes temas e músicos, tão diversos entre si?

Ao longo de todo o meu percurso de escrita sobre música, e já lá vão 31 anos, procurei transmitir a noção de que nenhum idioma musical, nenhum género, tendência ou estilo, é estanque. Muitos dos músicos que retrato e analiso nos dois volumes do Bestiário Ilustríssimo estão presentes em várias “cenas”, e na sua maioria têm práticas musicais que absorvem ou sintetizam diversas linguagens, em termos de vocabulário, estruturação e técnicas utilizadas. As músicas foram-se tornando cada vez mais sincréticas e inclusivistas ao longo do século XX e neste que há 15 anos encetámos e as delimitações entre géneros foram-se dissipando. Quem ainda acha que se deve preservar o jazz, o rock ou seja o que for não percebeu o que se passa à sua volta. Vive certamente noutro planeta que não este. Nos dois Bestiários, e já agora no Bala, misturo intencionalmente figuras das mais diversas famílias musicais. E procuro demonstrar que, quando lhes damos um contexto, acabamos por descobrir que ESTÁ TUDO LIGADO. Até a Lady Gaga, que não é apenas uma cantora pop, e por isso surge no meio de personalidades daquilo a que eu chamo música “de arte”, para a distinguir da música da indústria do entretenimento. É uma intelectual, alguém com formação artística que praticou e pratica performance-arte e que quis fazer uma pop que é mais pop até do que a pop, nada inocentemente. Claro que os miúdos que a ouvem não se apercebem disso, o que é precisamente o que ela pretende.

Após uma longa ausência (desde Stravinsky Morreu, de 2003), voltaste a partir de 2012 a editar livros com regularidade e este já é o terceiro editado na Chili Com Carne, uma editora habitualmente associada à banda desenhada. Como surgiu a ligação à editora?

Muito simplesmente, porque o Marcos Farrajota, o responsável da Chili Com Carne, apreciava o meu trabalho. A Chili Com Carne é uma editora dedicada à cultura underground do nosso tempo, ou se quiseres à contracultura (termo que voltou a ter significado e expressão, tal como nos idos anos 1960), e nesta a banda desenhada “alternativa” tem um enorme peso. Embora haja na Chili uma colecção de ensaísmo, na qual os meus livros estão inseridos, e uma de literatura, onde habita um dos meus escritores portugueses favoritos, o João Rafael Dionísio, que é – orgulhosamente o digo – o meu revisor. Não sendo as músicas sobre as quais escrevo (jazz criativo, música livremente improvisada, música experimental, rock avant-garde, etc.) propriamente mainstream, essa identificação da Chili Com Carne comigo e a minha com a Chili Com Carne é muito natural. O universo da Chili é o meu universo e logo no arranque da nossa relação disse ao Farrajota que gostaria que os meus livros tivessem ilustrações dos artistas da editora. No "A" Maiúsculo com Círculo à Volta são 11 a ilustrar, no primeiro volume do Bestiário Ilustríssimo os desenhos são da Joana Pires e neste novo são dela e do David Campos, o mesmo que recebeu agora um prémio pelo seu Kossumai. Estou muito contente com esta associação à Chili com Carne, devo dizer. Nos circuitos dos livros de arte, da banda desenhada e do underground cultural os meus livros foram um sucesso de vendas. No caso do primeiro Bestiário Ilustríssimo a procura foi tanta que houve uma reimpressão e depois, em 2014, uma segunda edição com nova capa. O "A" Maiúsculo com Círculo à Volta está perto de esgotar. Curiosamente, vendem-se mais livros meus neste meio do que pelas vias tradicionais, comerciais, de distribuição. Quebrámos aquele apriorismo que garantia que, em Portugal, livros sobre música só interessam, quanto muito, a uma centena de pessoas.

Quais são os teus planos para os próximos tempos? Vamos poder esperar um Bestiário Ilustríssimo III?

Não haverá um Bestiário Ilustríssimo III, seguramente, mas ainda este ano vai sair outro livro meu. Este terá uma relação indirecta com o "A" Maiúsculo com Círculo à Volta. Como ele trata da temática Anarquia versus Música, só que com um foco muito preciso. Se o outro foi de Frank Zappa a Lê Quan Ninh, de Fela Kuti aos Radiohead e da editora Touch ao noise, cruzando-os com uma observação das tendências actuais do pensamento anarquista, o livro que aí vem fala sobre o movimento anarco-queer e a sua ligação ao queercore, ou seja, ao punk hardcore queer. Neste incluo tanto o hardcore propriamente dito, como as derivações que foi tendo desde a década de 1980 em direcção à pop, à música de dança, ao experimentalismo e a intervenções arty. É um mergulho no fascinante mundo da teoria anarquista queer e numa nebulosa musical que por cá se conhece pouco. Toda a equipa de desenhadores da equipa Chili Com Carne vai participar e a ideia é que o livro se pareça com uma fanzine punk dos velhos tempos, usando uma imagética porno-punk XXX. O título tem forma de slogan: Anarco-Queer? Queercore!. Depois, vou descansar um pouco. Ou melhor, vou deixar que quem me lê tire umas feriazitas, pois sei que, como "workaholic" que sou, não conseguirei deixar de escrever...
Nuno Catarino
nunocatarino@gmail.com

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