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Paulo de Carvalho entre o passado e o presente
· 03 Out 2012 · 11:18 ·
Paulo de Carvalho

O cantor Paulo de Carvalho vai ser retratado numa obra que atravessa os seus cinquenta anos de carreira. O livro Passado Presente - Uma viagem ao Universo de Paulo de Carvalho promete ir além da simples biografia e terá o seu lançamento no próximo dia 18 de Outubro, pelas 18h30, no Museu da Música, em Lisboa. Estivemos à conversa com a autora, Soraia Simões (responsável do projecto Mural Sonoro), que nos apresentou em primeira mão este trabalho.

Como surgiu a ideia de desenvolver este trabalho sobre a carreira do Paulo de Carvalho?

Há já um ano que tenho um programa de cariz documental de 13 episódios, com a mesma génese do Mural Sonoro, a ser gravado. Para um dos epísódios gravei durante o mesmo mês o Paulo de Carvalho, o Eduardo Nascimento, entre outros, e na altura criei logo uma empatia muito forte com o Paulo. Fomos mantendo o contacto. Eu terminava este ano a minha pós graduação em Estudos de Música Popular e falava-lhe disso, até que houve um dia, que em conversa com ele, falámos da possibilidade de fazer algo sobre o percurso musical dele e que ligasse de algum modo a algumas das coisas que lhe falava e que após a pós-graduação e o contacto com ele me iam fazendo ver de um modo mais claro e estruturante. Arranjei uma editora (a Chiado Editora) que se mostrou logo interessada na ideia. Fomos os dois presencialmente formalizar a intenção na editora. Escrevi-o entre Fevereiro e Junho deste ano.

Como desenvolveste este trabalho? Que métodos utilizaste?

Ao fim do primeiro mês, à medida que fui conhecendo melhor o Paulo e percebendo o quanto o caminho musical e de intervenção social dele ligava às problemáticas que o meu trabalho levanta, e até ao meu modo de estar como indivíduo, o foco já era o de não fazer uma biografia clássica, mas um trabalho de campo que partisse de um contacto regular com ele, com a sua obra, com as pessoas que de algum modo permaneceram ou se cruzaram profissionalmente no seu caminho musical, e assim foi. Passou a ser um livro que teve como "objecto central" o Paulo de Carvalho e o ligava a um esquema complexificador, do qual o músico não se dissocia, e onde estão, entre outros aspectos, a indústria fonográfica, o público, a sociedade e as questões temporo-espaciais que a acompanham, a abordagem mais próxima das Ciências Sociais e Humanas e de algum carácter musicológico, etc. As minhas conversas com ele começaram a ser todas gravadas, com outros que a ele se ligaram profissionalmente, algumas delas, também.

Soraia Simões

Em jeito de "aperitivo", podes destacar alguns factos curiosos sobre a carreira do Paulo de Carvalho?

Para isso é melhor lê-lo e envolvermo-nos com o propósito do trabalho feito. Especialmente por ele. Paulo de Carvalho é bem mais profundo que um "E Depois do Adeus", tem uma vasta obra fonográfica, esteve no início de quase todos os movimentos musicais e de algumas das manifestações culturais expressivas. Saliento a "fase PREC" com o M.P.C.C. (com arranjos do Julio Pereira), o Música D'Alma (com enfoque na interculturalidade, que aliás sempre se panteteou no percurso dele) e onde estão nomes como Tito Paris, Filipe Mukenga, Mingo ou Vicente Amigo, Mátria (um disco com letras só de mulheres que ele musicou, com produção do Ivan Lins), os fados que gravou com a Orquestra Filarmónica de Londres, entre tantos mais.

Tens trabalhado, no teu projecto "Mural Sonoro" à volta das questões da lusofonia. Em que medida este novo livro se interliga com esse teu trabalho?

O Mural Sonoro não aborda as questões da lusofonia, na realidade o termo "lusofonia" dá-me uma certa urticária. Não é o desígnio em si, mas o que se faz com ele. O paradigma de uma comunidade lusófona activou, ao longo dos anos, o decurso de uma construção e representação de identidade, que ainda hoje carrega algumas retóricas que procuram legitimar uma argumentação condizente com aquilo que se tenciona evidencia. As ideias e verbalizações tributárias daquilo que constitui a memória histórica e colonial, estão (ainda) afundadas numa realidade imperialista que se não ultrapassada, se deveria ultrapassar. A retórica que realça o imaginário de pertença ou identidade fica tantas vezes unicamente carregada por discursos que resgatam "uma história semelhante" e "uma língua partilhada". Ora, tudo isto são mitos de acessibilidade a uma linha de entendimento posta no enfoque lusófono cada vez menos integrante e cada vez mais colonizadora. Não convém esquecermos, que a representação literária desta ideia de comunidade reproduz os mesmos circuitos efectuados pelos espaços que enformavam a geografia imperial portuguesa. O livro Passado Presente - Uma viagem ao Universo de Paulo de Carvalho tem o mesmo enfoque do meu trabalho no Mural Sonoro e que se pode resumir à necessidade de que as várias práticas musicais e de performance a elas associadas se conheçam sem se anularem, nas suas características únicas, no espaço migratório lisboeta. É o enfoque que encontro, e agora ainda mais o sinto depois da experiência profícua que foi fazer este livro, no trabalho que o Paulo tem feito - com os músicos com quem tem ao longo destes já 50 anos trabalhado - e já nos deixou. O seu trabalho foi pioneiro até nesta relação de culturas, nesta necessidade de enaltecer as integridades que elas trazem ou representam. Fala-se muito em integração social e pouco em integridade dos povos que formam as diversas manifestações culturais e que podem e devem enriquecer o espaço geográfico de partilha. O Paulo foi dos primeiros a possibilitar que outros músicos tocassem em Cabo Verde ou no Brasil numa determinada fase. Recordo que levou o Pedro Jóia, Mário Laginha, Maria João, em exemplo, a Cabo Verde das primeiras vezes que lá tocaram. Liga tanto como músico, como pela pessoa que é, em tudo aquilo que acredito.

Soraia Simões e Paulo de Carvalho

Há ideias para novos projectos biográficos sobre outros músicos? Que projectos tens na calha?

Eu dei um nome ao que desenvolvo: Mural Sonoro, pela importância que sinto em recolher os relatos de vários protagonistas dentro de um painel amplo que a única coisa que têm em comum é a forte ligação à diáspora - músicos, compositores, arranjadores, coleccionadores, artesãos - organologia, materiais, instrumentos, discos- que são os verdadeiros intervenientes do espaço musical na sociedade. Não há compartimentos estanque no trabalho que desenvolvo, há uma preocupação que passa pela importância de construir uma espécie fonoteca ou acervo online, mas que mais tarde possa estar num Museu, com vários áudio que são as perspectivas e reflexões desses vários agentes sociais na música. Acabo por gravar essas conversas e criar vários "Bilhetes de Identidade" (acabam por ser apontamentos pessoais ou biográficos, se quiseres) dentro de um propósito transversal e que nos une, que é o de: colocar o músico num plano profissionalizante activo que leve as instituições, que têm os poderes, e a comunidade a comprometerem-se com isso, como se comprometem de modo valorizante com outras actividades profissionais num plano de desenvolvimento social.
Nuno Catarino
nunocatarino@gmail.com

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