RETRO MANÍA
Koto Ensemble Of The Ikuta School
· 12 Jan 2017 · 14:16 ·
O buraco negro da Internet tratou-se de engolir os nomes individuais dos seus intervenientes. Mas não engoliu a música


Apesar da facilidade que existe, hoje em dia, de viajar até e comunicar com todos os povos do mundo, há lugares que permanecem um mistério. Por cada Awesome Tapes From Africa ou talento emergente da cumbia digital, há culturas e músicas que, seja por falta de apoio mediático ou por puro desinteresse ocidental, não têm outra escolha senão a de ficar à sombra, esperando que alguém chegue até elas - não que o seu objectivo primordial seja, evidentemente, dar-se a conhecer.

O Japão (e muitos outros países asiáticos e da Oceânia) habita um pouco esse limbo informativo; aquilo que chega até aos nossos ouvidos melómanos prende-se quase exclusivamente com a sua visão da nossa própria música. Podemos perfeitamente passar tardes a ouvir Boris, álbuns de shibuya-kei, ou até mesmo a sua versão da pop de alta energia que domina os seus topes de vendas. Mas isto não é (todo) o Japão. De fora desses nossos trabalhos arqueológicos tem ficado a música dita "tradicional", num país que nunca deixou de o ser, apesar do hipermodernismo quase cliché potenciado pelas nossas visões de cidades afogadas em néons e tecnologia de ponta. É um país contraditório, e para o melhor entendermos temos também de nos expor a esse lado mais conservador.



Editado em 1973 no mundo ocidental pela Lyrichord, Japanese Koto Orchestra abre um pouco a porta para aquilo que é ipso facto a música autóctone deste lado do mundo. Dos seus autores, pouco se sabe, tirando as suas assinaturas: Koto Ensemble Of The Ikuta School e Master Musicians Of Ikuta-Ryu referem-se, parece, a uma e a mesma coisa. O buraco negro da Internet tratou-se de engolir os nomes individuais dos seus intervenientes. Mas não engoliu a música, aqui construída a partir de vários instrumentos tradicionais japoneses: o koto (um instrumento de cordas com raízes históricas na guzheng, uma espécie de cítara chinesa), a hoteki (flauta), o shamisen (um instrumento de três cordas) e a shakuhachi (flauta de bambu).



Ao longo de mais de quarenta minutos, o que aqui escutamos é verdadeiramente uma orquestra - não sendo "orquestral" no sentido que lhe costumamos atribuir. As três peças apresentadas em Japanese Koto Orchestra têm as suas raízes na folk japonesa, tendo sido compostas, ao que tudo indica, no século XX - "Nagare", o segundo tema, foi-o nos anos 30, disso há certezas. Assim como existe a certeza de que esta é uma música com o propósito único de criar um "ambiente", uma imagem mental no seu ouvinte. O leito de um rio, a pétala de uma flor de cerejeira caindo suavemente no chão, a passagem inexorável do tempo - por exemplo, e por chavão animeesco.



"Otone No Nagare Ni Sote", escreve-se aqui, é «raramente interpretada devido à dificuldade que existe em reunir o talento musical necessário» para o fazer. Nesta peça, o silêncio também é muitas vezes utilizado quase como se fora ele próprio um instrumento - deixando que uma única vibração de uma única corda paire no ar, antes que a demais dissonância entre de novo em cena. É uma ode de vinte e cinco minutos ao rio Tone, o segundo maior do Japão, e como a água vai avançando mais rapidamente ou lentamente consoante a vontade, estando dividida em vários movimentos diferentes. "Shochikubai", mais ríspida - pela utilização do kokyū, instrumento tocado com um arco - talvez seja a peça mais gratificante aos ouvidos de quem já andou perdido pelo noise e pelo mundo da improvisação. Falta agora que nos percamos na terra.
Paulo Cecílio
pauloandrececilio@gmail.com

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