RETRO MANÍA
Future Sound Of London
· 28 Nov 2014 · 11:15 ·
Formas vivas vinte anos depois.


O ano de 1994 foi um dos mais venturosos para a electrónica, impressionantemente visionária. Destacou-se Dubnobasswithmyheadman dos Underworld, aqui abordado pelo Paulo Cecílio há poucas semanas, mas o balanço dos 12 meses ano não se ficava por aí, e nem fica. O ano viu também nascer marcos incontornáveis como Selected Ambient Works II de Aphex Twin, Snivilation dos Orbital, Psyconavigation de Pete Namlook & Bill Laswell (obra incrível que o tempo tem ignorado!) ou Pommes Fritz dos The Orb, curiosamente todos numa senda ambientalista sem precedentes em que a ressaca rave era capaz de gerar impressionantes especulações contemplativas: viagens lúdicas pelos meandros da realidade virtual ou pelos recônditos cantos do cosmos.

Além dos dignos nomes acima referidos, é impossível a memória abstrair-se de duas obras que se manifestaram no mesmo ano com um singular (portentoso) traço autoral, que tanto estimularam a emergência do trip-hop ou do trance. Música à frente do seu tempo que, pelo empreendedorismo criativo, o gosto pelo risco, da aventura, vinte anos depois ainda se mantêm como documentos sonoros essenciais – matéria de estudo que deveria ser obrigatória nesta era da programação pelo polegar! – para perceber o motivo porque alguém como William Bevan (não é o único exemplo mas é o melhor de momento para passar a ideia) tem tão boa escola para fazer o que faz, e porque se distingue facilmente no nevoeiro cerrado da parcimónia actual.

Falo pois, com absoluta convicção, das obras supremas dos Future Sound Of London, os seminais Lifeforms e ISDN.



Em 1994 este escriba vivia os tenros 18 anos. Lifeforms e ISDN consciencializaram-me das infinitas possibilidades da música. A perceber de vez que havia demasiada indolência a jorrar das rádios, cada vez mais formatadas, demasiadas artificialidades. O génio de Garry Cobain e Brian Dougans, que já me havia maravilhado com Accelarator em 1992 (e anos antes com corrosivo EP Stakker Humanoid), deu a estocada final com dois discos que cultivavam o gosto pela linguagem tecnologia como modus operandi da estimulação da imaginação. Ainda se seguiu Dead Cities (1996) como uma espécie de fim de trilogia, um epílogo que talvez tenha arrumado o assunto, deixando, contudo, muitas pontas de fora que mereceriam continuidade.



Como a nostalgia é um dos condimentos da nossa existência, e ao reapreciar os dois discos há relativamente pouco tempo, dei-me ao digging e revirei dossiês em busca de recensões onde materializei as minhas fortes impressões sobre Lifeforms. Em forma de curiosidade – e num óbvio exercício de memória pessoal – eis o que escrevi em 1994 a propósito do disco, e com o qual ainda me identifico 20 anos depois. “Formas Vivas” foi o título. Fica a short version, para ir ao essencial:

“(…)os Future Sound Of London têm a alma e o espírito sobre influência do misticismo ambiental de 70 – concretamente Eno e Fripp; mas ao contrário de Richard D. James e Pete Namlock, Garry Cobain e Brian Dougans exercitam jogos de sons complexos, manipulando com mestria a cacofonia, misturando as tendências actuais da música empurrando o pioneirismo de 70 contra a parede.
(…) também conhecidos pelos alteregos Amorphous Androgynous, Metropolis, Humanoid e Semi-Real (uns mais dados ao ambientalismo, outros ao frenesim rave), regressam dois anos depois do monumental “Accelarator”; “Lifeforms”, CD duplo, é a mais inesperada proposta ambiental deste ano. É um desenhar de novas texturas, novas formas e novas paisagens.
(…) Já em “Cascade”
(Dezembro de 1993) se previa uma liberdade de expressão, futurologia, manipulando, experimentando. (…) Meses depois, a linha de raciocínio manteve-se. De forma inteligente, renova-se o conceito de atmosferas cibernéticas, construindo-se espaços de meditação, desfrutando-se assim verdadeiros momentos de lazer.
(…) Importantes referências para as liberdades experimentalistas onde sobressaem algumas influências dos Kraftwerk ou os Yellow Magic Orchestra. (…) Referência ainda para as participações especiais de Robert Fripp – que desenha as texturas das guitarras em “Flack”; Elisabeth Frazer – que impõe a sua voz em “Lifeforms” (o mais recente single), uma genial combinação entre ambient-house e trance; Talvin Singh em “Lifeforms Ends”; por fim o hipnótico jogo de voz de Toni Halliday em “Cerebral”.
(…) "Lifeforms" é, até agora, uma das poucas e dignas abordagens ambient capaz de expressar pureza e liberdade espiritual. Novas formas nascem, movendo-se, transformando-se, adaptando-se. O som penetra no espírito permitindo uma agradável sensação de bem-estar; mergulha-se na mais pura e bela melodia primaveril; um caminhar calmo por campos de flores que florescem à medida que os ritmos evoluem. Sejam bem vindos à fronteira da realidade com o mundo real. We are the future
.



Sobre ISDN também escrevi exaustivamente, sei disso, mas sobraram apenas breves apontamentos num caderno que julgava perdido. Sobre ISDN ficaram estas ideias dispersas:

A segunda incursão dos FSOL na realidade virtual este ano.
(…) ISDN é um conjunto de ligações práticas entre a nossa realidade e uma que não existe. Ao contrário de Lifeforms, em ISDN encontram-se referências mais concretas, e humanas: o jazz e o hip-hop infiltram-se. Estas referências permitem aos FSOL uma solidificação das ousadas bases lançadas no segundo álbum.
Agora sim a banda sonora iniciada em Lifeforms fica completa!




Foi assim que a música electrónica urbana (techno, house, e variantes que pululavam) ascendeu de vez ao patamar da forma de arte.
Facto irrefutável nos nossos dias, não é?
Rafael Santos
r_b_santos_world@hotmail.com

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