Jack Rose + Glenn Jones
Aniki Bobó, Porto
03 Nov 2004
Andamos todos com as emoções à flor da pele. Sorrimos quando o sol se põe num perfeito equilíbrio de cores, quando, por entre as nuvens, despontam raios de luz. Adoramos os pedaços de relva plantados nas cidades e sonhamos com campos que nem conhecemos ou que já não existem. Bebemos whiskey até ao amanhecer como cowboys solitários. Cada corda de guitarra dedilhada, percutida ou raspada causa-nos pele de galinha.

A culpa é da recente vaga folk, "New Weird America" ou free folk. A coisa sempre existiu e de "nova" terá apenas uma série de coincidências e ligações pessoais. Os holofotes dos media (mesmo assim, luzes parcas, desproporcionais ao talento e criatividade evidenciados) é que só agora se viraram para lá. E, como cogumelos, parecem surgir do nada milhares de discos, edições limitadas ou em escassos CD-R, peças de colecção, milhares de pontas por puxar, ligações e colaborações que desenham uma rede labírintica, mas bela e viva.

Jack Rose nos Pelt e Glenn Jones nos Cul De Sac são dois nomes importantes da psicadelia ianque. Tomaram contacto com John Fahey, mestre inspirador da free folk, e as suas vidas e obras nunca mais foram as mesmas. Se tanto os Cul De Sac como os Pelt cruzavam a estética e técnicas de Fahey com outros elementos, os seus percursos a solo são assumidamente seguidores da obra enorme do músico do Takoma, sul dos EUA. É música extremamente ampla, sacada à aparentemente limitada guitarra acústica, riquíssima em nuances, em que de cada linha melódica desponta outra, como linhas de um novelo. Ambos amigos, Rose e Jones partem da mesma fonte, mas a riqueza de Fahey (e outros virtuosos das cordas de nylon, editados pela Takoma) abre-lhes caminhos diferentes.

Rose, de lapsteel, percorreu os seus temas oblíquos, registados em Raag Manifestos, Red Horse, White Mule e Opium Musick. Mais do que em disco, é ao vivo que a música enevoada de Rose revela a sua força, espraiando-se em monólogos de guitarra que nos matam as defesas. A beleza em estado bruto exala das cordas, seja em ragas com slide, em canções mais tradicionais ou num lindíssimo tema de "feedback", obtido pela percussão de um ferro directamente nos trastes do braço da guitarra - parecia impossível tamanha muralha de som sair de uma guitarra acústica. No final do concerto, "Linden Avenue stomp", tema comum a Opium Musick de Rose e a This Is The Wind That Blows It Out de Jones, termina com a graça da visão do deserto americano em plena ribeira portuense. As duas guitarras dialogam, fogem uma da outra em ritmos travessos que se encontram a espaços - Rose viaja pelo braço num balanço pachorrento, Jones marca o ritmo, cria turbulência com fingerpicking ou acrescenta nuances à trip do companheiro.

Mais rítmico, expressivo, tradicionalista e com mais "hooks" melódicos do que Rose, Glenn Jones explora o lado mais directo e harmonioso de Fahey. Para além de algumas canções desconhecidos, ouviram-se alguns temas de This Is The Wind That Blows It Out, o seu único disco a solo e um dos melhores deste ano. "Friday nights with" é o medo a olhar de esgueira, uma guitarra que parece multiplicar-se nos dedos mágicos de Jones, tensão transferida para fingerpicking a abrir em linha melódica quase flamenco. Jones anunciou "Sphinx unto curious men" como a expressão musicada dos seus longos passeios pelo cemitério - a calma/tensão em suspense obtida por rendilhados de nylon incrivelmente belos. Jones voltaria para um muito pedido encore algo dispensável num tema desinspirado com "bottleneck", mas a noite estava ganha. Saímos do Aniki Bobó com pele de galinha.
· 03 Nov 2004 · 08:00 ·
Pedro Rios
pedrosantosrios@gmail.com
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