A alguns metros do local do concerto, era já possível observar confrontos entre alguns jovens que se passeavam junto a uma máquina de Multibanco. Já perto desse mesmo local do concerto, uma menina trauteava em alegre karaoke um dos maiores êxitos da nossa música brejeira, num pequeno bar a céu aberto. Santa Maria de Lamas recebia a segunda etapa do Festival da Juventude de Santa Maria da Feira e os convidados eram os Dealema e os Mind da Gap. Local do concerto: nada mais, nada menos que o coreto do parque, rodeado por árvores e pequenas luzes. E para fazer justiça ao nome e conceito do festival, largas dezenas de jovens esperavam ansiosamente a chegada das duas bandas. A verdade é que o hip-hop afirma-se cada vez mais na juventude. Independentemente do local, das bandas ou do propósito, o hip-hop, em Portugal, move cada vez mais pessoas. A digressão conjunta dos Dealema com os Mind da Gap é uma das maiores provas desse mesmo sucesso.
© Carlos Oliveira |
Os Dealema nasceram em 1996 - provenientes de anteriores projectos, como os Fulashit (Fuse e X Pião) e os Factor X (Mundo e DJ Guze) – mas só o ano passado gravaram o primeiro álbum. Dealema, o disco de estreia da formação de Gaia, além de concretizar as ideias da primeira maqueta, Expresso do Submundo, afirmou e colocou de forma mais consciente os Dealema ao lado dos Mind da Gap, como um dos valores mais seguros do hip-hop tuga. Ao vivo, as coisas tornam-se ainda mais reais e expressivas do que em disco. As histórias da rua, as reivindicações, e a luta tornam-se ainda mais explícitas. DJ Guze dispara as beats fortes, duras, intrincadas. Lá na frente, Fuse, X Pião, Mundo e Mase revezam nas rimas. Os mais novos à frente, braço direito erguido e projectado para adiante, com as palavras de ordem prontas para serem disparadas. O movimento e a causa têm seguidores. Muitos.
“Bófiafobia” fala de medo, da violência das ruas e da força policial: “É tempo de perguntar o que é que se está a passar / Há abuso da autoridade, brutalidade / Nas rusgas aos bairros sociais da cidade / Agentes intimidam inocentes com cacetetes / Dealers despejam droga nas retretes / Água, água / Soam as sirenes / Vem um carro dos judites, vem um carro do INEM”. “Rota de Coalisão” faz com que Ace e Presto subam pela primeira vez em palco. Todos em palco, amigos de longa data, assumem a “indignação perante a submissão”. Trocam-se as “merdas químicas” pelas “rimas” e exaltam-se, nas palavras de Fuse, os “Tripeiros, raça filha da puta”. As rimas e as batidas dos Dealema são mais do que viciantes, e prova disso são “Infieis (Ninguém Teme)”, com refrão forte e incisivo, e “Tributo”, canção de melancolia induzida por pianos e batidas rudes, onde se presta homenagem aos que estiveram presentes, aqueles que sempre confiaram nos Dealema: “Esta é para todos / Os meus verdadeiros amigos / Esta é para todos / Estiveram lá quando foi preciso / Esta é para todos / Aqueles que acreditaram em nós / Os mesmos que nunca nos deixaram sós”.
No intervalo, a sessão de karaoke continuava, ávida de estrelas MTV e Avril Lavigne wannabes. Por sorte, as batidas dos Mind da Gap surgiram logo após uma interpretação do primeiro hit-single dos Evanescence. Ace, Presto e DJ Serial já não são propriamente novatos neste tipo de coisas, e a quantidade de fãs que os seguem de um lado para o outro é mais do que visível. Os placards no fundo do palco avisam: o prato principal seria ainda o último disco de originais dos Mind da Gap, Os Suspeitos do Costume. Por isso mesmo “Esta Gente Sente”, “Kem São?”, “Estilvs Clássicvs”, “P.O.L.Í.T.I.C.O.S.”, “Pura Riqueza” e a obrigatória “Bazamos ou Ficamos?” fizeram parte de um alinhamento que não esqueceu, como de costume, os “clássicos dos Mind da Gap” como “És Como Um Don” ou a habitual “Todos Gordos”, onde se diz: “Com certeza todos os ricos vão reconhecer / Que o melhor que pode acontecer é nada fazer / Fazer o que apetecer continuar, sonhar, manter / Umas rimas e umas batidas só pelo real prazer” Houve ainda tempo para uma pequena sessão de free style e para os Dealema invadirem o palco por mais do que uma vez. Por entre rimas esquecidas e bastantes sorrisos, é notória a união entre os Dealema e os Mind da Gap. Por várias vezes, os nomes das duas bandas saíram entrecruzados por entre as rimas, mas como tudo na vida, há sempre uma altura em que os filhos ultrapassam os pais.
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