Damo Suzuki's Network
Maus Hábitos, Porto
18 Jun 2004

Em 1942, Henri Michaux afirmava "O musical não se encontra na natureza, ou está em muito pouca quantidade. Mas os ruídos, sendo grandes e atractivos, são base mais familiar da nossa vida do que os raios de sol. Iremos reconstrui-los, submergir neles e, graças a este aparato, trabalhar no mesmo esqueleto da natureza”. Com esta ideia na mente, a Damo Suzuki’s Network entrou para o palco, em fila indiana, com cada elemento a carregar um qualquer objecto (garrafas, sacos, pratos da bateria, entre outros), onde batiam alegremente. A banda "itinerante" de Damo Suzuki, o vocalista dos lendários Can, ocupou os seus lugares e desde aí - como se não soubéssemos desde sempre – se tornou óbvio que aquela não ia ser apenas mais uma noite de sexta feira (as actuações da Damo Suzuki’s Network podem durar até quatro horas). Network porque frequentemente os músicos que actuam com Damo Suzuki fazem-no pela primeira vez, sem ensaios, em total improviso. Massimo Pupillo, baixista dos italianos Zu – que em finais de Fevereiro esmagaram a mesma sala onde agora actuava a Damo Suzuzi's Network -, Scott Nydegger, o excêntrico – passe o eufemismo – músico que acompanha os Mécanosphère e um guitarrista, dois bateristas e um músico que manejava maioritariamente um contrabaixo acompanharam Damo Suzuki que, como seria de esperar, ocupou o lugar da frente, o mais corajoso, junto do microfone.

© Sandra Carneiro

A confusão instalou-se desde cedo no palco do Maus Hábitos. A improvisação tomou conta de todos os músicos e tudo servia para o efeito. Chaves de parafusos, baquetas, estalidos, batidas vindas do nada e dos locais mais imprevisíveis, pratos atirados ao ar – que caíam à toa -, copos que eram atirados contra o chão ou pisados violentamente, e tudo aquilo que a mente dos músicos levasse a pensar que poderia ser musicado. Damo Suzuki faz-se acompanhar sempre dos músicos que acha serem mais capazes de transmitir algo de útil e artístico à plateia. As actuações podem – e devem - ser sempre algo de muito imprevisível, inesperado. E foi o que aconteceu. O público parecia surpreso, mas não arredou pé. Damo Suzuki conduzia a ensemble de forma segura, e ia compondo a massa quase indiscriminável de sons com as suas vocalizações repetitivas. Na plateia, entre uma das composições, alguém gritava: “Your hair looks like a forest”, numa clara alusão ao cabelo (e barba) que tapava quase por completo a cara de Damo Suzuki.

Em termos de reacções inesperadas, Scott Nydegger é um caso à parte, a uma distância considerável de tudo aquilo que se possa imaginar. Acabou o concerto em cima do piano, enrolado em cabos, duas cadeiras e dois tripés e com um pé numa mesa que ameaçava cair a qualquer momento. Agarrou-se e suspendeu-se ainda a uma das traves de madeira do tecto da sala do Maus Hábitos. A certa altura cai um pedaço da madeira e, consigo, cai também um bom bocado de pó. As coisas permaneceram sempre no limbo da loucura, como se de um jogo se tratasse. Scott Nydegger arrumou depois todo o seu material, sentou-se numa mesa perto do palco, de perna cruzada, e, segurando um copo partido – que depois encostava, na sua parte mais pontiaguda, à sua cara -, pedia que alguém o servisse. O baixo de Massimo Pupillo ficava muitas vezes suspenso no tecto, em feedback. O experimentalismo e o improviso não aconteciam só a nível musical mas também mental, comportamental. A alienação estava ali tão perto e durante mais de duas horas produziu composições noisy sem qualquer estrutura, fugindo radicalmente a qualquer formato de canção imposto.

O concerto consistiu de duas partes, dividas por um intervalo mais ou menos breve. No fim, depois de ter dado a sua participação como finalizada, já Scott Nydegger se encontrava sentado no meio da plateia, a observar o que o resto da banda fazia. Muitos watts de adrenalina, associação livre de ideias de Freud e a imprevisibilidade ao serviço da música. O experimentalismo, ousadíssimo e muitas das vezes no extremo, foi o mote para uma noite bizarra. No fim, Damo Suzuki insistiu em cumprimentar cada um dos presentes com um aperto de mão. Alguém da plateia dizia, convicto: “You still rock”. Damo sorriu.

· 18 Jun 2004 · 08:00 ·
André Gomes
andregomes@bodyspace.net