ENTREVISTAS
Letrux
A mulher que encandeia o breu
· 26 Mar 2019 · 17:58 ·
O amor trouxe-lhe um casamento e um projecto musical que se prolongou por nove anos. O fim desse amor deixou-a com 200 reais no bolso e uma vontade indómita de desbravar o caminho a solo. Aligeirado coração e carteira, as “grandes mudanças” previstas pelo seu astrólogo concretizaram-se “ de maneira real, bonita e forte” em 2017 sob o signo de Letrux em Noite de Climão, álbum que marca a estreia de Letrux (Letícia Novaes) a solo. Subida a montanha, é deste lugar bonito que Letrux admira uma paisagem onde se pode entrever um grupo de mulheres invisíveis que, reunidas num só corpo de fogo e tesão, dançam as dores de um mundo que vomita vermes misóginos e racistas.

Apesar dos negros fantasmas e do medo, fantasma maior e poderoso, a cantora brasileira acredita que as pessoas estão ávidas por uma luz que ilumine o imenso breu em que se transformou o Brasil dos nossos dias. A candeia muito particular desta mulher “medrosa muito corajosa” regressa, sem cagaço, ao “único lugar do mundo” onde se sente tão em casa como no Brasil para a apresentação do seu livro “Zaralha” e concertos em Lisboa (MIL, dia 27), Porto (Plano B-Bodyspace, dia 28) e Coimbra (Salão Brazil, dia 29). Antes do fogo, eis Letrux em discurso directo para o Bodyspace.
© Antônio Brasiliano
Durante nove anos foste parte de Letuce com o teu então marido Lucas Vasconcellos. O que levou Letuce a transformar-se em Letrux? Esgotou-se o amor ou já era algo que tinhas necessidade de fazer, isto é, a vontade de ter uma carreira em nome próprio?

O amor se esgota e renasce sempre, é maravilhoso isso, o fim e o início, não tenho medo de algo chegar ao fim, sou super amiga do fim, (risos). Lucas e eu fizemos um disco muito bonito, o último do Letuce, onde já estávamos separados e falamos sobre o assunto, de maneira poética e curativa. Eu já tinha outras ideias, que não iguais às dele, então foi natural um processo de iniciar uma carreira solo, sabe? Arriscar outras coisas, mirabolar mais cenas, enfim, sou ultra grata ao Lucas e ao Letuce, jamais chegaria aqui sem essa bagagem, mas uma hora fechou o ciclo e tudo bem, tudo lindo.

Sabemos que és uma entusiasta pela astrologia. Todas essas mudanças que redundaram em Letrux estavam escritas nos astros? Para além do óbvio, o que é que diferencia Letuce e Letrux? Chamam-te a “Anitta da cena indie”, como é que lidas com esta alcunha?

© Antônio Brasiliano

Em 2017, depois de me mudar sete vezes em cinco anos, fui no meu astrólogo com uns 200 reais na minha conta, juro, 200 reais pra viver o mês, impossível. E ele previu grandes mudanças na minha vida sim. E de fato elas vieram, de maneira real, bonita, forte. Foi tudo intenso, mas ao mesmo tempo já estava plantando desde a minha primeira banda de rock, lá em 2005. Estou há 14 anos fazendo música, shows, e como boa capricorniana, a subida da montanha é lenta, mas uma hora chega-se num lugar bonito para se admirar o caminho. Essa alcunha só saiu uma vez numa revista, ninguém me chama assim na verdade, nem acho que tenha nada a ver.

Quem é esta Letrux a solo e que álbum de estreia é este Letrux em Noite de Climão? Como é que tem sido esta experiência um pouco mais solitária?

É uma mulher de 37 anos (lancei o disco com 35), gosto de ser mais velha, gosto da minha cabeça atual, não troco isso por nada, gosto da minha eloquência, de onde cheguei, de onde estou chegando, não troco isso por nada. Letrux não é Letícia, empresto partes da minha personalidade pra ela. Tem muita da minha mãe, das minhas avós, das minhas amigas, das minhas musas, das minhas inimigas, enfim, tem um pouco de várias mulheres em Letrux. Eu sou mais reservada e calma, mas o palco me dá fogo nos olhos e no corpo, e ali me resolvo. Curo coisas, gasto um tesão, danço dores. Tem sido uma experiência linda e minha banda é de outro planeta, o que ajuda muito.

“A gente só serviu no sonho / A gente só prestou dormindo” no tema “Ninguém Perguntou Por Você” e “existe Amor / depois do amor / resiste o amor / depois do horror” da faixa”Amor Ruim” parecem deixar entrever uma Letrux ainda dorida/amarga. Letrux em Noite de Climão é também uma espécie de catarse? Livraste dos fantasmas cantando-os?



O disco tem essas frases mas também tem outras divertidas, eu quis mostrar que viver é tragicómico. Um dia está se jurando amor eterno e incondicional e no outro está a mirabolar uma relação poligâmica, enfim. São muitas nuances. Não queria deixar uma sensação amarga, queria mais que as pessoas dançassem enquanto choravam, ou então gargalhassem enquanto estivessem chorando. Os fantasmas estão sempre presentes, há dias que são meus amigos e os convido pra passear e há outros dias que escondo tudo debaixo da cama.

O disco saiu em 2017 e foi financiado através de crowdfunding num ano marcado pela crise no Brasil. Chegaste a temer que a tua estreia em álbum tivesse que ser adiada? Ao Noisey afirmavas que “foi um cagaço” e interrogavas-te se terias “estômago” para outro. Já te passou esse “cagaço”?

Foi uma loucura ter que fazer o crowdfunding. Era o meu terceiro, não sabia se as pessoas teriam vontade de "colaborar" comigo mais uma vez. Fui no meu astrólogo (risos) e ele disse que daria certo, lancei na data e na hora que ele sugeriu, e deu certo mesmo. É uma alegria, esse disco ter esse sucesso e ser independente. Muito orgulho e muita gratidão às pessoas que colaboraram. O medo sempre existe, medo de arriscar, medo de tentar, mas sou uma medrosa muito corajosa. Sempre que tenho medo de algo, investigo, porque ali tem coisa.

“Cagaço”, “crise”… pintou um “climão” com Bolsonaro. Como é que estás a viver estes primeiros meses de presidência? É perceptível alguma mudança no meio artístico brasileiro fruto das políticas Bolsonaro? A diluição do Ministério da Cultura no Ministério da Cidadania parece augurar uma Cultura tutelada por uma perspectiva particularmente moralizante, isto assusta-te?

Estamos todos assombrados com o nosso representante ser um homem misógino, racista, homofóbico, desprovido de qualquer intelectualidade, é um cenário de horror. Claro que estou trabalhando muito, e sou grata, mas isso é um reflexo também, as pessoas estão ávidas por luz, e arte traz luz, ilumina no breu e estamos no breu. Nunca trabalhei tanto, mas estou triste, o Brasil não colabora com a minha alegria no trabalho. Sempre lamento as pessoas não terem noção da importância da cultura na nossa saúde mental. Se você passa uma semana sem ouvir música ou ver filme, ou série, novela, o que for, como você acha que vai ficar? Irritado? Triste? Ansioso, talvez? Arte tem um poder de transformação e de cura muito forte. De se questionar. Uma sociedade que não valoriza sua própria cultura, corre sérios riscos de criar pessoas acéfalas, que é o que acho que nosso presidente é.

© Sillas Henrique

Estás de regresso a Portugal para concertos em Lisboa (MIL, dia 27 de Março), Porto (Bodyspace no Plano B, dia 28 de Março) e Coimbra (Salão Brazil, dia 29 de Março). O que é que guardas da primeira passagem por cá com banda e o que podemos esperar destes três concertos a que se soma a apresentação do teu livro “Zaralha” no dia 23 de Março no Le Baron em Lisboa?

Estou muito animada, parece cliché falar mas o único lugar do mundo onde me senti tão em casa quanto no Brasil é Portugal. Sou apaixonada por língua portuguesa, então estar aí, ouvir a construção das frases, o sotaque, o povo, a poesia, as ruas, tudo me emociona muito. Estar com a banda então, vai ser lindo. Esse show já roda há quase 2 anos, estamos muito entrosados e felizes de fazer nossa primeira viagem internacional.

A Música surge para ti de uma forma tardia (por volta dos vinte anos). Antes estiveste ligada ao Teatro e, mais recentemente (2015), lançaste-te na Literatura com um livro chamado “Zaralha”. Como é que convivem estas diferentes facetas em Letícia Novaes? Que livro é este e o que é que te levou a escrevê-lo agora?

Sou inquieta desde criança e não me encaixo em gavetas. Gosto de actuar, gosto de cantar, compor, escrever. Arte pra mim chega de maneira espontânea e com um pouco de disciplina também, claro. Convivo com as minhas facetas de maneira ora caótica, ora cósmica, risos. Mas sei respirar, sei entender o timming de onde direccionar minha energia. Se é pra música ou se é pro teatro, enfim. O meu livro foi lançado em 2015, é um almanaque poético, na verdade. Reúno coisas desde a minha infância até a vida adulta. É despretensioso, pra divertir, pra ser um pontinho de luz só.

Uma última pergunta para despedida. Letrux em Noite de Climão está quase a celebrar dois anos, há alguma coisa nova manga?

Vamos lançar um EP de remixes, um single e no segundo semestre gravar nosso segundo disco.
Fernando Gonçalves
f.guimaraesgoncalves@gmail.com

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