ENTREVISTAS
Luca Argel
Profissão: poeta
· 25 Out 2017 · 10:19 ·
A palavra é quem comanda a vida de Luca Argel. Seja escrita, seja cantada. É um poeta todo-o-terreno. Nasceu no Brasil mas encontrou no Porto e em Portugal uma nova casa. E foi por cá que a música deu os passos mais decisivos na sua carreira. Bandeira, o seu último disco, mais dedicado à canção do que o anterior registo, confirma a sua voz de Luca Argel como força em ascensão. Desde o seu lançamento, Luca Argel tem corrido o país de norte a sul, mostrando as cores do seu samba.

Em entrevista, abordamos a sua mudança para Portugal, o ínício da sua relação com a música, o seu último disco, a palavra, o Porto e o Brasil. E ainda tivemos tempo de abrir o jogo e sacar algumas informações em relação a projectos futuros, que são mais do que bastantes.
© Tota Alves
Moras desde 2012 em Portugal. Como foi essa adaptação?

Em viagem pelo Porto em 1909, um cronista carioca muito importante chamado João do Rio disse que na estação da Boavista sentia-se como se estivesse no Boulevard 28 de Setembro em Vila Isabel, ou na Voluntários da Pátria em Botafogo. Nesta crônica espantosa de há mais de 100 anos, o carioca mais carioca dos cariocas, que tinha o Rio até no apelido, dizia que o Porto Antigo e o Rio Antigo eram cidades irmãs (muito mais do que Lisboa, aliás, diz ele). Deixando um pouco de lado as possíveis explicações históricas pra esse parentesco, a minha experiência, de quem já vive no Porto há mais de 5 anos, talvez não divergisse muito. Não tive qualquer dificuldade pra me adaptar, o Porto recebeu-me de forma muito generosa, e até hoje não deixou de o ser. Tanto a geografia da cidade quanto o temperamento das pessoas, tudo me assentou muito bem desde o primeiro momento, e hoje, passados alguns anos, já vejo as transformações que tem acontecido na cidade e no seu patrimônio com a preocupação de um portuense!

Porquê o Porto?

Fiz aqui o meu mestrado, em Literatura, na Faculdade de Letras da UP. E para a especialidade que eu queria estudar, que era poesia moderna e contemporânea, a FLUP tinha (e ainda tem) o corpo docente mais alinhado com as minhas ideias e preferências. Fui atrás desses professores, queria estudar com eles.

© Tota Alves

Como vês a cidade nos dias que correm? No que toca à cultura, à gentrificação, o meio musical. Como é viver no Porto?

Como disse, com muita preocupação. Sempre senti que o Porto tem uma vocação natural para o pensamento divergente, e isso em termos artísticos e culturais é extremamente fértil, torna a cidade única, autêntica. Certamente o sucesso turístico da cidade deve muito a essa vocação, mas naturalmente a maior ameaça a ela hoje é precisamente o descontrole com que esse arrebatamento turístico está tomando conta de tudo. Isto é gravíssimo, e não sinto o poder público minimamente preocupado com o rumo que isto está tomando. Pelo contrário, parecem bater palmas. Fecha-se um tasco familiar como a Adega do Olho, abre-se um Starbucks; fecha-se um alfarrabista, abre-se um hostel; e assim, pouco a pouco, a cidade vai perdendo a identidade que foi seu atrativo em primeiro lugar. Isto para não falar nas pessoas sendo expulsas de casa e jogadas pra longe do centro pelo preço pornográfico dos aluguéis, em absoluto descompasso com o salário de um local. O meio musical naturalmente beneficia-se muito de uma cidade mais pujante e mais frequentada, porém isto pode ir facilmente pelo ralo se se pensar apenas em quantidade e não em qualidade. De que adianta uma cidade cheia de gente mais interessada em tirar selfies na Av. dos Aliados do que em ir ver a programação do Teatro Carlos Alberto? Um turismo estupidificador, este é o perigo com que o Porto tem flertado. É claro que o espírito da cidade e dos que aqui trabalham com arte não será quebrado tão facilmente, o pessoal aqui do norte é osso duro de roer, como se diz na minha terra, mas é preciso estar atento.

Estiveste envolvido no projecto O Casarão, que entretanto foi forçado a fechar. Como foi essa experiência?

Foi muito bonita. Durou cerca de 2 anos, e lá fizemos uma série de atividades com música, gastronomia e exposições. Foi o quartel general do meu grupo, o Samba Sem Fronteiras, que além de ensaiar lá ainda fazia de vez em quando o Batuque na Cozinha, que era uma roda de samba aberta. Foi prazeroso fazer parte da programação cultural alternativa da cidade, era pequeno mas era de coração, e acredito que essas pequenas coisas, meio clandestinas, é que enriquecem o cenário artístico e afetivo de uma cidade. Infelizmente a gentrificação nos expulsou de lá. O prédio do Casarão tem, só naquele quarteirão, pelo menos uns 5 cinco hotéis vizinhos, sem contar com os prédios da frente, todos voltados pra AirBnB. Dou um doce pra quem adivinhar o que ele vai virar agora.

Quando é que a música entrou na tua vida?

Desde muito pequeno que adorava música. Meu professor de música no infantário, o Hamiton Catete, que é hoje um grande amigo, é compositor de música infantil, e eu era apaixonado pelas músicas dele (e ainda sou!). Tem um video meu com, sei lá, 4 anos de idade, ouvindo com uns headphones maiores que a minha cabeça as cassetes do Hamilton e cantando tudo. Quando fiz 11 anos decidi que queria ser músico. Ter uma banda, escrever músicas, tocar guitarra, cantar, essas coisas. Aquilo parecia a coisa mais legal do mundo, foi fácil decidir. Nunca voltei atrás da decisão.

És formado em música pela UNIRIO. O que aprendeste por lá que tiveste de esquecer para fazer música e o que é que não aprendeste lá que tiveste de aprender depois?

Como na universidade a gente é exposto a uma quantidade muito grande de informação e ferramentas, acho que o perigo maior é a tentação de utilizá-las todas, o tempo todo, depois de aprendê-las. Daí realmente é preciso “esquecer” um pouco, quando se quer criar em conexão com o resto do mundo, que está fora da universidade. No fundo não se trata exatamente de esquecer, e sim de saber a hora e local certos de usar esses conhecimentos. E essa maturidade só vem com tempo e prática. Ainda assim, foi fora da universidade que aprendi coisas importantíssimas sobre palco, gravação, produção, som… Como qualquer atividade performática, na música os conhecimentos tem uma carga prática muito grande. O palco é o maior professor de todos.



O teu primeiro disco só chegou em 2016. A mudança para o Porto acelerou esse processo?

Sem dúvida. E mesmo antes disso, em 2014, já morando no Porto, gravei um trabalho na fronteira entre música e poesia, o Livro de Reclamações. Assinar um álbum demorou mais um pouquinho, mas se não estivesse aqui, não sei se ele teria existido.

És mestre em literatura pela Universidade do Porto e tens livros de poesia editados. O que quero perguntar no fundo é: como é que juntas e separas essas duas linguagens, a música e a poesia?

Não chega sequer a ser uma questão quando se assume o mindset de que a atividade de escrever canções, apesar de ser considerada musical no senso comum, é, historicamente, fazer poesia. Escrever poesia no papel é uma moda recente. O próprio papel é uma tecnologia recente, se o compararmos com a idade da poesia. O que um cantautor faz hoje é algo que há milênios e milênios o ser humano faz, e foi, antes da tecnologia da escrita, a principal forma de se transmitir o conhecimento e a cultura de um povo, e por isso talvez fosse o elemento mais importante da sobrevivência de uma comunidade enquanto tal. E isso é uma coisa enorme, é algo que beira o sagrado (e às vezes mergulha mesmo nele). Creio que é por isso que continuamos fazendo poesia, ou compondo canções, vai dar tudo ao mesmo. Tento não perder essa dimensão ampliada do trabalho do poeta, independente do suporte que eu esteja a utilizar, seja a voz ou o papel.

Fala-me do Bandeira, o teu último disco. É decididamente diferente do teu disco de estreia…

Sim, é muito diferente, e o seguinte será diferente dos dois! O Bandeira é um disco de sambas, o gênero com que mais trabalho hoje, e do qual me sinto mais próximo. Com ele quis apenas contar histórias. É musicalmente muito simples, e tem letras quase sempre bem diretas, fáceis de se identificar. Mas como o próprio samba, essa simplicidade tem camadas. Pode-se escutar o disco meio na diagonal e se gostar dele por essa aura de leveza, mas aos que gostam de prestar atenção nos detalhes, escrutinar o que está por trás das letras (histórias que eu geralmente revelo durante os concertos), certamente irá desvelar coisas inesperadas.

Tens tocado muito este disco ao vivo. Como é que ele se está a portar ao vivo?

Só me dá orgulho este disco. Já o toquei em ambientes os mais diversos e sempre me surpreendo com a receptividade do público. É uma coisa um pouco mágica, estar sozinho com um microfone e uma guitarra, e prender a atenção de um monte de gente por uma hora inteira. Mas como eu disse, as músicas contam histórias, acho que as pessoas gostam disso…

Como é fazer parte do grupo Samba Sem Fronteiras? É como ter um pedacinho de Brasil em Portugal?

Acho que o Samba Sem Fronteiras representa esse pedaço de Brasil sobretudo para o público que o vai assistir. Para mim é muitas coisas além disso. É um veículo de expressão, é uma escola onde aprendo e ensino ao mesmo tempo, e é também um grupo de amigos. No meio disso tudo tentamos equilibrar a tradição com a originalidade, a festa no chão com a formalidade do palco, a identidade brasileira com as influências de fora… É um desafio prazeroso.

© Tota Alves

Estando fora, é mais fácil ou mais difícil entender o teu país e lidar com a situação corrente?

É certamente mais fácil, mas apenas porque eu cresci no Brasil, vivi lá mais de vinte anos, então consigo ler nas entrelinhas as notícias que chegam aqui. É mais fácil também porque não tenho sofrido diretamente os efeitos dessa crise total que o país está passando. Na verdade acho que a questão já deixou de ser entender ou não, esse momento já passou. Já está bem claro no Brasil quem é quem na luta de classes, quem escraviza e quem é escravizado, quem lucra e quem trabalha, quem tem direitos e quem não tem. Quem diz que não compreendeu ainda é porque não quer compreender, ou está mentindo.

Pensas voltar ao Brasil um dia a titulo definitivo?

Fizeram uma vez esta pergunta à Maria Gabriela Llansol, mas sobre Portugal, e ela respondeu que não, que agora já só era possível ir para Portugal, e não voltar. Eu diria o mesmo. O Rio de Janeiro que eu deixei tinha o Maracanã ali do lado de casa, e esse Rio já não existe mais. Como seria possível “voltar”? De todo jeito, não tenho pensado em ir tão cedo, ao menos para temporadas muito longas. Ainda tenho muito o que fazer em Portugal.

Quais são os teus próximos planos? O que é que estás a cozinhar para os próximos tempos?

Até o fim do ano a maior expectativa é pros concertos do Bandeira no Brasil, que vão acontecer em dezembro. E para o ano tenho algumas coisas engatilhadas. Vai ter um disco novo, impossível de tocar ao vivo — portanto em matéria de concertos a solo, o Bandeira ainda rodará mais um pouquinho (assim espero!). Já com projetos colectivos a coisa poderá ser mais animada. Há perspectiva de lançamentos de discos tanto do Samba Sem Fronteiras quanto da Orquestra Bamba Social, da qual também participo, e de muitos concertos e rodas de samba pelo país. Também estou preparando junto com a Ana Deus um projeto bem diferente que vai estrear em novembro na Fundação Fernando Pessoa, em Lisboa, e que a gente espera poder desenvolver mais em 2018.
André Gomes
andregomes@bodyspace.net

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