ENTREVISTAS
Nobat
Um sonho em constante reconstrução
· 19 Out 2016 · 10:05 ·
Das Minas que se dizem Gerais, a Coroa Portuguesa extraiu uma quantidade incomensurável de Ouro que fez as delícias de alguns em contraponto com o sofrimento de muitos. Assim foi durante séculos. Agora, das terras de Minas Gerais e da sua capital Belo Horizonte vem um outro Ouro. Ouro em formato música pela mão de Nobat. Artista mineiro que vem ao nosso país com o seu mais recente O Novato, álbum que não virá só, como nos confidenciou o artista. Para nós, Nobat guardou duas músicas em estreia absoluta e o anúncio de um novo álbum em três actos (Estação Cidade Baixa), já em pré-produção, para 2017. Entre confidências e os amargos de boca e alma que a actual situação política brasileira causa no músico, a conversa estendeu-se até às latitudes do seu processo criativo e das inspirações oníricas que lhe vão servindo de ventre. De Luísa, companheira de vida e arte a quem dedicou composições como “LSD” até ao efervescente meio cultural belo-horizontino, Nobat faz da expansão de si próprio, para além dele e do meio que o rodeia, tela onde pinta letras que ganham tridimensionalidade na exegese da Vida e o atiram para os palcos, palcos debruados a Ouro como aqueles que o esperam por cá a partir de dia 26 deste mês.

© Rafael Sandim
Como é que começaste? Como é que a música se revelou para ti?
Bom, a música sempre esteve presente em minha vida, desde o berço. Meu pai é um excelente violinista amador, minha mãe escrevia poesias e cantava lindamente e eu cresci rodeado por discos e festas regadas à muita música. Ainda criança, comecei a estudar violão e aos poucos fui rascunhando minhas primeiras composições. Me lembro que se abriu um universo infinito na minha cabeça quando fiz a primeira música - dali em diante, eu faria do acto de compor um exercício eterno.
Essa música de que falas, já a editaste ou pensaste recuperá-la para editá-la? A que é que soa?
Na verdade, me lembro muito pouco dela, mas era muito ruim, uma coisa de começar a praticar a condição de compositor, era um pop-rock bem cafoninha.
Aquilo que te inspirava a escrever nessa altura tão precoce ainda se mantém? O que é que lhe acrescentaste?
Acredito que tenha-se mantido, desde o início, a vontade de expelir do meu corpo aquilo que não cabe aqui dentro dos limites ósseos, as experiências que acumulo, os olhares que capto, as sensações que experimento... O que surgiu depois foi aquilo que surge com o tempo, um amadurecimento que te permite investigar mais a fundo as sensações, as próprias experiências de vida são outras, as referências aumentam, o contacto que se tem com o mundo passa a acontecer de outra forma e isso, inevitavelmente nos compõe e afecta directamente a composição.
Pegando no assunto inspiração. A actual situação política e social brasileira inspira-te ou enraivece-te? Como é que estás a viver todo este caos?
A actual situação política e social brasileira é desesperadora e isso me inspira e me enraivece. Estamos vivendo um momento em que todos os direitos estão sendo desmanchados em nome de um liberalismo obsoleto e cruel, manobrados por uma política que abandona as pessoas em prol da preservação dos lucros exorbitantes de banqueiros e industriais. Estão fazendo o povo pagar a conta de uma crise económica mundial para preservar o capitalismo sem risco desse 1% de zilhionários que o Brasil possui e isso é um escândalo que mundo merece saber. Fora o fato de que o actual governo entrou por meio de um golpe institucional parlamentar, sem participar de uma eleição, rasgando os votos dados pra presidente anterior e coloca em prática um projecto que foi rejeitado nas urnas. É uma situação com a qual seguiremos vivendo por algum tempo e que me afecta muito, pessoal e artisticamente falando.
É possível traçar um paralelo entre esta situação e a vivida durante a ditadura militar? Qual é o papel do artista numa situação destas? Lembro-me do activismo de Chico Buarque, entre outros, durante aquele período...
Sim, com várias nuances, diferentes agentes e factores, mas há uma grande semelhança com aquilo que culminou no regime militar de 64. Nesta conjuntura de agora, o judiciário e a media tradicional tiveram um papel fundamental para viabilizar a manobra capitaneada pela direita brasileira e toda a narrativa que o lado golpista panfleta é de que tudo foi feito dentro da legalidade, mas todos sabemos que não. Uma presidente foi deposta sem crime nenhum de responsabilidade, por meio de um golpe parlamentar dirigido por aqueles que não aceitaram a derrota nas urnas e tentaram por todos os meios possíveis impedir que Dilma Rousseff tomasse posse. Não sei bem qual é o papel do artista nesses momentos, afinal de contas, nunca esperei vivenciar um cenário tão horrível no meu país. Acredito no meu papel de cidadão que é manter aceso o sonho de uma sociedade mais igualitária, de um país menos desigual, com mais oportunidade para que os talentos daqui sejam evidenciados e não descartados. Para que não voltemos ao mapa da fome da ONU e coisas desse tipo. Artistas como Chico Buarque não existem mais, digo isso em termos de tamanho e alcance junto às massas, acredito que precisamos focar nossa atenção nas micropolíticas e para o contacto que se faz dentro do seu universo, o olho-a-olho, a rua, o palco, o show, o bar, a família, os amigos. Minha música é resultado dessas conexões e é nelas que verdadeiramente acredito.
Falas dos valores emergentes na cena musical brasileira. Pela quantidade, qualidade e diversidade dos projectos que têm saído dos mais diversos estados brasileiros, a nova música brasileira parece estar viva, bem viva. Vens de Belo Horizonte, como é que está a cena musical lá? Consegues explicar o porquê deste boom?
A cena de Belo Horizonte é bastante agitada, temos artistas e colectivos aqui produzindo e publicando muita coisa. Há várias turmas distintas, com imaginários diversos, retratando e pautando a cidade. São tantos os nomes que fica difícil escolher quais listar. Acredito que a cidade viveu uma efervescência de acontecimentos que provocaram uma expansão da narrativa contemporânea da cidade. Os primeiros deles e os principais, a meu ver, foram os fenómenos da Praia da Estação - que contribuiu directamente pra consolidação de um dos carnavais mais incríveis do Brasil numa cidade que no período de carnaval ficava vazia -, e no Duelo de MCs, evento de encontro de rappers nacionalmente conhecido. Essas iniciativas promoveram a ocupação dos espaços públicos e o encontro de ideias muito distintas de todos os lados. Encorajaram artistas e produtores a enfrentarem a prefeitura careta, desumana e proibitiva da cidade e levarem suas acções pras ruas. Nada do que aconteceu por aqui teve um impacto tão transformador e significativo como essas duas frentes. Depois vem o carnaval se consolidando, casas de shows que apostam no autoral e na experiência artística surgindo, festivais voltando ou sendo construídos, sites, blogs. Hoje você fala em Belo Horizonte e pensa no carnaval na mesma medida em que se pensa Master Plano, uma festa muito grande baseada na experiência da música electrónica cosmopolita contemporânea. Você pensa o galpão da Benfeitoria que é um grande ponto da cena artística daqui como se pensa o recém-surgido Zona Last, lugar onde grupos de todas as linguagens têm-se encontrado e apresentado coisas, do teatro à performance, da música electrónica às artes visuais. Você pensa na Gay-Mada, um jogo-experiência que retrata o universo e o emponderamento queer... se pensa nas casas de show como A Autêntica (nosso Cavern Club, risos) e tudo surgiu há pouquíssimo tempo, estou falando de quatro ou cinco anos pra cá. Ainda temos equipamentos culturais mais antigos que seguem activos como A Obra, Casa do Jornalista, Matriz etc. E há uma sede actualizada de ocupação dos espaços públicos. É um movimento com muitos detalhes. Combinado a isso, o nível da produção musical cresceu bastante. Muitos selos, estúdios e produtores surgiram e colaboraram no lançamento de obras que marcaram seu lugar no tempo. Isso tudo ajuda também. Não há uma orientação colectiva, uma cena com agentes andando conscientemente na mesma direcção, mas percebo uma intersecção do imaginário contemporâneo de espíritos livres em busca de expor suas narrativas e criar lastros, referências e possibilidades pra todas as pessoas.
E é neste contexto que surge a ALA4. Queres falar-nos um pouco sobre este colectivo?
Sim, é exactamente aí que surge a ALA4. Somos um grupo de amigos, antes de qualquer coisa, que trabalha há algum tempo junto nos feitos artísticos ligados à música, ao audiovisual, à fotografia, ao design, à performance e aos processos que abraçam várias dessas linguagens juntas. Nós costumamos travar em nossas noites e reuniões discussões as mais diversas sobre tudo que é tema. Vimos surgir várias narrativas na cidade e nos percebemos como parte de todas elas, mas sem necessariamente sê-las no seu âmago, apenas na sua possibilidade. Bebemos um pouco de todas as turmas, obras, artistas pra poder movimentar nosso campo de actuação e colorir nossos olhares ora num lado, ora noutro, promovendo assim a conexão de imaginários e turmas que jamais se encontrariam. Estamos actualmente estudando o corpo e suas possibilidades. Dentro desse estudo, minha noção parte do princípio de que tudo é corpo: corpo-sonoro, corpo-cidade, corpo-palavra, corpo-imagem, corpo-matéria, corpo-corpo... Acredito na plasticidade da vida e que assim como se revela um som ou uma fotografia por um ângulo nunca antes visto, pode-se revelar um corpo, inventar novas possibilidades e construir novas narrativas para todas as questões. Tudo que vivemos na sociedade é o reflexo de uma construção social. Pois bem, se tudo é construído, então tudo torna-se construível. É nisso que vejo a ALA4 actuando, ainda estamos nos primeiros laboratórios de nossos trabalhos, mas tenho certeza que muita coisa vai sair dali. Somos um grupo que troca dados de uma maneira muito interessante e isso sempre movimenta coisas importantes.
Qual é o objectivo da ALA4 a médio, longo prazo?
Estamos com uma nova mostra pra fazer em Belo Horizonte, São Paulo, Rio de Janeiro e Goiânia a partir do ano que vem, apesar de que vamos fazer um laboratório disso assim que eu voltar de Portugal aqui apenas para convidados. O Tiago Tereza que é um dos nossos amigos tá escrevendo um livro que tem a casa de encontro da ALA4 como personagem principal, deve sair no ano que vem e tem o EP da LULI que também deve sair no ano que vem, tudo isso sob a chancela da ALA. Além disso, nossa ideia é abrir conexões e residências artísticas com pessoas do Brasil todo, queremos viajar pra frequentar outras cenas e receber artistas na nossa casa pra depois transformar esses processos e experiências em obras que não sei quais são, mas o lugar da ALA é da prática, vamos fazer muitas coisas.
A ALA4 também vem contigo a Portugal?
Não, a ideia era de irmos juntos, mas acabou não dando certo.
Quem era o Nobat de Disco Arranhado (2012) e quem é o Nobat de hoje? O que mudou?
Acredito que muita coisa tenha mudado e muita coisa também se preservou, evidentemente. A maior e mais notável diferença é a coragem que surgiu para buscar meus caminhos, minha voz, minha musicalidade, meu ritmo. Além disso, a principal razão de surgimento d'O Novato foi um processo de reconstrução de imaginário pelo qual passei e que transformou várias faces da minha existência. Isso, evidentemente, chega ao meu lado artístico.
Queres falar-nos um pouco sobre essa "reconstrução" do teu imaginário?
Foi um momento de auto-descoberta, desencadeado por um sonho. Revisitei algumas coisas do meu passado e elas permitiram que eu enxergasse possibilidades diferentes pra um outro Presente e Futuro. Sonhei com um encontro com um amigo e aquilo mais parecia um portal de expansão de consciência. Acordei com vontade de viver.
A Luísa também teve alguma coisa a ver com isso, certo? Os temas "Luísa" e "LSD" foram para ela…
Luísa tem a ver com tudo, claro. Divido a vida, a arte e as possibilidades todas praticamente com ela. As canções tratam questões distintas. "Luísa" fala sobre como nos conhecemos e como a coisa entre nós se deu, é uma música de um olhar memorial. "LSD" já é uma cena, parte de uma noite que tivemos e que foi muito importante por uma série de razões.
Puxando um bocado a K7 atrás. "Pronto para Morrer (O Poder de Uma Mentira Dita Mil Vezes) é o quê, especificamente?
“Pronto Pra Morrer” é uma música de um grande artista brasileiro da actual cena musical chamado Jair Naves. Uma vez ele veio pra Belo Horizonte, minha cidade, e fui convidado pelo selo que o estava trazendo para compor uma versão de uma de suas músicas ao lado de outros artistas de Belo Horizonte. Publicamos as versões numa colectânea chamada Para Jair e, a partir de então, apresentei a canção algumas vezes em espectáculos diversos. Tive a honra de cantá-la com Jair Naves em um show que fiz em São Paulo também.
Também fizeste uma versão de "Não Sei Dançar" da Marina Lima. É uma forma de homenagem, este caminho das versões?
Sim, certamente. Sou um artista muito vinculado a todas as faces da música brasileira e homenagear as canções, publicando-as sob meu filtro estético, é uma forma de saudar esse universo gigante que é a música no Brasil e a importância dela em minha vida.
Desse universo imenso que é a Música brasileira, quem são os artistas a que vais beber inspiração? Quem são as tuas grandes referências e quem são, na tua opinião, os novos valores a quem vale a pena prestar atenção?
São muitos nomes, a música brasileira é muito rica e plural. Caetano Veloso, Gilberto Gil, Elis Regina, Jards Macalé, Jorge Mautner, Tom Jobim, Noel Rosa, Cartola, Tom Zé, Os Mutantes, Jorge Ben, Chico Buarque, Milton Nascimento, Bethânia, Gal, Sérgio Sampaio... São alguns dos vários nomes daqueles artistas que são meus mestres na música brasileira. Sobre os novos nomes, estamos numa fase maravilhosa com grandes obras sendo publicadas, com destaque para Minas Gerais, terra de Luiz Gabriel Lopes, Juliana Perdigão, Iconili, Dibigode, Constantina. Gosto muito de um compositor bem novo de Belo Horizonte chamado Fábio de Carvalho e dos caminhos que tem seguido a banda El Toro Fuerte. Descobri recentemente uma artista chamado Lessa Gustavo e fiquei maravilhado. Temos uma gama imensa de artistas produzindo novas coisas. Carne Doce (Goiânia), Ava Rocha (Bahia), Tatá Aeroplano (São Paulo) e Karina Buhr (Recife) também estão entre os meus nomes favoritos.
E de Portugal? Conheces alguém, há algum projecto que te desperte a atenção?
Há coisas de que gosto muito sendo feitas aí. Conheci via Caetano Veloso a cantora Carminho que é um sucesso no Brasil. Também na linha do fado tem o António Zambujo que é bastante conhecido por aqui também. Descobri recentemente o trabalho do Bruno Pernadas e gostei bastante, acho que é uma das coisas feitas em Portugal de que mais gosto. Éme tem um trabalho legal em música popular. Também gosto dos grupos Buraka Som Sistema e dos Orelha Negra. Descobri por causa da turnê a banda Travessa do Corrupto com quem eu dividirei duas noites em Lisboa, pelo pouco que ouvi, o trabalho é lindo, fiquei muito feliz de estar ao lado deles.
Pelo que se percebe, já estas preparado para enfrentar "as feras" por cá. Como é que estás a preparar a tournée pelo nosso país?
Estamos fazendo uma preparação natural de shows, descansando bastante porque a turnê vai ser bem pesada, concerto atrás de concerto - em alguns casos temos mais de um no mesmo dia. Temos feito muitos ensaios pra conseguir traduzir a musicalidade do disco no formato em trio. Já fizemos alguns shows nessa formação, então tem ficado muito bem posicionados os elementos que vamos levar pros palcos de Portugal. Sou suspeito pra falar, claro, mas o show está maravilhoso.
Para além de O Novato vais estrear algo novo por cá?
Sim! Vamos estrear duas músicas novas que estarão no próximo disco e também uma versão da música "Desentoado", de um grupo regional dos anos 70 de Minas Gerais chamado "Raízes" que lançaremos como single no ano que vem também.
Esse álbum novo já tem nome e/ou data de lançamento? Seguirá a linha do anterior ou vai ser mais uma “reconstrução”?
Vocês vão saber disso em primeira mão, ainda não falei nada pra ninguém, nem no Brasil (risos). O disco tem nome, vai se chamar Estação Cidade Baixa e vai ser mais uma reconstrução, porém preserva algumas das varandas que O Novato construiu. Serão, na verdade, três EP lançados a partir de Abril de 2017.
Três EP? Um disco por capítulos?
Isso, dividi a obra em três actos. O primeiro ato é o Estação, na sequência o Cidade e por fim, Baixa. É um disco que vai discutir muito a cidade de Belo Horizonte, mas há questões universais, claro. As canções estão todas prontas, estamos em fase de pré-produção.
Fernando GonçalvesBom, a música sempre esteve presente em minha vida, desde o berço. Meu pai é um excelente violinista amador, minha mãe escrevia poesias e cantava lindamente e eu cresci rodeado por discos e festas regadas à muita música. Ainda criança, comecei a estudar violão e aos poucos fui rascunhando minhas primeiras composições. Me lembro que se abriu um universo infinito na minha cabeça quando fiz a primeira música - dali em diante, eu faria do acto de compor um exercício eterno.
Essa música de que falas, já a editaste ou pensaste recuperá-la para editá-la? A que é que soa?
Na verdade, me lembro muito pouco dela, mas era muito ruim, uma coisa de começar a praticar a condição de compositor, era um pop-rock bem cafoninha.
Aquilo que te inspirava a escrever nessa altura tão precoce ainda se mantém? O que é que lhe acrescentaste?
Acredito que tenha-se mantido, desde o início, a vontade de expelir do meu corpo aquilo que não cabe aqui dentro dos limites ósseos, as experiências que acumulo, os olhares que capto, as sensações que experimento... O que surgiu depois foi aquilo que surge com o tempo, um amadurecimento que te permite investigar mais a fundo as sensações, as próprias experiências de vida são outras, as referências aumentam, o contacto que se tem com o mundo passa a acontecer de outra forma e isso, inevitavelmente nos compõe e afecta directamente a composição.
Pegando no assunto inspiração. A actual situação política e social brasileira inspira-te ou enraivece-te? Como é que estás a viver todo este caos?
A actual situação política e social brasileira é desesperadora e isso me inspira e me enraivece. Estamos vivendo um momento em que todos os direitos estão sendo desmanchados em nome de um liberalismo obsoleto e cruel, manobrados por uma política que abandona as pessoas em prol da preservação dos lucros exorbitantes de banqueiros e industriais. Estão fazendo o povo pagar a conta de uma crise económica mundial para preservar o capitalismo sem risco desse 1% de zilhionários que o Brasil possui e isso é um escândalo que mundo merece saber. Fora o fato de que o actual governo entrou por meio de um golpe institucional parlamentar, sem participar de uma eleição, rasgando os votos dados pra presidente anterior e coloca em prática um projecto que foi rejeitado nas urnas. É uma situação com a qual seguiremos vivendo por algum tempo e que me afecta muito, pessoal e artisticamente falando.

© Rafael Sandim
É possível traçar um paralelo entre esta situação e a vivida durante a ditadura militar? Qual é o papel do artista numa situação destas? Lembro-me do activismo de Chico Buarque, entre outros, durante aquele período...
Sim, com várias nuances, diferentes agentes e factores, mas há uma grande semelhança com aquilo que culminou no regime militar de 64. Nesta conjuntura de agora, o judiciário e a media tradicional tiveram um papel fundamental para viabilizar a manobra capitaneada pela direita brasileira e toda a narrativa que o lado golpista panfleta é de que tudo foi feito dentro da legalidade, mas todos sabemos que não. Uma presidente foi deposta sem crime nenhum de responsabilidade, por meio de um golpe parlamentar dirigido por aqueles que não aceitaram a derrota nas urnas e tentaram por todos os meios possíveis impedir que Dilma Rousseff tomasse posse. Não sei bem qual é o papel do artista nesses momentos, afinal de contas, nunca esperei vivenciar um cenário tão horrível no meu país. Acredito no meu papel de cidadão que é manter aceso o sonho de uma sociedade mais igualitária, de um país menos desigual, com mais oportunidade para que os talentos daqui sejam evidenciados e não descartados. Para que não voltemos ao mapa da fome da ONU e coisas desse tipo. Artistas como Chico Buarque não existem mais, digo isso em termos de tamanho e alcance junto às massas, acredito que precisamos focar nossa atenção nas micropolíticas e para o contacto que se faz dentro do seu universo, o olho-a-olho, a rua, o palco, o show, o bar, a família, os amigos. Minha música é resultado dessas conexões e é nelas que verdadeiramente acredito.
Falas dos valores emergentes na cena musical brasileira. Pela quantidade, qualidade e diversidade dos projectos que têm saído dos mais diversos estados brasileiros, a nova música brasileira parece estar viva, bem viva. Vens de Belo Horizonte, como é que está a cena musical lá? Consegues explicar o porquê deste boom?
A cena de Belo Horizonte é bastante agitada, temos artistas e colectivos aqui produzindo e publicando muita coisa. Há várias turmas distintas, com imaginários diversos, retratando e pautando a cidade. São tantos os nomes que fica difícil escolher quais listar. Acredito que a cidade viveu uma efervescência de acontecimentos que provocaram uma expansão da narrativa contemporânea da cidade. Os primeiros deles e os principais, a meu ver, foram os fenómenos da Praia da Estação - que contribuiu directamente pra consolidação de um dos carnavais mais incríveis do Brasil numa cidade que no período de carnaval ficava vazia -, e no Duelo de MCs, evento de encontro de rappers nacionalmente conhecido. Essas iniciativas promoveram a ocupação dos espaços públicos e o encontro de ideias muito distintas de todos os lados. Encorajaram artistas e produtores a enfrentarem a prefeitura careta, desumana e proibitiva da cidade e levarem suas acções pras ruas. Nada do que aconteceu por aqui teve um impacto tão transformador e significativo como essas duas frentes. Depois vem o carnaval se consolidando, casas de shows que apostam no autoral e na experiência artística surgindo, festivais voltando ou sendo construídos, sites, blogs. Hoje você fala em Belo Horizonte e pensa no carnaval na mesma medida em que se pensa Master Plano, uma festa muito grande baseada na experiência da música electrónica cosmopolita contemporânea. Você pensa o galpão da Benfeitoria que é um grande ponto da cena artística daqui como se pensa o recém-surgido Zona Last, lugar onde grupos de todas as linguagens têm-se encontrado e apresentado coisas, do teatro à performance, da música electrónica às artes visuais. Você pensa na Gay-Mada, um jogo-experiência que retrata o universo e o emponderamento queer... se pensa nas casas de show como A Autêntica (nosso Cavern Club, risos) e tudo surgiu há pouquíssimo tempo, estou falando de quatro ou cinco anos pra cá. Ainda temos equipamentos culturais mais antigos que seguem activos como A Obra, Casa do Jornalista, Matriz etc. E há uma sede actualizada de ocupação dos espaços públicos. É um movimento com muitos detalhes. Combinado a isso, o nível da produção musical cresceu bastante. Muitos selos, estúdios e produtores surgiram e colaboraram no lançamento de obras que marcaram seu lugar no tempo. Isso tudo ajuda também. Não há uma orientação colectiva, uma cena com agentes andando conscientemente na mesma direcção, mas percebo uma intersecção do imaginário contemporâneo de espíritos livres em busca de expor suas narrativas e criar lastros, referências e possibilidades pra todas as pessoas.

© Rafael Sandim
E é neste contexto que surge a ALA4. Queres falar-nos um pouco sobre este colectivo?
Sim, é exactamente aí que surge a ALA4. Somos um grupo de amigos, antes de qualquer coisa, que trabalha há algum tempo junto nos feitos artísticos ligados à música, ao audiovisual, à fotografia, ao design, à performance e aos processos que abraçam várias dessas linguagens juntas. Nós costumamos travar em nossas noites e reuniões discussões as mais diversas sobre tudo que é tema. Vimos surgir várias narrativas na cidade e nos percebemos como parte de todas elas, mas sem necessariamente sê-las no seu âmago, apenas na sua possibilidade. Bebemos um pouco de todas as turmas, obras, artistas pra poder movimentar nosso campo de actuação e colorir nossos olhares ora num lado, ora noutro, promovendo assim a conexão de imaginários e turmas que jamais se encontrariam. Estamos actualmente estudando o corpo e suas possibilidades. Dentro desse estudo, minha noção parte do princípio de que tudo é corpo: corpo-sonoro, corpo-cidade, corpo-palavra, corpo-imagem, corpo-matéria, corpo-corpo... Acredito na plasticidade da vida e que assim como se revela um som ou uma fotografia por um ângulo nunca antes visto, pode-se revelar um corpo, inventar novas possibilidades e construir novas narrativas para todas as questões. Tudo que vivemos na sociedade é o reflexo de uma construção social. Pois bem, se tudo é construído, então tudo torna-se construível. É nisso que vejo a ALA4 actuando, ainda estamos nos primeiros laboratórios de nossos trabalhos, mas tenho certeza que muita coisa vai sair dali. Somos um grupo que troca dados de uma maneira muito interessante e isso sempre movimenta coisas importantes.
Qual é o objectivo da ALA4 a médio, longo prazo?
Estamos com uma nova mostra pra fazer em Belo Horizonte, São Paulo, Rio de Janeiro e Goiânia a partir do ano que vem, apesar de que vamos fazer um laboratório disso assim que eu voltar de Portugal aqui apenas para convidados. O Tiago Tereza que é um dos nossos amigos tá escrevendo um livro que tem a casa de encontro da ALA4 como personagem principal, deve sair no ano que vem e tem o EP da LULI que também deve sair no ano que vem, tudo isso sob a chancela da ALA. Além disso, nossa ideia é abrir conexões e residências artísticas com pessoas do Brasil todo, queremos viajar pra frequentar outras cenas e receber artistas na nossa casa pra depois transformar esses processos e experiências em obras que não sei quais são, mas o lugar da ALA é da prática, vamos fazer muitas coisas.
A ALA4 também vem contigo a Portugal?
Não, a ideia era de irmos juntos, mas acabou não dando certo.
Quem era o Nobat de Disco Arranhado (2012) e quem é o Nobat de hoje? O que mudou?
Acredito que muita coisa tenha mudado e muita coisa também se preservou, evidentemente. A maior e mais notável diferença é a coragem que surgiu para buscar meus caminhos, minha voz, minha musicalidade, meu ritmo. Além disso, a principal razão de surgimento d'O Novato foi um processo de reconstrução de imaginário pelo qual passei e que transformou várias faces da minha existência. Isso, evidentemente, chega ao meu lado artístico.
Queres falar-nos um pouco sobre essa "reconstrução" do teu imaginário?
Foi um momento de auto-descoberta, desencadeado por um sonho. Revisitei algumas coisas do meu passado e elas permitiram que eu enxergasse possibilidades diferentes pra um outro Presente e Futuro. Sonhei com um encontro com um amigo e aquilo mais parecia um portal de expansão de consciência. Acordei com vontade de viver.
A Luísa também teve alguma coisa a ver com isso, certo? Os temas "Luísa" e "LSD" foram para ela…
Luísa tem a ver com tudo, claro. Divido a vida, a arte e as possibilidades todas praticamente com ela. As canções tratam questões distintas. "Luísa" fala sobre como nos conhecemos e como a coisa entre nós se deu, é uma música de um olhar memorial. "LSD" já é uma cena, parte de uma noite que tivemos e que foi muito importante por uma série de razões.
Puxando um bocado a K7 atrás. "Pronto para Morrer (O Poder de Uma Mentira Dita Mil Vezes) é o quê, especificamente?
“Pronto Pra Morrer” é uma música de um grande artista brasileiro da actual cena musical chamado Jair Naves. Uma vez ele veio pra Belo Horizonte, minha cidade, e fui convidado pelo selo que o estava trazendo para compor uma versão de uma de suas músicas ao lado de outros artistas de Belo Horizonte. Publicamos as versões numa colectânea chamada Para Jair e, a partir de então, apresentei a canção algumas vezes em espectáculos diversos. Tive a honra de cantá-la com Jair Naves em um show que fiz em São Paulo também.
Também fizeste uma versão de "Não Sei Dançar" da Marina Lima. É uma forma de homenagem, este caminho das versões?
Sim, certamente. Sou um artista muito vinculado a todas as faces da música brasileira e homenagear as canções, publicando-as sob meu filtro estético, é uma forma de saudar esse universo gigante que é a música no Brasil e a importância dela em minha vida.

© Rafael Sandim
Desse universo imenso que é a Música brasileira, quem são os artistas a que vais beber inspiração? Quem são as tuas grandes referências e quem são, na tua opinião, os novos valores a quem vale a pena prestar atenção?
São muitos nomes, a música brasileira é muito rica e plural. Caetano Veloso, Gilberto Gil, Elis Regina, Jards Macalé, Jorge Mautner, Tom Jobim, Noel Rosa, Cartola, Tom Zé, Os Mutantes, Jorge Ben, Chico Buarque, Milton Nascimento, Bethânia, Gal, Sérgio Sampaio... São alguns dos vários nomes daqueles artistas que são meus mestres na música brasileira. Sobre os novos nomes, estamos numa fase maravilhosa com grandes obras sendo publicadas, com destaque para Minas Gerais, terra de Luiz Gabriel Lopes, Juliana Perdigão, Iconili, Dibigode, Constantina. Gosto muito de um compositor bem novo de Belo Horizonte chamado Fábio de Carvalho e dos caminhos que tem seguido a banda El Toro Fuerte. Descobri recentemente uma artista chamado Lessa Gustavo e fiquei maravilhado. Temos uma gama imensa de artistas produzindo novas coisas. Carne Doce (Goiânia), Ava Rocha (Bahia), Tatá Aeroplano (São Paulo) e Karina Buhr (Recife) também estão entre os meus nomes favoritos.
E de Portugal? Conheces alguém, há algum projecto que te desperte a atenção?
Há coisas de que gosto muito sendo feitas aí. Conheci via Caetano Veloso a cantora Carminho que é um sucesso no Brasil. Também na linha do fado tem o António Zambujo que é bastante conhecido por aqui também. Descobri recentemente o trabalho do Bruno Pernadas e gostei bastante, acho que é uma das coisas feitas em Portugal de que mais gosto. Éme tem um trabalho legal em música popular. Também gosto dos grupos Buraka Som Sistema e dos Orelha Negra. Descobri por causa da turnê a banda Travessa do Corrupto com quem eu dividirei duas noites em Lisboa, pelo pouco que ouvi, o trabalho é lindo, fiquei muito feliz de estar ao lado deles.
Pelo que se percebe, já estas preparado para enfrentar "as feras" por cá. Como é que estás a preparar a tournée pelo nosso país?
Estamos fazendo uma preparação natural de shows, descansando bastante porque a turnê vai ser bem pesada, concerto atrás de concerto - em alguns casos temos mais de um no mesmo dia. Temos feito muitos ensaios pra conseguir traduzir a musicalidade do disco no formato em trio. Já fizemos alguns shows nessa formação, então tem ficado muito bem posicionados os elementos que vamos levar pros palcos de Portugal. Sou suspeito pra falar, claro, mas o show está maravilhoso.
Para além de O Novato vais estrear algo novo por cá?
Sim! Vamos estrear duas músicas novas que estarão no próximo disco e também uma versão da música "Desentoado", de um grupo regional dos anos 70 de Minas Gerais chamado "Raízes" que lançaremos como single no ano que vem também.
Esse álbum novo já tem nome e/ou data de lançamento? Seguirá a linha do anterior ou vai ser mais uma “reconstrução”?
Vocês vão saber disso em primeira mão, ainda não falei nada pra ninguém, nem no Brasil (risos). O disco tem nome, vai se chamar Estação Cidade Baixa e vai ser mais uma reconstrução, porém preserva algumas das varandas que O Novato construiu. Serão, na verdade, três EP lançados a partir de Abril de 2017.
Três EP? Um disco por capítulos?
Isso, dividi a obra em três actos. O primeiro ato é o Estação, na sequência o Cidade e por fim, Baixa. É um disco que vai discutir muito a cidade de Belo Horizonte, mas há questões universais, claro. As canções estão todas prontas, estamos em fase de pré-produção.
f.guimaraesgoncalves@gmail.com
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