ENTREVISTAS
Medeiros/Lucas
Há Mar e Mar, há ir e voltar
· 13 Mai 2016 · 10:09 ·
Com chuva fomos e com chuva viemos, no interlúdio de tanta chuva, tivemos Pedro Lucas, também ele em interlúdio de uma residência artística “entre o milho” dos arrabaldes de Guimarães, em formato singular mas com pensamento em trindade Medeiros/Lucas/João Pedro Porto, este último, responsável pelas letras do novo Terra do Corpo. Filosofia, cerveja e um cigarro cravado com banhos de profundidade à mistura, numa conversa que se centrou na construção do álbum e na forma como este se integra numa trilogia nascida com Mar Aberto e que terminará no próximo ano, altura em que os Medeiros/Lucas fecharão esta trindade humana. Humanismo que parece ser a palavra de toque desta entrevista realizada no Centro Cultural Vila Flor, Guimarães, e que terminou como termina o Humanismo nos dias de hoje…no lixo, este, no entanto, “lógico” vindo de Tom Zé e da sua Tropicália. Convosco Pedro Lucas, humano, demasiado humano…

© Nuno Carvalho
Explica-me a trindade a que estão associados os álbuns Mar Aberto e Terra do Corpo. Essa ligação com a procura do equilíbrio, com a orgânica, o Homem nas suas diferentes facetas…
É um bocadinho complicado avançar muitas coisas neste capítulo uma vez que apesar de eu ter uma ideia de base mais ou menos assente o João Pedro é bem capaz de me dar as voltas e arranjar uma maneira muito mais interessante de abordar o tema. De qualquer forma a ideia por agora será o de fechar o círculo com disco sobre a razão, criando a tal trindade.
De que Homem falamos?
Digamos que a "nossa" personagem é um homem normal a lidar consigo próprio. No primeiro lidou com os sonhos e emoções, no segundo com o corpo, a fisicalidade e que, a certa altura, terá de lidar com os seus pensamentos. A ordem é indiferente. E a própria partição entre corpo-mente-emoção é bastante arbitrária, estamos a falar de uma linha contínua entre todos (vide António Damásio).
Em Mar Aberto surge a ideia de um Ulisses que embarca rumo ao desconhecido e volta à sua terra para contar como venceu as provações enviadas pelos deuses do Olimpo. Sugere-nos a ideia de viagem…é para continuar?
À partida o elemento da viagem também vai continuar, não sei ainda em que moldes, provavelmente só sugerida através de elementos estéticos como foi este Terra do Corpo.
Há uma forte ligação vossa a Gonçalo M. Tavares, nomeadamente, ao livro "Aprender a Rezar na Era da técnica...
Tanto o João, como o Carlos ou eu somos grandes fãs do Tavares. Esse título veio-me à memória numa conversa com o João em que estávamos a tentar arranjar uma forma simples de explicar as "lutas" e as "revoluções" de que o Terra do Corpo fala. A revolução a que aludimos é humanista. Tem a ver com uma chamada da atenção para o triunfo do racionalismo, um "será que isto não foi um bocadinho longe demais"? Tanto algoritmo, tanta folha de excel, tanto reducionismo ao quantificável, à causa-efeito linear. Não estamos a perder qualquer coisa no meio disto tudo? Será que isto nos está a levar para algum sítio melhor?
E eis que surge o convite ao João Pedro Porto. Creio que envolve e-mails desesperados…
Foi o tal e-mail com o título "all-in" - Músicos procuram Escritor - que levou a que o Carlos, o João e eu nos sentássemos na esplanada do café da Biblioteca Pública de Ponta Delgada durante o Tremor do ano passado. A empatia criou-se e começou-se logo aí a enviar ideias para o ar (o João é extremamente prolífero). A partir daí começamos, mais à distância, a trocar ideias até que numa dessa troca de e-mails surge a expressão “Terra do Corpo” que foi logo adoptada e que ajudou a balizar o desenvolvimento do resto do projecto.
Foi um processo complicado?
Digamos que em Agosto do ano passado o João enviou-me os primeiros esquissos de poemas que eu fui tentando musicar. Cada vez que surgia uma ideia, gravava e envia-lhe de volta com a nossa estrutura e cadência para que ele comentasse ou aprovasse. Se ele estivesse de acordo (esteve sempre) desenvolvia o resto da letra a partir daí já com a estrutura de canção. Mas foi um diálogo muito orgânico, um ping-pong entre mim e ele.
Tais como…
A título de exemplo, a parte do "Dá-me sede" na "Sede" surge já depois da canção estar composta e estruturada. Quando o João me envia a letra final completa decidiu adicionar de "sorrapa" essa linha - dá-me sede - e eu decidi criar aquela "bridge" na canção.
"Geneticamente político", é a forma como vocês explicam Terra do Corpo mas, no entanto, explicavas-me em off que não é tanto assim. Podes explicar-nos?
Eu acho que a (ou uma) das formas mais básicas de começar a pensar em política é a partir do momento em que queres comer. Uma espécie de um instinto de sobrevivência organizado para um contexto social. O corpo reage à fome, mas o corpo vive e tem falta de outros corpos. Há aqui uma intersubjetividade que é muito complexa mas é essencial: os interstícios, o espaço que está entre as pessoas e onde muito do nosso comportamento se define. O João é sublime a lidar com esse tema, isso foi uma coisa que me chamou muito à atenção no Porta Azul para Macau. E aqui decidimos abordar isto de uma forma mais física, daí a metáfora da “Terra do Corpo”. A política aqui é a capacidade de agir, de construir a realidade com as nossas próprias mãos. Se vem de direita ou de esquerda é irrelevante desde que participe nessa construção social de forma honesta. Pura e simples cidadania no fundo, mas explorada do ponto de vista da fisicalidade.
As músicas de Terra do Corpo parecem encerrar em si motes como "corrupção", "chico-espertismo", "imigração". Falam-me de "Corpo Vazio"...
O Corpo Vazio é o corpo apático, oco de valores (éticos, morais) e preenchido com tudo o resto; muitas vezes embrenhado numa teia de códigos de comportamento absorvidos sem qualquer tipo de reflexão crítica, mas que trazem um conforto (oco) no que toca à nossa conduta social. Quanto à corrupção, chico-espertismo ou emigração parece-me difícil afirmar isso de forma categórica, tens de perguntar ao João:). Acho que estás a falar de sintomas e nós tentámos falar do que poderão ser as causas - o que também deixa espaço para que isso caiba lá tudo.
"Lixo Lógico", uma expressão que te é muito cara, podes explicar?
Tom Zé falo-o de melhor forma: “Na década de 1960, Caetano e Gil ouviram Beatles e Mutantes, leram Oswald e Agrippino, assistiram às peças de Zé Celso, conheceram os devaneios de Oiticica e se incomodaram (…) Sentiram que um mar de inovações os convocava à luta e que a tal da MPB necessitava abraçar de vez a modernidade. Foi daí que o lixo lógico abandonou o hipotálamo deles e reiinvadiu o córtex. Em outras palavras: os dois perceberam que tinham de resgatar o aprendizado do interior, a herança dos árabes, a tradição oral e uni-los à cultura pop do Ocidente, filha directa do pensamento aristotélico. Conseguiram, assim, engendrar um ser inteiramente original, a dona Tropicália”.
Fernando GonçalvesÉ um bocadinho complicado avançar muitas coisas neste capítulo uma vez que apesar de eu ter uma ideia de base mais ou menos assente o João Pedro é bem capaz de me dar as voltas e arranjar uma maneira muito mais interessante de abordar o tema. De qualquer forma a ideia por agora será o de fechar o círculo com disco sobre a razão, criando a tal trindade.
De que Homem falamos?
Digamos que a "nossa" personagem é um homem normal a lidar consigo próprio. No primeiro lidou com os sonhos e emoções, no segundo com o corpo, a fisicalidade e que, a certa altura, terá de lidar com os seus pensamentos. A ordem é indiferente. E a própria partição entre corpo-mente-emoção é bastante arbitrária, estamos a falar de uma linha contínua entre todos (vide António Damásio).

© Nuno Carvalho
Em Mar Aberto surge a ideia de um Ulisses que embarca rumo ao desconhecido e volta à sua terra para contar como venceu as provações enviadas pelos deuses do Olimpo. Sugere-nos a ideia de viagem…é para continuar?
À partida o elemento da viagem também vai continuar, não sei ainda em que moldes, provavelmente só sugerida através de elementos estéticos como foi este Terra do Corpo.
Há uma forte ligação vossa a Gonçalo M. Tavares, nomeadamente, ao livro "Aprender a Rezar na Era da técnica...
Tanto o João, como o Carlos ou eu somos grandes fãs do Tavares. Esse título veio-me à memória numa conversa com o João em que estávamos a tentar arranjar uma forma simples de explicar as "lutas" e as "revoluções" de que o Terra do Corpo fala. A revolução a que aludimos é humanista. Tem a ver com uma chamada da atenção para o triunfo do racionalismo, um "será que isto não foi um bocadinho longe demais"? Tanto algoritmo, tanta folha de excel, tanto reducionismo ao quantificável, à causa-efeito linear. Não estamos a perder qualquer coisa no meio disto tudo? Será que isto nos está a levar para algum sítio melhor?
E eis que surge o convite ao João Pedro Porto. Creio que envolve e-mails desesperados…
Foi o tal e-mail com o título "all-in" - Músicos procuram Escritor - que levou a que o Carlos, o João e eu nos sentássemos na esplanada do café da Biblioteca Pública de Ponta Delgada durante o Tremor do ano passado. A empatia criou-se e começou-se logo aí a enviar ideias para o ar (o João é extremamente prolífero). A partir daí começamos, mais à distância, a trocar ideias até que numa dessa troca de e-mails surge a expressão “Terra do Corpo” que foi logo adoptada e que ajudou a balizar o desenvolvimento do resto do projecto.
Foi um processo complicado?
Digamos que em Agosto do ano passado o João enviou-me os primeiros esquissos de poemas que eu fui tentando musicar. Cada vez que surgia uma ideia, gravava e envia-lhe de volta com a nossa estrutura e cadência para que ele comentasse ou aprovasse. Se ele estivesse de acordo (esteve sempre) desenvolvia o resto da letra a partir daí já com a estrutura de canção. Mas foi um diálogo muito orgânico, um ping-pong entre mim e ele.
Tais como…
A título de exemplo, a parte do "Dá-me sede" na "Sede" surge já depois da canção estar composta e estruturada. Quando o João me envia a letra final completa decidiu adicionar de "sorrapa" essa linha - dá-me sede - e eu decidi criar aquela "bridge" na canção.

© Nuno Carvalho
"Geneticamente político", é a forma como vocês explicam Terra do Corpo mas, no entanto, explicavas-me em off que não é tanto assim. Podes explicar-nos?
Eu acho que a (ou uma) das formas mais básicas de começar a pensar em política é a partir do momento em que queres comer. Uma espécie de um instinto de sobrevivência organizado para um contexto social. O corpo reage à fome, mas o corpo vive e tem falta de outros corpos. Há aqui uma intersubjetividade que é muito complexa mas é essencial: os interstícios, o espaço que está entre as pessoas e onde muito do nosso comportamento se define. O João é sublime a lidar com esse tema, isso foi uma coisa que me chamou muito à atenção no Porta Azul para Macau. E aqui decidimos abordar isto de uma forma mais física, daí a metáfora da “Terra do Corpo”. A política aqui é a capacidade de agir, de construir a realidade com as nossas próprias mãos. Se vem de direita ou de esquerda é irrelevante desde que participe nessa construção social de forma honesta. Pura e simples cidadania no fundo, mas explorada do ponto de vista da fisicalidade.
As músicas de Terra do Corpo parecem encerrar em si motes como "corrupção", "chico-espertismo", "imigração". Falam-me de "Corpo Vazio"...
O Corpo Vazio é o corpo apático, oco de valores (éticos, morais) e preenchido com tudo o resto; muitas vezes embrenhado numa teia de códigos de comportamento absorvidos sem qualquer tipo de reflexão crítica, mas que trazem um conforto (oco) no que toca à nossa conduta social. Quanto à corrupção, chico-espertismo ou emigração parece-me difícil afirmar isso de forma categórica, tens de perguntar ao João:). Acho que estás a falar de sintomas e nós tentámos falar do que poderão ser as causas - o que também deixa espaço para que isso caiba lá tudo.
"Lixo Lógico", uma expressão que te é muito cara, podes explicar?
Tom Zé falo-o de melhor forma: “Na década de 1960, Caetano e Gil ouviram Beatles e Mutantes, leram Oswald e Agrippino, assistiram às peças de Zé Celso, conheceram os devaneios de Oiticica e se incomodaram (…) Sentiram que um mar de inovações os convocava à luta e que a tal da MPB necessitava abraçar de vez a modernidade. Foi daí que o lixo lógico abandonou o hipotálamo deles e reiinvadiu o córtex. Em outras palavras: os dois perceberam que tinham de resgatar o aprendizado do interior, a herança dos árabes, a tradição oral e uni-los à cultura pop do Ocidente, filha directa do pensamento aristotélico. Conseguiram, assim, engendrar um ser inteiramente original, a dona Tropicália”.
f.guimaraesgoncalves@gmail.com
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