ENTREVISTAS
Matheus Brant
O fim dos prazeres culpados
· 13 Abr 2016 · 16:36 ·
O segundo disco do brasileiro Matheus Brant, Assume que gosta, é uma espécie de declaração universal contra o conceito dos prazeres culpados. O registo em causa é tão amplo quão poderosa é a sua ambição. Neste disco cabe tudo e mais alguma coisa, e só coisas boas: arrocha, axé, pagode e marchinha. Com a ajuda de um conjunto muito interessante de nomes da nova geração da música brasileira, todas estas músicas foram revistas no encontro com a música rock, alguma electrónica e a música psicadélica.

Pela sua génese, no seu som, é um disco distinto daquilo que estamos habituados a ouvir do país a que chamamos irmão. Para saber os motivos por detrás de Assume que gosta, falamos com o compositor mineiro - e advogado nos tempos menos livres - e descobrimos ainda mais detalhes acerca da assinatura dessa tal declaração. E ainda mais: como por magia, com Assume que gosta, o carnaval é quando o Homem quiser.
Assume que gosta, o título do teu novo disco, parece provocatório. Parece uma boca para todos aqueles que fingem não gostar daquilo que na verdade gostam. Estou certo? Li que este disco é influenciado pelo Carnaval? De que forma?

Essa provocação que faço através da música que dá nome ao disco tem muito a ver com a minha história no carnaval de Belo Horizonte, cidade onde moro aqui no Brasil. Em janeiro de 2014, concretizei, junto com amigos, uma ideia que há algum tempo vinha tomando forma em meus pensamentos: criar um bloco de carnaval para tocar, em ritmo de marcha e axé, pagodes dos anos 90. Isso, não só porque eu realmente gostava dessas músicas - principalmente suas melodias - mas também porque observava que elas, de certa forma, faziam parte da memória afetiva da minha geração: goste-se ou não de pagode, é fato que, durante a década de 90, as rádios e TVs inundaram nossas vidas com essas músicas. O sucesso surpreendente do bloco já no seu primeiro desfile confirmou essa intuição. Esse acontecimento provocou em mim uma reflexão a respeito do “paradoxo do gosto”, afinal, como um género que era (e ainda é) tão mal visto podia gerar tamanha repercussão espontânea. Com esses pensamentos em mente, a certa altura, me deparei com uma festa que aconteceria na casa “Benfeitoria” aqui de Belo Horizonte chamada “Assume que gosta”. Na época, eu estava formatando uma parceria do bloco com uma banda que também toca pagode anos 90, o Pagodin Retro do músico e compositor Rodrigo Torino. Falei com ele sobre esse nome e propus compormos uma música que brincasse com o duplo sentido do gostar estético e amoroso: assume que gosta de pagode e de mim. Ele então fez a melodia do inicio e os versos: “Assume que gosta de mim assim/ assim como gosta de um pagodinho /me beija”. Eu fiz o resto da música sempre me valendo desse jogo de sentido e inserindo referências ao pagode (marrom bombom) e ao axé, literalmente, que é outro género dos anos 90 também presente na memória afetiva da minha geração, mas que sofre igual preconceito. Por fim, a expressão “me beija” que o Torino colocou logo no início da música - e que eu repeti depois – diz respeito, justamente, ao nome do meu bloco “Me beija que eu sou pagodeiro” – do mesmo modo que, aliás, o “pagodin” desse mesmo verso nos remete ao nome da banda dele “Pagodin Retro”. Indo além e voltando ao “paradoxo do gosto”, posso dizer que a leitura de um livro iluminou um pouco essas ideias que eu estava intuindo: “O homem sem conteúdo” do filósofo italiano Giorgio Agamben do qual extrai o verso “o gosto é feito de mil desgostos” do Paul Valéry que figura no encarte do disco. Além desse verso, tem uma passagem desse livro que acho que traduz bem o “Assume que gosta”: “(...)parece que a arte prefere muito mais se dispor no molde informe e indiferenciado do mau gosto a se espelhar no precioso cristal do bom gosto (...) como se a arte, entrando no perfeito mecanismo receptivo do bom gosto, perdesse aquela vitalidade que um mecanismo menos perfeito, mas mais interessado, consegue, no entanto, conservar”. Foi justamente isso que procurei fazer com esse meu disco novo: trabalhar com a “vitalidade” que só géneros considerados de “mau gosto” possuem! É como se depois de pensar, escrever e compor sobre coisas da alma, das ideias – como foi meu trabalho anterior (o livro/CD sobre a Hannah Arendt) – eu agora sentisse necessidade de me reaproximar das coisas mais materiais, carnais, mundanas, “interessadas”: por isso o pagode, por isso as letras sensualizadas, quentes. Por isso o carnaval, por isso “Assume que gosta e me beija que eu sou pagodeiro”.



Gravaste estas canções ao lado de reconhecidos músicos da nova geração. Que geração é esta? Vejo muitas vezes relatos de uma certa polémica no Brasil entre a velha e a nova geração de músicos... O que é que te entusiasma na música brasileira actual?

Na verdade, os músicos que participaram da gravação do meu disco pertencem a uma linguagem estética que eu identifico como sendo muito ligada a São Paulo. É que de uns anos para cá, essa cidade acabou reunindo bandas e artistas de várias partes do país mas que tinham em comum um som voltado para timbres marcados pela estética oitocentista, dub music, reggae e rock como Cidadão Instigado, Céu, Karina Bhur, Marcelo Jeneci, Rodrigo Campos, Curumim, entre outros. Em outras partes do Brasil, há também novas gerações que não compartilham dessa sonoridade, mas que igualmente, estão fazendo coisas novas. Para o meu disco novo, entretanto, quis que a produção musical fosse marcada por essa chamada “estética paulista”, que é a que mais me entusiasma recentemente. Voltando ao disco, fala-nos do processo de gravação, da interacção entre os músicos, da chegada das canções... Em termos de produção, foi fácil chegar ao som que querias para este disco? Conheci o trabalho do Mauro e do Fábio, produtores musicais do disco, através do programa Clubversão. A concepção do disco estava bem clara pra mim: eu faria músicas cujas melodias e letras fossem típicas de géneros como axé, pagode, arrocha e marchinha de carnaval, mas a produção e arranjos seguiriam uma estética diferente da adotada, normalmente, por esses estilos. Então quando vi as releituras feitas pelo Fábio e Mauro nesses programas do Clubversão, enxerguei ali o que estava intuindo: arranjos modernos que dialogavam com as músicas sem lhes tirar sua essência. Entrei em contacto, eles toparam e ao longo do processo de produção foram entendendo minha proposta. À princípio, acharam que eu estava querendo fazer algo mais irônico, caricatural, mas depois entenderam que eu gosto mesmo de pagode, axé, etc mas que gosto também de dub, rock, “nova mpb”. Assim, o trabalho deles foi de conciliar esses dois universos, o que, no final das contas, acho que conseguiram! Fiquei muito satisfeito com o resultado da produção porque além de respeitar a essência das composições, acrescentou informações abrindo-lhes possibilidades. Os músicos foram convidados por eles à exceção do Lenis Rino que quis levar de BH porque ele conhece bem meus trabalhos, uma vez que produziu meus dois últimos discos além de ser um músico que possui a mesma linguagem do Fábio e Mauro, ajudando assim a construir com mais facilidade e naturalidade a ponte entre Belo Horizonte e São Paulo. E isso deu tão certo que ele, Lenis, acabou sendo convidado para participar da segunda edição do Clubversão! As participações especais da Luê, Juliana Perdigão e Kdu dos Anjos também fui eu quem escolhi. O Victor Rice foi escolha do Fábio e do Mauro e o Arthur Joly eu escolhi porque queria lançar o disco em vinil também e ele é referência para isso.

Este disco é radicalmente diferente do teu disco anterior, tanto em termos sónicos como em termos de imagem, de conceito. Como é que isso acontece? A tua vida também mudou assim tanto entre ambos os registos?

Acho que, embora de fato a imagem e a sonoridade deste disco sejam diferentes das dos discos anteriores, há uma linha de continuidade entre eles e que reside nas minhas composições. Tenho sempre a preocupação de fazer uma melodia que fuja um pouco do convencional assim como uma letra que seja boa de cantar ao mesmo tempo em que transmita um conteúdo original e esteticamente bonito.

Como achas que o Brasil receberá este disco?

Estou curioso para saber como será a recepção do disco agora neste momento em que o carnaval já passou. Quero ver se o conteúdo/canções conseguirá vir à tona e ganhar vida própria em detrimento da forma/imagem/sonoridade. Esse será o maior desafio do disco e vai mostrar se ele ficará datado como uma obra do carnaval de 2016 ou se viverá por mais tempo...

Fora dos palcos és advogado e escritor. É fácil conciliar isso com uma carreira na música? 

Não é tão fácil conciliar, principalmente, por causa do tempo e da linguagem que no direito deve ser mais formal ao passo que na música deve ser mais poética e livre. Mas há também intersecções interessantes como por exemplo o fato de que no direito, a interpretação do texto legal é parte fundamental do trabalho, habilidade essa que é da mesma forma, muito importante na música, na elaboração das letras. Além disso, a objetividade própria da advocacia me ajuda também na produção/organização da minha carreira musical.



Entre copa e jogos olímpicos, como te parece o Brasil dos dias de hoje, politicamente, socialmente? Interessa-te mostrar este disco em Portugal nos próximos tempos? Conheces alguma música portuguesa? O que é que já te passou pelos ouvidos?

Acho que estamos vivendo momento de intensa atividade política que, muito embora, esteja trazendo desgastes em razão das discussões muito acaloradas e posições muito polarizadas, penso que a médio prazo, resultará em um crescimento cultural muito bem vindo. Interesso-me muito mostrar este disco em Portugal. Já estive em Lisboa e adorei a cidade. Fiquei com vontade de voltar mais vezes. Além disso, um amigo músico daqui de Belo Horizonte, chamado Luiz Gabriel Lopes, integrante da banda Graveola e o Lixo Polifonico, sempre fala muito bem das apresentações que ele faz ai já há alguns anos. Não conheço muito da musica portuguesa, sendo esse outro motivo para apresentar o “Assume que gosta” ai! Aliás, como seria “Assume que gosta” em português de Portugal? Haveria alguma diferença?

Seria Assume que gostas. Só ficaria a faltar aquele "s" final. As diferenças habituais do português de Portugal e do Brasil, não é?

Fica bom assim com o “s” final! Dá ideia de pluralidade, de vários gostos, de gostar de gostar...Enfim, traduz bem o sentido geral do disco!
André Gomes
andregomes@bodyspace.net

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