ENTREVISTAS
Batida
Para dançar, comentar, comentar dançando
· 24 Nov 2014 · 23:06 ·
Batida, Mpula ou Pedro Coquenão. Tudo começou em 2007 com um programa de rádio, Batida, e duas personagens: Mpula e o Rato das Colunas. Apesar de ter nascido em Huambo, as primeiras memórias são já em Portugal onde contactou crianças chegadas de Angola, Cabo Verde e Brasil. Quando mais tarde viajou até África as identificações surgiram naturalmente. Na quarta classe já remisturava cassetes de vários géneros musicais com a técnica da fita-cola. É nas viagens, durante a adolescência, ao continente de origem, nomeadamente à África do Sul, que descobre e compra muita música – desde o rock ao afro-house. Mais tarde sentiria necessidade de criar relação entre o que ouvia e as memórias do auge angolano. Assume que o carácter interventivo é inevitável e acredita no poder e na riqueza da "partilhabilidade" cultural. “É bom ver um chinês a dançar kuduro”, remata. A 5 de Dezembro, Batida apresenta o mais recente álbum, Dois (sobre o qual também conversámos), no Musicbox, em Lisboa.
© Catarina Limão
Olhando para trás, como te transformas de DJ Mpula em Batida?

Mpula é um nome que ainda uso e usarei sempre que fizer sentido.

Em 2007 comecei o programa de rádio chamado Batida e usava dois personagens para o apresentar: o DJ Mpula e o Rato das Colunas. Desde a edição pela Soundway, em 2012, que me foquei no nome Batida para não complicar.

Vives em Portugal há muito tempo mas nasceste no Huambo. Desde sempre cultivaste o gosto pelas origens?

Vivo em Portugal desde que me lembro. Enquanto criança isso foi cultivado em mim. Cresci rodeado de outras crianças que chegavam de Angola ou Cabo Verde mas também, mais tarde, do Brasil. Os adultos falavam muito em voltar no fim da guerra e referiam-se a muitas coisas que não via cá, desde comida, música, cheiros, abraços. Na adolescência fiz quase o oposto: cultivei muita coisa que pouco se relaciona com Angola, à exceção de recorrentes viagens à África do Sul que me marcaram muito e me fizeram viver algumas coisas semelhantes ao que me contavam em criança. Só mais tarde, talvez perto do fim da guerra, e quando tive a oportunidade de conhecer Luanda, é que muita coisa fez sentido na minha cabeça.

© Catarina Limão

Quando surgiu o gosto e a ideia de remisturares cassetes africanas dos 70s?

As cassetes misturadas com a técnica da fita cola, surgiram aos 9/10 anos mas com música variada. Até aí e, enquanto se usou cassetes, ouvia sempre que estava em casa ou em viagem com a minha Tia Dalila. Durante a minha adolescência, sempre que ia a África do Sul comprava muita música. Algum rock, surf-music e alguns dos primeiros discos de Kwaito e Mzansi House ou afro-house. O que tenho meu de Angola são singles e CDs. Nunca misturei cassetes "africanas". A primeira vez que arrisquei produzir algo foi durante o programa de rádio em 2007, em que comecei a fazer bootlegs e a passar sem anunciar. Ou a simplesmente misturar beats e instrumentais com temas antigos. Sentia falta dessa relação entre o que ouvia na altura e o som que tinha guardado na memória do tal período dourado da música angolana.

Em termos de produção, como acontece? Crias tudo sozinho?

Normalmente começa por uma imagem, um ritmo, uma frase, uma intenção de comunicar, promover, partilhar ou de ligar pontos na minha cabeça. A produção acontece na minha garagem ou em tempos mortos em viagem. Mas cada tema é uma história que pode surgir primeiro e ser ilustrada apenas por um instrumental, complementada depois com excertos de documentários ou filmes, ou também posso desafiar um MC a desenvolver essa história na primeira pessoa. Já cheguei a gravar com MC’s sobre um instrumental e, no final, acabei por trabalhar essa voz para um tema completamente diferente. Não tenho um método fechado mas, considerando que as pessoas com que me cruzo e os artistas que admiro são sempre inspiração para a minha arte, não crio nada sozinho.

Apesar da tua música ser apologista da dança e mesmo da alegria, há um sentido sócio-político em algumas das tuas letras. Sentiste necessidade disso?

É inevitável. Não sei como se evita isso sem ser por decisão. Não decidindo, vão saindo coisas. Para dançar, comentar, comentar dançando. Ninguém é só uma coisa. Ou duas. E eu também não tenho essa eficiência a fazer o que faço.

Num certo sentido o teu trabalho vive de dualidades. Um certo estado transcendente em contraste com o real quotidiano, o tradicional e o moderno...

É ser humano, não?

A recepção plena e mundial de um projecto como este - marcadamente angolano em termos de identidade - é fruto da aldeia global e do multiculturalismo na sociedade contemporânea? Não temes que algo que tem a ver com a essência se perca?

Há boas citações para te responder. Talvez o "nada se perde, tudo se transforma" seja adequada. Também posso dizer que sou o que sou por ter viajado (forçosamente e não só) e por saber melhor hoje o que gosto em Lisboa ou Luanda do que antes de viajar por outras aldeias. A mistura pode servir para apurar essência ou para nascerem outras. Ser Português, para mim, tem mais que ver com o viajar e o misturar do que com manter algo estanque. O que seria de Camões ou de Pessoa sem viajar? O que foi Salazar, não viajando? Se te referes a globalização enquanto crescimento assimétrico, com uma parte do planeta a parasitar a outra, aí sim, perdemos a essência do que pretendemos ser como seres humanos. A riqueza é para partilhar. É bom ver um chinês a dançar kuduro. Não confundir com ver a China a explorar a terra sem limites, para poder manter o resto do planeta satisfeito com os preços.

© Catarina Limão

O segundo álbum de Batida foi editado recentemente. O que distingue o álbum de estreia e este Dois?

10 novos temas. (risos) Não consigo ser tão objectivo.. Posso dizer-te que nestes dois anos fui marcado por muita coisa: o ter estado em Nairobi, vivido muitos shows, conhecido mais pessoas que me marcaram, ter assistido e vivido situações socialmente complicadas em Portugal e Angola, e talvez uma parte disso, e de outras coisas, esteja neste disco. E talvez não haja tanta coerência como no primeiro. Mas isso não é uma qualidade muito humana.

Que planos a longo prazo? Há espaço para outros continentes na tua criação?

Estou apenas limitado ao tempo que tenho de vida e ao meu entusiasmo. Nada de fronteiras e não faço planos a mais de seis meses. Nos próximos tempos há remixes a sair, um EP e a participação num disco de uma banda que admiro. E gosto de imaginar que um dia vou ter um retiro na costa de África do Sul, Sul de Angola ou no Alentejo.
Alexandra João Martins
alexandrajoaomartins@gmail.com
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