ENTREVISTAS
Old Jerusalem
Da palavra à canção
· 14 Nov 2005 · 08:00 ·
Francisco Silva é o músico que dá vida ao projecto Old Jerusalem e de quem se fala, na sequência do lançamento do aclamado Twice the Humbling Sun. Após um hiato de dois anos que separa este registo da promissora estreia materializada no álbum April de 2003, Old Jerusalem volta a surpreender com um songwriting que vem sendo alvo dos mais consensuais elogios. É também um tiro certeiro da editora portuense Bor Land que, numa altura em que completa cinco anos de existência, reúne já um importante espólio. A revelação do trabalho de Old Jerusalem vai dando conta de que podemos ter esperança num cenário mais favorável à escrita de canções em Portugal. Dando ênfase ao uso das palavras, o projecto vem sendo invariavelmente agraciado pela crítica. Na Maia, o espaço Tertúlia Castelense, que tem vindo a merecer a menção de paragem obrigatória no roteiro nocturno da invicta, foi o local escolhido para Old Jerusalem assinalar, com a apresentação ao vivo do seu trabalho, mais um evento relacionado com a passagem dos cinco anos sobre o início de actividade da editora que o deu a conhecer. Foi também o local escolhido pelo Bodyspace para uma conversa coloquial com o mentor do bem-sucedido projecto. Francisco Silva ajuda-nos a desmistificar o fenómeno.
É já um facto inquestionável: és conotado como songwriter de talento, com créditos firmados e que goza de boa reputação junto da crítica. Encaras estas realidades como uma consequência possível do trabalho desenvolvido ou vês nisso um peso um pouco opressivo e escravizante?

Só se torna um peso em momentos pontuais. Sou completamente receptivo à opinião geral, mas gosto de fazer a minha própria avaliação e é essa que conta mais. E eu posiciono as minhas canções e a minha escrita num determinado patamar. E valorizo-as, senão não faria sentido lançar os discos. Daí que não me preocupe tanto com a possibilidade de não estar à altura das expectativas. Num certo sentido, até me seduz gorar essas expectativas de forma a trocar um pouco as voltas às ideias que se vão fazendo. A simpatia da crítica é muito agradável e não a questiono, mas não posso ter como adquirido que ela vai existir sempre. Por outro lado, também não quero ser alvo daquele elogio um pouco doentio ao ponto de eu dar um mau concerto e haver poucos que mo apontem...

A ânsia de ver chegar o heyday existiu? Houve essa meta a atingir ou aconteceu por acaso?

Não houve ambição em conseguir isso. Se a questão fosse "Gostavas que acontecesse?", seria óbvio que sim. Mas não trabalhei com esse objectivo. A única diligência que tomei foi, em determinada altura, mostrar as gravações que tinha em quatro pistas a algumas pessoas. Antes disso nem sequer mostrava o que compunha a ninguém.

No teu entender, a que se deve fundamentalmente o entusiasmo da crítica? Estará associado a um cenário semidesértico no que toca ao songwriting digno de referência?

Eu não tenho qualquer dúvida de que se o primeiro disco tivesse saído agora, a recepção seria muito diferente. Na altura em que saiu o April tive a sorte de o lançamento ter coincidido com o aparecimento de uma série de bandas lá fora a sobressaírem pelas mesmas razões, ou seja, pela escrita de canções, o que voltava a reunir interesse. Por cá, nós sempre tivemos escritores de canções. Mas na altura talvez se encontrassem um pouco inactivos, casos do Sérgio Godinho ou do Jorge Palma. Até o David Fonseca tinha enveredado por trabalhos menos centrados nas canções. Portanto, o tipo de produção um pouco mais despida, de poucos meios e valorizando as palavras não estava a acontecer muito. E, na altura do meu primeiro disco, essa escolha estava a ser muito bem recebida, de tal forma que, cada vez que surgia alguém conotado como songwriter, não era apenas "mais um", mas era sempre bem acolhido. Ultimamente, já estamos numa fase de declínio, já há um certo backlash em relação a isso.

Tens convivido bem com os louros do teu trabalho?

A questão dos louros é um pouco aparente. E pontualmente pode trazer desvantagens. Ao reunir-se muita simpatia, pode tornar-se tão enjoativo que deflagre em ataques constantes só por teres conseguido o que conseguiste... E depois, nunca é garantido que continue a fazer canções que agradem às pessoas. Um dia posso simplesmente não ter mais para dizer. Além disso, há a contextualização e as condicionantes que se devem ter em conta. Em certas alturas, algo de mediano pode ser considerado muito bom.

Considerando que já passaste o teste do segundo álbum, não será um pouco exagerada essa humildade?

Não sei se me posso considerar humilde. De certa forma, até me sinto um pouco arrogante e pretensioso quando pego nas minhas canções e tento compará-las com as criações do Leonard Cohen, ou do Bob Dylan ou de outro mestre de escrita. A ideia é tentar chegar a esse patamar de qualidade. Ora, isso denota talvez alguma presunção e é também razão para frustrações permanentes dada a impossibilidade de aí chegar...

Conferes mais importância ao liricismo do que à musicalidade?

Não sei se dou mais importância a um do que a outro, porque estão muito misturados. Mas sei que uma boa melodia sem boas palavras não me interessa. Mesmo assim, existem bandas instrumentais às quais consigo conferir uma certa expressividade verbal. É o caso dos Explosions in the Sky. Ao invés, os Godspeed you ! Black Emperor, por exemplo, são muito mais cinemáticos e interessam-me bastante menos. Se calhar prefiro uma melodia mais pobre com muito boas palavras do que melodias muito bem construídas sem valorizarem a componente lírica.

Estás a dar mais valor ao liricismo do que à musicalidade...

Em canções, sim. Sem dúvida. Mas se tirarmos as palavras em absoluto, a música é muito importante. E é sempre. De qualquer forma, uma canção são palavras cantadas. Até podem ser só duas linhas. Estou a lembrar-me daquela faixa de (Smog) em que o Callahan canta: I remember entering you / I'm gonna be drunk / So drunk at your wedding. E não há mais nada... Não tem de ser nada muito elaborado, nem é necessário perceber o sentido em que as coisas são ditas. O importante é estarem lá para fazerem a diferença e não como mais um mero instrumento.

Antes de o projecto Old Jerusalem ganhar forma, e enquanto estudavas no conservatório, que planos tinhas? Que espécie de ambições povoavam a tua mente na altura?

Não tinha muitos planos. Estudava no Conservatório ao mesmo tempo que tirava o curso de Economia e sabia que poderia enveredar por diversos caminhos. Mas pensei sempre que a música iria ter um papel importante. E o objectivo de compor esteve sempre presente, de tal forma que ainda me lembro de, numa aula de Português do 8º ano, dizer à minha colega de carteira que iria fazer um disco. E eu ainda não tocava guitarra!

Ainda recuando no tempo, consegues recordar-te da sucessão de episódios ou acontecimentos que te levaram ao estúdio de gravação?

Isso é tudo mais recente. Começou a acontecer quando eu conheci o Rodrigo (n.r.: Rodrigo Cardoso, Bor Land, Alla Pollaca). Ele ouviu uma gravação que eu tinha feito em casa numa altura que coincidiu com o início da minha vida profissional em que comecei a levar tudo mais a sério. E as coisas começaram a acontecer muito rápido. Além do Rodrigo fui travando conhecimento com muita gente do meio. Mas foi sobretudo o bom entendimento com o Rodrigo que deu azo a que as coisas desenvolvessem e avançassem nomeadamente para a gravação do cd-split com os Alla Pollaca (n.r.: 2001). E decidiu-se, tendo em conta a simpatia mútua e a satisfação com o trabalho desenvolvido, prosseguir com esse trabalho de forma mais continuada. Inicialmente a ideia era gravar em quatro pistas porque não havia dinheiro. Até que surgiu a ideia de gravar em Viana do Castelo, onde estivemos 4 dias. O Rodrigo já conhecia o Paulo Miranda (n.r.: The Unplayable Sofa Guitar), o que se tornou fulcral para que surgisse o primeiro disco. Ao ouvir as canções, o Paulo Miranda mostrou interesse imediato em fazer a produção, sem impor encargos e quase oferecendo o trabalho. Foram essas condições que potencializaram o aparecimento do disco. Desde conhecer o Rodrigo, até conhecer o Paulo Miranda ou mesmo o Miguel (n.r.: Miguel Gomes, Complicado) – que viria a tocar guitarra comigo e em quem encontrei muitas afinidades –, tudo se processou de forma muito rápida. Foi uma fase muito positiva e interessante. A partir daí, parecia que tudo ia correr bem. Além disso, desde a maqueta que se foi gerando um capital de simpatia à volta do projecto.

Apesar das participações pontuais de outros músicos, Old Jerusalem apresenta-se como um projecto de um homem só. Nunca sentes falta, em estúdio ou no palco, de uma banda de suporte?

Sim, sinto. Mas as condições em que consigo trabalhar com bandas são muito específicas... E nem todos os músicos estão dispostos a funcionar dessa maneira. No geral, os ensaios de uma banda têm para mim uma reduzida componente musical, no sentido em que são mais técnicos, desde o acertar de acordes até tentar perceber se uma parte encaixa. Ou seja, é uma composição menos próxima da música, menos espontânea, embora no fundo seja esse trabalho mais frio que suporta a performance de uma banda. A questão é eu ter pouca paciência para ele... E por isso as experiências que tenho tido nesse sentido nunca resultaram muito bem.


Podemos considerar Old Jerusalem como sendo um "one-man-band" à semelhança do projecto paralelo do Paulo Furtado conhecido como "The Legendary Tiger Man"?

Acho que sim. Bem, eu não gosto muito da ideia... Só se for no sentido em que se trata de um nome que se "esconde" por detrás de outro. Ou seja, em vez de usar o meu nome, crio uma espécie de alter-ego.

Como o Miguel Gomes...

Exacto. Acontece também que algumas das nossas referências (minhas e do Miguel) o fazem igualmente. Por exemplo, (Smog) é o Bill Callahan, Palace é o Will Oldham... Por isso, esse tipo de abordagem tem precedentes relacionados com aspectos pessoais. E em todos esses casos e exemplos, existem ou existiram músicos à volta, se bem que não como parte integrante do projecto. E isso difere do Paulo Furtado, enquanto "Legendary Tiger Man", no sentido em que ele queria fazer mesmo tudo. E dessa forma, era um verdadeiro "one-man-band". Nessa perspectiva, Old Jerusalem afasta-se do conceito. Mas é verdade que dificilmente comportará uma banda propriamente dita em que todos colaboram na composição.

Eu sei que neste teu último disco reuniste algumas participações de músicos com quem nem sequer ensaiaste.

Sim, eu nunca ensaiei com ninguém. Em último caso, tratou-se de dirigir essas contribuições. Mas não toquei com as pessoas. O Pedro Marques, por exemplo, nem chegou a estar no estúdio. Enviou-me as misturas que ele tinha criado e fez-se uma escolha a partir desses cds com as suas propostas. Até essa colaboração foi feita à distância. Em palco, já gosto de ter alguém a acompanhar-me, como aconteceu durante algum tempo em que toquei com o Miguel e mesmo agora em que o Ricardo (n.r.: Ricardo de Noronha, Mandrágora) me tem acompanhado. É um meio-termo entre a banda e o projecto solitário. Existem faixas que não toco ao vivo por não achar muito viável fazê-lo sozinho. Mas ainda penso que haverá uma altura em que me farei acompanhar por uma banda.

Que mudanças mais significativas podemos encontrar na passagem do disco de estreia para Twice the Humbling Sun?

Em primeiro lugar, as letras foram mais bem trabalhadas neste disco, até porque o primeiro reunia algumas coisas escritas quando tinha 13 anos... A escrita no Twice the Humbling Sun tornou-se mais analítica e menos à flor da pele. Nesse sentido, o primeiro álbum é mais simplista e este um pouco mais pesado. E para isso eu não me importo de ceder na produção e na sonoridade e fazer um disco mais monótono. De certa forma, fazer um disco mais monótono foi um dos meus objectivos. E assim consegui que este último álbum fosse mais homogéneo e funcionasse melhor no seu conjunto. É também mais adulto. O April oscila muito entre o festivo e o melancólico, sendo mais heterogéneo mesmo na produção. Na altura quisemos explorar toda uma paleta de sons que tínhamos à nossa disposição. Era um disco de procura, em que se pretendia cristalizar muito do trabalho feito anteriormente.

Recentemente, algum público terá acolhido com estranheza a tua participação em Metamorphosia de Kubik, já que se afasta claramente do rumo mais ou menos homogéneo dos teus registos. No futuro, pensas continuar a enveredar por caminhos menos previsíveis?

Espero que sim, porque existem várias coisas que eu gostava de fazer que nada têm a ver com aquilo que até agora tem sido conhecido como Old Jerusalem. A experiência com o projecto Kubik foi muito interessante e bem estruturada. Foi muito compensador para ambos. Eu sabia o que ele (n.r.: Victor Afonso) pretendia e apresentei-lhe uma voz distorcida, Já com o tratamento necessário e sem incluir a pista original com a minha voz "limpinha". Ele gostou do resultado e eu gostei muito do processo, por se ter tratado exactamente de algo muito distinto de Old Jerusalem.

Acerca da capa do Twice the Humbling Sun, o que é que te inspiram as ilustrações da Helena Reis? Que pretendes que elas tragam ao álbum?

Não sei dizer... A capa existia, já pensada como capa, antes de o álbum estar feito. Não há uma ligação no sentido de a capa ilustrar a música. Acabou por mostrar-se adequada de forma um pouco lateral. Porque, de facto, faz lembrar o estar fechado, o escuro..., que se podem associar a este disco. Por isso, a ligação que eventualmente exista é puramente estética.

Numa retrospectiva ao trabalho desenvolvido sob a égide da Bor Land, que balanço fazes desse período na editora nortenha?

Positivíssimo! Às vezes é necessário inventar formas de fazer algumas coisas quando pura e simplesmente não há dinheiro. Mas as pessoas que estão na editora são entusiastas da música, são excelentes pessoas, de forma que o trabalho ganha uma dimensão de prazer. E apercebemo-nos que são dedicadíssimos ao que fazemos, dão sugestões sempre que temos dúvidas, dão apoio. É no fundo uma comunidade com um propósito. E isso já é um valor em si, independentemente dos resultados que se irão obter.

É também uma casa que alberga trabalhos com que te identificas, suponho.

Sim, exactamente. Ainda por cima tens o prazer de fazer parte de um lote de artistas que, em parte, não conhecias e em quem descobres imenso valor. E há trocas de impressões, de opiniões. Sente-se actividade.

Que rota pensas seguir no futuro? Em que sentido o projecto Old Jerusalem deve evoluir?

Eu sei que vai haver mais um disco, porque está praticamente todo escrito. Para lá desse próximo disco, pode não fazer sentido voltar a escrever. Não quero repetir ad eternum uma ideia. Se as coisas se esgotarem em termos criativos, deixa de haver razão para continuar. Mas posso enveredar por outros caminhos. Que caminhos serão, ainda não faço ideia. Está tudo em aberto.
Eugénia Azevedo
eugeniaazevedo@bodyspace.net
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