ENTREVISTAS
Capicua
Os números do talento
· 03 Mai 2012 · 13:06 ·
O que te levou a tomar a decisão de editares um primeiro disco praticamente sem qualquer colaboração ao nível vocal?
Sentir que o disco era demasiado pessoal e que os temas se sucediam sem que sentisse a necessidade de ter “interferências”. Criou-se uma tendência para que os discos de hip hop tenham sempre muitos convidados e há uma espécie de “cobrança” quando não acontece, mas a verdade é que neste disco, não senti que houvesse espaço para grandes partilhas a esse nível. Os temas são demasiado pessoais e mesmo os que não são autobiográficos, espelham opiniões muito próprias… Foi o meu primeiro disco, queria que fosse uma representação minha e do meu universo. Para além disso a base musical resulta de um trabalho de equipa e, portanto, a partilha já estava garantida por aí…
Tentaste de algum modo influenciar o tipo de beats e samples usados pelos teus produtores, ou confiaste a 100% naquilo que eles te poderiam trazer?
Fui eu que escolhi todos os instrumentais do disco. Contactei os produtores, escolhi muitos beats e depois fui selecionado, até ficar com os 14 que melhor serviam os temas que queria desenvolver. Mais do que num critério estético, a seleção baseou-se nos temas das letras que queria escrever. Por isso fui procurando beats com o ambiente certo para servir de base para cada assunto, cada registo, cada emoção… Na fase de pós-produção, o D-One e o Ghuna X fizeram os arranjos e os retoques necessários para que o conjunto ficasse coeso. Fizeram um trabalho incrível, porque é muito difícil pegar em tantos beats diferentes de autores tão diferentes e dar-lhe um som comum… Nessa fase, apesar da minha inteira confiança no trabalho deles e da minha inaptidão técnica, acompanhei o processo, dei opiniões, vetei algumas escolhas, pedinchei algumas cedências, sugeri detalhes… Foi um trabalho de equipa!
Penso que na imprensa portuguesa se dá uma atenção desmesurada aos méritos e sons da produção de um disco hip-hop, em detrimento das virtudes e características do MC. Concordas?
É verdade, é raro ler uma crítica a um disco de rap que tenha mais do que uma frase sobre as letras… Normalmente faz-se mais uma arqueologia do sampling do que propriamente uma crítica ao desempenho do MC! Para mim é muito triste, pensando no protagonismo que a palavra assume num disco de rap e que os beats estão lá para servir o MC e não para ofusca-lo.
As tuas letras focam-se várias vezes nas aspirações e sonhos de, digamos, uma classe social que teve o privilégio de um curso universitário. Pensas que isto te pode limitar o público a quem apelas? Afastar aqueles que, mesmo sendo classe média, acham que o hiphop tem obrigatoriamente que ser “A CNN do ghetto” como dizia o Chuck D?
Eu quando escrevo não estou a pensar no target para o qual me dirijo, ou nas pessoas que vou afastar. Escrevo o que quero e o que consigo, dentro da minha individualidade e sem querer representar ninguém a não ser a mim, a minha cidade e o hip hop enquanto cultura. Não represento um género, uma classe social ou um grau académico, por muito que seja mais fácil meter-nos todos em caixinhas. Apesar do mainstream achar o contrário, rap e os rappers caracterizam-se por uma grande diversidade e o público de rap é também ele muito heterogéneo.
A letra de “Os Heróis” é um misto de contestação, descritivo e optimismo no futuro. Em Portugal temos outros exemplos como a “Rapressão” do Chullage. Concordas que se olha pouco para o hiphop quando se refere a falta de canções contestatárias nos dias actuais? Porque é preciso uma Deolinda para chamar a atenção?
Eu acho é que o hip hop continua a ser um nicho pouco visível no panorama da música portuguesa, mesmo quando há 4 ou 5 MCs que têm um relativo protagonismo mediático há alguns anos. E, portanto, quando se procuram hinos ou porta-vozes para as grandes causas sociais, é difícil que se olhe para um imenso underground, bastante desprestigiado e conotado com as margens, como é o hip hop. É mais fácil e “divertido” ir buscar os Homens da Luta…
Só por uma vez, se não estou em erro, referes a tua origem portuense, e trabalhas com produtores do Porto e Lisboa. Houve alguma tentativa consciente de não localizar o teu hiphop no estilo mais associado a uma cidade?
Eu refiro o Porto várias vezes no disco (na "1º Dia", na "Maria Capaz", na "Última" e até nos agradecimentos) e nunca tive intenção de não me associar à cidade, ao sotaque, à cultura, até porque tenho muito orgulho em tudo isso. Cresci a ouvir hip hop do Porto e essa é a minha escola. Agora, na hora de escolher colaboradores ou produtores não me interessa a geografia, interessam-me as afinidades musicais e, sinceramente, a origem das pessoas não é coisa em que repare sequer.
Dizes que nos festivais “só toca banda de rock”. No entanto, já tivemos o Snoop Dogg e o Kanye West como cabeças de cartaz do Sudoeste, e em Inglaterra o Jay-Z foi cabeça de cartaz em Glastonbury. Achas que no futuro podemos ver MCs portugueses a ocuparem o palco principal?
Eu disse isso e continuo a achar que é verdade. Fico muito contente que o festival Sudoeste tenha posto grandes MCs internacionais no cartaz do ano passado. Foi um sucesso e a prova disso é que este ano vão repetir a dose! Mas também ficaria muito contente se os promotores começassem a apostar nas bandas nacionais, que para além de algumas exceções recorrentes, não têm tido grandes oportunidades. E quando digo isto não é por achar que as bandas de hip hop precisem de apoio ou de “caridade”, é porque acho que o seu mérito é indiscutível! O hip hop é o único estilo de música em Portugal em que os “putos” preferem música nacional à americana e isso é fruto de décadas de trabalho dos MCs. No hip hop sempre se honrou a língua portuguesa, mesmo quando as bandas de rock e de pop só cantavam em inglês. Vais às escolas secundárias e às universidades e é incrível a quantidade de pessoas que gosta de rap e que ouve rap quotidianamente. Tens muitos MCs que fazem um êxito enorme no underground, na net, na rua, etc. e que têm vídeos no Youtube com milhares e milhares de visualizações. E tens gente que tem carreiras de 15 anos, sem nunca sair do circuito underground… É uma pena até porque logisticamente as bandas de rap simplificam muito a organização de um festival… Não temos instrumentos, nem backline, cabemos todos num carro! [risos]. Esperemos que no futuro possamos provar que vale a pena apostar em nós!
Considero as tuas letras bastante refrescantes num sentido. Não há qualquer preocupação em afirmar uma qualquer legitimIdade “underground” e “anti-comercial”. Sentirias que estavas a ser falsa se o afirmasses? Ou simplesmente não te passou pela cabeça?
[risos]. Nunca tive medo de parecer “falsa”, primeiro porque a minha “verdade” é fazer a música que me representa melhor. Não faço música com nenhuma pretensão comercial e sempre estive no circuito underground, até porque esse é o meu habitat natural. Mas respondendo à pergunta, essa temática não me interessa muito. Acho que cada um se afirma como quiser e é avaliado pelo público como tiver de ser, para mim não faz muito sentido andar a falar sobre isso.
A tua “A Hora Certa” podia ser uma “Dry Your Eyes” dos The Streets, versão portuguesa. Pensas que a tua letra pode ajudar quem tenha que encarar esse vazio do fim de uma relação?
Ajudar não sei, mas acho que há muita gente que se pode identificar com a letra. É um tema clássico, que já foi muito explorado, mas por muito que sejamos todos diferentes e que o tempo e as modas passem, a rutura faz-se sempre sentir da mesma forma. Ficaria muito contente se a “hora certa” chegasse perto das pessoas.
Falas que foi muito importante a educação que te deram os teus pais, no sentido da música, política e poesia que te transmitiram. Podes desenvolver um pouco mais sobre isso?
Em primeiro lugar foram eles que me ensinaram a falar. Eram eles que liam para mim quando eu não sabia ler. Contavam-me histórias, cantavam-me canções para dormir. Foram os discos deles os primeiros que ouvi. Ensinaram-me a diferença entre o bem e o mal, todas essas coisas que moldam o carácter e que servem de base para a vida. E portanto o meu primeiro vocabulário, o meu sotaque, o meu imaginário, as minhas referências são deles. A partir daí, fui aprendendo por mim e pelo mundo, mas de facto a base, o fundo, a raiz está eternamente relacionada com os meus pais. E como sempre foram pessoas sensíveis que gostam de ler, de viajar, de conversar, é normal que me tenham passado o seu entusiasmo pela poesia, pela música, pela comida, pelos amigos e por todas as coisas boas da vida. Ao mesmo tempo passaram-me valores e convicções que me despertaram para as preocupações políticas e sociais, estimulando o meu espírito crítico e a vontade de pensar no mundo.
Qual é a tua maior esperança agora que te iniciaste nas lides das edições discográficas? Passará por poder editar sem ser pela Optimus?
A minha maior esperança é fazer chegar a minha música o mais longe possível e com isto quero dizer, faze-la chegar a muitas pessoas e sobretudo a muitas pessoas diferentes. Dar concertos, divulgar o disco… Depois logo se vê.
Não gosto de perguntar “Quais são as tuas influências?”. Por isso dou-te uma escolha: Podes colaborar com qualquer MC ou cantor do mundo. Quem escolhes?
Epá! Essa é difícil! Humm… Acho que escolhia a Erykah Badu.
Nuno ProençaSentir que o disco era demasiado pessoal e que os temas se sucediam sem que sentisse a necessidade de ter “interferências”. Criou-se uma tendência para que os discos de hip hop tenham sempre muitos convidados e há uma espécie de “cobrança” quando não acontece, mas a verdade é que neste disco, não senti que houvesse espaço para grandes partilhas a esse nível. Os temas são demasiado pessoais e mesmo os que não são autobiográficos, espelham opiniões muito próprias… Foi o meu primeiro disco, queria que fosse uma representação minha e do meu universo. Para além disso a base musical resulta de um trabalho de equipa e, portanto, a partilha já estava garantida por aí…
Tentaste de algum modo influenciar o tipo de beats e samples usados pelos teus produtores, ou confiaste a 100% naquilo que eles te poderiam trazer?
Fui eu que escolhi todos os instrumentais do disco. Contactei os produtores, escolhi muitos beats e depois fui selecionado, até ficar com os 14 que melhor serviam os temas que queria desenvolver. Mais do que num critério estético, a seleção baseou-se nos temas das letras que queria escrever. Por isso fui procurando beats com o ambiente certo para servir de base para cada assunto, cada registo, cada emoção… Na fase de pós-produção, o D-One e o Ghuna X fizeram os arranjos e os retoques necessários para que o conjunto ficasse coeso. Fizeram um trabalho incrível, porque é muito difícil pegar em tantos beats diferentes de autores tão diferentes e dar-lhe um som comum… Nessa fase, apesar da minha inteira confiança no trabalho deles e da minha inaptidão técnica, acompanhei o processo, dei opiniões, vetei algumas escolhas, pedinchei algumas cedências, sugeri detalhes… Foi um trabalho de equipa!
Penso que na imprensa portuguesa se dá uma atenção desmesurada aos méritos e sons da produção de um disco hip-hop, em detrimento das virtudes e características do MC. Concordas?
É verdade, é raro ler uma crítica a um disco de rap que tenha mais do que uma frase sobre as letras… Normalmente faz-se mais uma arqueologia do sampling do que propriamente uma crítica ao desempenho do MC! Para mim é muito triste, pensando no protagonismo que a palavra assume num disco de rap e que os beats estão lá para servir o MC e não para ofusca-lo.
As tuas letras focam-se várias vezes nas aspirações e sonhos de, digamos, uma classe social que teve o privilégio de um curso universitário. Pensas que isto te pode limitar o público a quem apelas? Afastar aqueles que, mesmo sendo classe média, acham que o hiphop tem obrigatoriamente que ser “A CNN do ghetto” como dizia o Chuck D?
Eu quando escrevo não estou a pensar no target para o qual me dirijo, ou nas pessoas que vou afastar. Escrevo o que quero e o que consigo, dentro da minha individualidade e sem querer representar ninguém a não ser a mim, a minha cidade e o hip hop enquanto cultura. Não represento um género, uma classe social ou um grau académico, por muito que seja mais fácil meter-nos todos em caixinhas. Apesar do mainstream achar o contrário, rap e os rappers caracterizam-se por uma grande diversidade e o público de rap é também ele muito heterogéneo.
A letra de “Os Heróis” é um misto de contestação, descritivo e optimismo no futuro. Em Portugal temos outros exemplos como a “Rapressão” do Chullage. Concordas que se olha pouco para o hiphop quando se refere a falta de canções contestatárias nos dias actuais? Porque é preciso uma Deolinda para chamar a atenção?
Eu acho é que o hip hop continua a ser um nicho pouco visível no panorama da música portuguesa, mesmo quando há 4 ou 5 MCs que têm um relativo protagonismo mediático há alguns anos. E, portanto, quando se procuram hinos ou porta-vozes para as grandes causas sociais, é difícil que se olhe para um imenso underground, bastante desprestigiado e conotado com as margens, como é o hip hop. É mais fácil e “divertido” ir buscar os Homens da Luta…
Só por uma vez, se não estou em erro, referes a tua origem portuense, e trabalhas com produtores do Porto e Lisboa. Houve alguma tentativa consciente de não localizar o teu hiphop no estilo mais associado a uma cidade?
Eu refiro o Porto várias vezes no disco (na "1º Dia", na "Maria Capaz", na "Última" e até nos agradecimentos) e nunca tive intenção de não me associar à cidade, ao sotaque, à cultura, até porque tenho muito orgulho em tudo isso. Cresci a ouvir hip hop do Porto e essa é a minha escola. Agora, na hora de escolher colaboradores ou produtores não me interessa a geografia, interessam-me as afinidades musicais e, sinceramente, a origem das pessoas não é coisa em que repare sequer.
Dizes que nos festivais “só toca banda de rock”. No entanto, já tivemos o Snoop Dogg e o Kanye West como cabeças de cartaz do Sudoeste, e em Inglaterra o Jay-Z foi cabeça de cartaz em Glastonbury. Achas que no futuro podemos ver MCs portugueses a ocuparem o palco principal?
Eu disse isso e continuo a achar que é verdade. Fico muito contente que o festival Sudoeste tenha posto grandes MCs internacionais no cartaz do ano passado. Foi um sucesso e a prova disso é que este ano vão repetir a dose! Mas também ficaria muito contente se os promotores começassem a apostar nas bandas nacionais, que para além de algumas exceções recorrentes, não têm tido grandes oportunidades. E quando digo isto não é por achar que as bandas de hip hop precisem de apoio ou de “caridade”, é porque acho que o seu mérito é indiscutível! O hip hop é o único estilo de música em Portugal em que os “putos” preferem música nacional à americana e isso é fruto de décadas de trabalho dos MCs. No hip hop sempre se honrou a língua portuguesa, mesmo quando as bandas de rock e de pop só cantavam em inglês. Vais às escolas secundárias e às universidades e é incrível a quantidade de pessoas que gosta de rap e que ouve rap quotidianamente. Tens muitos MCs que fazem um êxito enorme no underground, na net, na rua, etc. e que têm vídeos no Youtube com milhares e milhares de visualizações. E tens gente que tem carreiras de 15 anos, sem nunca sair do circuito underground… É uma pena até porque logisticamente as bandas de rap simplificam muito a organização de um festival… Não temos instrumentos, nem backline, cabemos todos num carro! [risos]. Esperemos que no futuro possamos provar que vale a pena apostar em nós!
Considero as tuas letras bastante refrescantes num sentido. Não há qualquer preocupação em afirmar uma qualquer legitimIdade “underground” e “anti-comercial”. Sentirias que estavas a ser falsa se o afirmasses? Ou simplesmente não te passou pela cabeça?
[risos]. Nunca tive medo de parecer “falsa”, primeiro porque a minha “verdade” é fazer a música que me representa melhor. Não faço música com nenhuma pretensão comercial e sempre estive no circuito underground, até porque esse é o meu habitat natural. Mas respondendo à pergunta, essa temática não me interessa muito. Acho que cada um se afirma como quiser e é avaliado pelo público como tiver de ser, para mim não faz muito sentido andar a falar sobre isso.
A tua “A Hora Certa” podia ser uma “Dry Your Eyes” dos The Streets, versão portuguesa. Pensas que a tua letra pode ajudar quem tenha que encarar esse vazio do fim de uma relação?
Ajudar não sei, mas acho que há muita gente que se pode identificar com a letra. É um tema clássico, que já foi muito explorado, mas por muito que sejamos todos diferentes e que o tempo e as modas passem, a rutura faz-se sempre sentir da mesma forma. Ficaria muito contente se a “hora certa” chegasse perto das pessoas.
Falas que foi muito importante a educação que te deram os teus pais, no sentido da música, política e poesia que te transmitiram. Podes desenvolver um pouco mais sobre isso?
Em primeiro lugar foram eles que me ensinaram a falar. Eram eles que liam para mim quando eu não sabia ler. Contavam-me histórias, cantavam-me canções para dormir. Foram os discos deles os primeiros que ouvi. Ensinaram-me a diferença entre o bem e o mal, todas essas coisas que moldam o carácter e que servem de base para a vida. E portanto o meu primeiro vocabulário, o meu sotaque, o meu imaginário, as minhas referências são deles. A partir daí, fui aprendendo por mim e pelo mundo, mas de facto a base, o fundo, a raiz está eternamente relacionada com os meus pais. E como sempre foram pessoas sensíveis que gostam de ler, de viajar, de conversar, é normal que me tenham passado o seu entusiasmo pela poesia, pela música, pela comida, pelos amigos e por todas as coisas boas da vida. Ao mesmo tempo passaram-me valores e convicções que me despertaram para as preocupações políticas e sociais, estimulando o meu espírito crítico e a vontade de pensar no mundo.
Qual é a tua maior esperança agora que te iniciaste nas lides das edições discográficas? Passará por poder editar sem ser pela Optimus?
A minha maior esperança é fazer chegar a minha música o mais longe possível e com isto quero dizer, faze-la chegar a muitas pessoas e sobretudo a muitas pessoas diferentes. Dar concertos, divulgar o disco… Depois logo se vê.
Não gosto de perguntar “Quais são as tuas influências?”. Por isso dou-te uma escolha: Podes colaborar com qualquer MC ou cantor do mundo. Quem escolhes?
Epá! Essa é difícil! Humm… Acho que escolhia a Erykah Badu.
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