ENTREVISTAS
Primitive Reason
A arqueologia da deriva
· 10 Jun 2005 · 08:00 ·
“Meifumado” corresponde à designação Budista para inferno, o caminho a percorrer pelos demónios e almas amaldiçoadas. Desde sempre que os Primitive Reason levam o seu espectro musical a percorrer os géneros musicais de forma intuitiva mais do que fixada. Procuram o escape ao sufoco urbano e à imutabilidade da matéria, como Samurais que desconhecem um Mestre mas não esquecem o Código de Honra. Surgido numa clareira de criatividade situada a meia altura da Quimera, Pictures in the Wall representa um peculiar período de meditação, em que o personagem nómada aproveita um posicionamento privilegiado para planear as próximas coordenadas. Guillermo de Llera fala-nos de tempos de consolidação.
Pictures in the Wall será, dos vossos trabalhos, aquele que mais se aproxima daquilo que se costuma rotular de álbum conceptual. Concordas? Qual a sua base conceptual?
Enquanto parte de um conceito, o Pictures in the Wall procura, através da música, projectar imagens que sirvam de complemento ao livro.

Foi o disco que partiu do livro ou o inverso?

A concepção de ambos aconteceu de forma simultânea. A escrita conduzia a algumas pistas musicais e, por sua vez, a música inspirava-me a algumas passagens do livro.

Pode-se então dizer que foi um processo paralelo?
Sim, exactamente.

Já ouvi o álbum enquanto lia a história, e notei um saudável encaixe entre ambos. Foste tu que escreveste, certo?
(Risos.) Sim, sob pseudónimo.

Com essa máscara procuraste também tu assumir o papel de um personagem?

Sim.

Que autores te influenciaram?
Foram tantos... Jules Verne, Cervantes, Carlos Castañeda, Herman Hesse...

A carga conceptual costuma estar associada ao rock progressivo. Encontras afinidades junto desse género?
Sim, se te estiveres a referir ao rock progressivo como género favorável à música enquanto objecto que evolui.

Até onde pode ir o conceito Primitive? Acreditas na possibilidade de uma banda-desenhada ou até mesmo de um filme?
Sim, dispomos de uma liberdade que nos permite expandir a nossa criatividade a diversos quadrantes. A condição underground abre-nos as portas para, se for essa a vontade, transpor o conceito para a banda-desenhada, arte, compor a banda-sonora de um filme e por aí fora.

Concordas que Pictures in the Wall se aproxima de Some Of Us por também ele ser produto de um esforço conjunto? Uma coisa muito comunitária.
Sim, de certa forma acredito que todos os nossos discos são resultado de um esforço conjunto. Este acabou por ser concebido numa base mais familiar.

Pictures in the Wall é impressionante a nível a vocal. Sentes que o teu flow e polivalência têm vindo a progredir?
Sim. De disco para disco tento evoluir e expandir as fronteiras dos meus limites vocais. É esse mesmo o meu objectivo como vocalista; o de crescer e mostrar uma evolução constante.

Desde o vosso início que a banda se foi metamorfoseando até sobrares apenas tu da formação original. Existem mudanças significativas na essência da banda?
Ainda que tenham sido várias as mudanças, creio que a raiz e essência se manteve. Até certa altura, eu e o Jorge Felizardo assegurámos a sua manutenção e os irmãos Beja vieram a reforçar isso. Toda a gente, de uma forma ou de outra, contribui e deixou a sua marca na essência que ainda é perceptível. Os tempos agora são de consolidação em vez de mutação.


Encontro traços comuns entre Alternative Prison e Pictures in the Wall.
Acredito que sim. A filosofia de arranjos arrojados é a mesma, ainda que tenham passado dez anos desde o Alternative Prison. Tínhamos decidido dar a entender esteticamente o fechar de um ciclo musical, e uma nova partida.

Há algum instrumento que não se atrevam a inserir no vosso universo?
(Pensativo.) Talvez sintetizadores, mas nunca se sabe. A guitarra portuguesa poderia à partida ser uma carta fora do baralho e encontrou lugar no The Firescroll. A tendência é inserir cada vez mais instrumentos orgânicos.

Quão preciosa foi a importância do Blitz e Fnac na promoção do novo disco? Sentem-se privilegiados com os apoios?
A importância da Fnac prendeu-se essencialmente à oportunidade de lançar o disco sem a intervenção de intermediários. Da fábrica para a loja. Era nossa intenção facultar o disco por um preço mais reduzido do que os 18 euros que estamos habituados a desembolsar. Bem sei que muita gente tem por hábito “sacar” discos da Internet, mas acredito que muitos também procurem na compra do disco aquele contacto com o objecto, que, no caso do Pictures in the Wall é ainda mais fulcral devido à inclusão do livro. O nosso lançamento através do Blitz permitiu-nos lançar um disco por menos de 13 Euros, o que para nós também significou mandar uma mensagem para o público e industria. Uns estão-se a acostumar demasiado a não pagar por nenhum disco, o que não permite aos músicos fazer a vida a partir da música, e outros estão a encarecer os produtos de tal maneira que quase provoca a reacção dos primeiros. Porque é que nos Estados Unidos se compra um disco por menos de 15 Euros e aqui pagamos tanto?

No showcase da Fnac Cascais havia uma plateia heterogénea, formada por jovens da idade de boa parte do público presente nos vossos primeiros concertos e por pessoas que têm acompanhado o vosso crescimento desde o início, nomeadamente desde os concertos atrás referidos. Isto causa-vos algum tipo de sensação? Sentem-se os Xutos & Pontapés da nova geração pelo público diverso que a vossa música abrange?
Sim, uma espécie de Xutos & Pontapés inseridos num plano mais underground. Sinto-me lisonjeado por saber que há quem nos acompanhe desde o início, tal como me agrada que uma nova geração acorra aos nossos concertos. Acredito que isso se deve essencialmente ao facto de muitos meios estudantis - como liceus e universidades - serem tão favoráveis e receptivos à nossa instalação.

Como andam as coisas por Espanha? O facto de algumas músicas serem cantadas em espanhol ajuda?
Combinar o espanhol com inglês favorece o ecletismo. Cada língua tem a sua sonoridade e ritmo, e incorporar o espanhol foi uma bênção no sentido musical. Claro que cantar em espanhol ajuda a introduzir o nosso som na Espanha, mas o tempo dirá se haverá uma aceitação tão grande lá como cá.

Acreditas que, com a devida rodagem, “El Caballero de la Triste Figura” poderia atingir a exposição um dia pertencente a “Seven Fingered Friend”? Encararias isso como um tipo de maldição?
O “Seven Fingered Friend” surgiu na altura certa. Veio ao encontro de um ska em ascensão. Não me parece que isso venha a acontecer no caso do “Caballero”, que está à margem da moda. Não encaro o “Seven Fingered Friend” como uma maldição. Afinal, foi a música que colocou o nosso nome no mapa e aquela que atraiu muita gente até nós. Entendo o seu sucesso como uma demonstração de reconhecimento.

Pictures in the Wall aborda de perto a sensação da viagem mental. Actualmente, que sonoridades te conduzem ao transcendental?
Música clássica indiana e cânticos nativos ou tibetanos. Qualquer música dos primeiros povos.
Miguel Arsénio
migarsenio@yahoo.com
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