ENTREVISTAS
Domotic
Stefan Laporte e Stef concederam uma entrevista recheada de particularidades
· 07 Abr 2004 · 08:00 ·
Stefan Laporte, o criador de Domotic, e Stef, músico de suporte e amigo, concederam uma entrevista recheada de particularidades, a que não é alheio o facto de ter sido feita por messenger (!). Através de cinco curtas horas em várias sessões, a entrevista transformou-se lentamente numa conversa informal sobre a Arte, a música, os computadores, as cidades (e a inevitável Carminda). Aqui fica o essencial.
Parece haver, na música de Domotic, uma luta in continuum entre o natural e o artificial. O allmusic.com fala mesmo em "android lullabies". Revês-te nesta descrição? É que uma das coisas que me atrai na tua música é mesmo a forma como os sons parecem de tal forma orgânicos, que ultrapassam os constrangimentos intrínsecos à música feita por computador.

Isso acontece porque não é verdadeiramente música "computer-made". É sim música "computer-engineered". O intrumento principal usado no meu álbum foi mesmo o teclado, como podes ver nas sleeve notes...Eu arranjei esse teclado quando tinha oito anos, e desde então faço música com ele. Obviamente que o computador tem uma enorme importância em todo o processo, isso não se pode negar. Mas eu penso no computador não tanto como um instrumento, mas sim como uma ferramenta. Ou um amigo!

Mas tu consegues-te imaginar a fazer música sem a ajuda de um computador? Ou seja, como é que tantas e tantas pessoas conseguiam expressar-se sem os computadores, antes da era digital?

Queres dizer com um gravador four track? Ou um estúdio a sério, analógico, de 24 pistas?

Quero dizer com métodos analógicos.

Oh, acho que conseguia fazer isso. Não tinha era meios para isso. Claro que o resultado nunca seria o mesmo, mas o meu objectivo não é fazer música electrónica. É apenas o fazer música, e qualquer que seja o método sinto-me realizado. Por exemplo, esta semana fiz uma música nova. Só com guitarra, rhodes e bateria. E soava como Yo La Tengo.
[Stef] Fixe!
Claro que não tão bons como eles, mas...tu não consegues perceber que foi feito só com um computador e um microfone estéreo. Porque soa natural.

O que eu percebo é que tu tentas fugir um pouco dos estereótipos da música electrónica. Tentas ir mais além.

Não diria isso. Penso é que acredito numa visão alargada do mundo da pop (ou, se quiseres, da musicalidade) e que o meu primeiro álbum soa a electrónica. O que não significa necessariamente que os próximos irão soar assim, ou não. A electrónica é apenas uma forma de fazer música, percebes?

Claro. Mas quando eu falo desses estereótipos falo de um Aphex Twin ou dos Autechre, por exemplo. Música que é, de forma conceptual, puramente electrónica.

Sim, sim. Mas não sei bem o que te dizer...Bem, eu tento fazer apenas canções. E as canções podem ter formas diversas.

Para além disso, existe uma sensação intensa de melodia na tua música. Em vez de fazeres patterns repetitivos, cada canção tua parece ter uma história própria, com momentos alegres e momentos obscuros. Por outras palavras, as tuas canções parecem ser encaras como "pequenas sinfonias", tal como diziam os Boards of Canada.

A primeira pessoa a dizer isso foi o Brian Wilson! Mas espera, eles não disseram isso acerca dos Domotic, pois não?

[risos] Não.

Sabes que eu tenho um problema com estas músicas. Como elas estão todas na mesma tónica, elas usam todas a mesma forma de classificar as notas. Quer dizer, isto em grosso modo...Por isso, não tenho a certeza se isto não será apenas uma grande história (ou sentimento) e que as músicas serão apenas algumas tentativas de expressar este sentimento, contar esta história. Que achas? E agora estou a tentar prosseguir o meu caminho, mas ainda me sinto amarrado a esta história...

Mas achas que existe uma unidade, um conceito, que percorra "Bye Bye"? Esta história de que tu falas é, em si mesmo, um conceito...

Sim. Mas, sendo sincero, não existe verdadeiramente um conceito. Eu ia fazendo música na escola, e acabei por ficar com este conjunto de canções. Na verdade, nunca planeei ser um músico. Eu queria (ou ainda quero) ser um engenheiro de som e é esta a razão porque tive oportunidade de usar o ProTools...eu andava numa escola de som e imagem. Que foi onde encontrei o Stef. Encontrei também a pessoa com quem fiz o álbum, que é amigo do JC [da Active Suspension] e a quem entregou uma demo.

Essa pessoa é o Renaud?

Sim. O "mysterious Reno".

Podias falar do teu passado, mesmo antes de teres criado Domotic? Começaste a estudar música aos oito. E mais tarde começaste a ouvir Nirvana e a deixar crescer o teu cabelo....

Olha, deixei crescer o meu cabelo porque era tão cool!

O que é que aconteceu no período que vai dos Nirvana a Domotic?

Vieram os Sonic Youth, os Pavement e os Grandaddy!

Mas como é que começaste a fazer a tua própria música?

Pensando bem, é graças a uma série de coisas que eu comecei a fazer esta música...Comecei uma banda aos 14, e tocava bateria, cantava e escrevia as letras. Era, mais ou menos, grunge intrumental...Que vergonha! Depois, veio o post-rock. E finalmente, como estava sozinho em Brest, a estudar, e não podia trazer muitos intrumentos musicais comigo, trouxe apenas uma guitarra e um órgão, e comecei a fazer música usando-os, e a mais uns quantos samples.

Domotic é uma "one man’s army". Mas o Renaud chegou a integrá-la. Podias explicar a história à volta deste projecto? E há quanto tempo existe?

Eu fiz algumas canções, só por mim, e conheci este gajo chamado Reno. Toquei algumas canções com ele, que pareceu interessado e junta-se ao processo, por assim dizer. Mas o seu papel principal era o de ouvir e avaliar, o que me ajudou imenso. Para além disso, emprestou-me montes de discos. E é assim, os Domotic existem há três anos, quando eu ainda não conhecia nada acerca dos Autechre. Estranho, não é?

E então, como é que Domotic soava há três anos atrás?

Como o EP. A canção "B1" é a primeiríssima música de Domotic. Bem...soa um pouco mais minimalista que "Bye Bye", mas não é muito diferente. Existe uma canção do Ep que está no álbum, é a "Domestic Electrical Supplies".

O que é a "Smith, Klaus & White"?

A versão alternativa de "Smith Kline"? É uma canção para uma compilação de Natal.

Aquela com os Low?

Sim, sim. Eu fiz um rework da "Smith Kline". Mas não te aconselho a comprar o disco. Eles fizeram um mastering terrível da minha canção.

[O Stefan Laporte disponibiliza-se a enviar a versão correcta da música. Basta escreverem para deaf_beat@voila.fr e mandarem-lhe um cd-r]

Achas que existe, agora que o computador já faz parte, naturalmente, do processo criativo da música, uma simbiose entre a música electrónica e um certo imaginário infantil (passe o clichê)? Este imaginário infantil é a recuperação, de certa maneira, de uma pureza, quase inocência, que faltava na música electrónica? Domotic parecem fazer parte de um movimento com projectos como Manitoba, Isan, Manual, Marumari ou Múm, que introduz algo de precioso, diria quase exuperiano.

Electrónica infantil...

Sim...

Como tu já sabes [depois das nossas conversas anteriores], a minha cultura em relação à música electrónica não é muito grande. Por isso não sei dizer se a música inocente e naïve é realmente nova. Mas admito que isso pode parecer um aspecto comum às minhas músicas. Que são como canções de embalar. Eu acho é que Domotic soa assim porque todos os sons vêm, de facto, de órgãos para crianças, com presets sonoros patetas como "baby doll", "comet", "fireworks", "gurgle", "raindrop"...por isso tem necessariamente de soar infantil. Os engenheiros japoneses são inteligentes! (olha, isso seria um bom nome para um disco...)

[risos] É verdade! É curioso o que disseste, porque de todos os nomes que referi, em quase todos podemos reconhecer esse tipo de órgãos...

A sério?! E eu que pensava que isto era a única particularidade dos Domotic...Agora estou triste!

É interessante como eu pensava que tu serias originário de um qualquer país escandinavo, ou, no mínimo, de um sítio bastante a norte de Paris. Que comentário fazes ao estado da música francesa actual, que me pareceu, em tempos, quase refém da designação "french touch"?

Na verdade venho ainda mais do sul. Deixei Marselha há quatro anos. Mas "french music", "french touch"...nunca sei muito bem o que dizer acerca disso.

Posso-te dar uma ajuda. Eu odeio a expressão "french touch".

Claro, isso também eu. Quer dizer, eu não me sinto parte integrante de nenhum movimento, excepto no que se refere à Active Suspension, por isso não me sinto dentro de nenhuma cena ou qualquer coisa do género. Mas talvez o "french touch" já tenha acabado. E isso não deixaria de ser bom. Por outro lado, eu gosto e respeito os artistas da Active, mas não ligo muito aos outros. Eu sei que isto não é muito educado da minha parte...

É óbvio, para mim, que tu nunca pertencerias a uma cena "french touch".


Sim, sim! Como é que está a cena electrónica em Portugal?

Está a crescer, creio. Há novas editoras a serem criadas. Novamente: tens alguma opinião em relação aos fenómenos Daft Punk e Air? Já ouvi dizer que existem as fases pré"Moon Safari" e pós"Moon Safari".

Não concordo. De qualquer forma, eu nunca ouvi o "Moon Safari"...Passo a explicar: o underground nunca se preocupou muito com as rádios FM, não é verdade? Os Air não prestam. Eles apenas tiraram umas tantas receitas dos 60s e dos 70s e é tudo. Os Daft Punk tiraram as receitas dos 80s e dos 90s. Eles são organizados!

Não páras de me surpreender com as tuas opiniões. Nunca ouviste o "Moon Safari". Não estás muito por dentro da cena electrónica. E já me disseste que não gostavas de múm.

É verdade! Eu considero-me somente um Beatle com um computador.

E então quais são as referências de Domotic? Os nomes que me vêem à cabeça são, para além dos que já falámos, são os de Aphex Twin e Autechre, ou o "Vespertine" da Björk. Ou o Brian Wilson.


Eu odeio a Björk! Mmmmmmmm...Eu descobri os Beach Boys demasiado tarde. Penso que as referências são, como te disse, os Beatles (e aqui está uma razão para eu fazer pop), Grandaddy (e aqui está uma razão para não ter vergonha do meu teclado), e...Jim O’Rourke, Isan, Autechre, Aerial M.Mas agora os Domotic estão a tomar outro rumo, já deixaram de ser pop...que achas, Stef? Diz-me aí influências ou referências. Conheces gajos de jeito, não conheces?

[Stef] Olha, falando por mim, sou mais influenciado pelos Gastr Del Sol, por causa da mistura entre acústico e electrónico, que é mesmo um sucesso. Não sei se isto ajuda...

Não. [risos]

Esta inocência de que temos vindo a falar é um grande contraste com o que se passa no "mundo real". Este álbum parece-me um certo recolhimento na concha, ou seja, um afastar dos problemas do mundo, seja a extrema direita em França, seja a guerra no Iraque. Até que ponto é isto consciente? E até que ponto é uma fuga de problemas que me parecem tão distantes, tão desfocados, quando ponho o Bye Bye no leitor de CD. Percebeste?

[Stef] Eu não acho que haja somente inocência nos Domotic...Acho até que é uma maneira de esconder muito mais coisas.

Claro, é uma inocência fingida.

Continua...

Estou a tentar ler a pergunta de novo. Bem, talvez seja um modo de fuga dos meus problemas também? Quer dizer, a música pode ser uma maneira de evitar o aborrecimento.

[Stef] Penso que a inocência e as melodias fáceis são só uma maneira, uma forma de expressar algo.

Mas foi tudo feito antes do problema da extrema direita e da guerra do Iraque. De maneira que talvez eu também fosse algo inocente, tipo...assobiando para o ar e sendo feliz! Mas agora estou a trabalhar numa música que comecei antes da guerra, e vou acabá-la durante a guerra. Até que ponto é isto inútil ou não? Fazer música não afecta o mundo, se exceptuarmos o mundo musical, o NME, etc...

Mmmmmmm...achas mesmo isso?


Não sei. Eu pergunto-me se...

Não pode ser a música a nossa contribuição para o mundo?

Sim. Mas é difícil constatar os efeitos do nosso trabalho porque ele resulta, para toda a gente, a nível pessoal. Por isso tu não recebes um resultado global, mas sim montes de resultados pequeninos.

Essa é uma diferença considerável entre o rock e a electrónica, não concordas? A electrónica é feita a um nível pessoal. O rock faz sentido em estádios.
É verdade, mas não é tão linear assim. Os Low nunca resultariam num estádio, e os Daft Punk sim!

Pois, eu estava a fazer-te a pergunta e a pensar nos Underworld...

É verdade, eles também rockam! Mas eu queria dizer que toda a música resulta a nível individual, não só a electrónica.

Já agora, como é que os Domotic resultam ao vivo?

Mal? [risos]. Nós costumávamos ser três, mas agora estamos reduzidos a duas pessoas. Eu toco sintetizadores, 4-track cassettes, computador e um pedal de delay. E tu Stef, o que é que tu tocas ao vivo?

[Stef] Eu toco solos, mas só no soundcheck.

É verdade! "The Wall", nota por nota!

[Stef] E ainda faço sincronização video e...canto!

Eu também canto!

[Steff] Nós cantamos!

Vocês projectam videos durante os concertos?

Sim. E fizémo-los nós mesmos! Homens da Renascença, lembras-te? [novamente uma referência a conversas anteriores, em que falávamos dos artistas globais como "últimos homens da Renascença].

[Stef] Tu fizeste as filmagens, e depois editámo-los, e eu fiz a versão definitiva.

Mas têm uma relação directa com a música?

São filmes Super8, editados no computador, e de acordo com a música: hi-fi e lo-fi, analógico e digital. E sim, eu acredito que eles participam na construção da atmosfera dos concertos. Os crepúsculos, as auto-estradas, os comboios, as paisagens...é um pouco cliché, mas funciona.

Isso é muito interessante. Eu acredito que a imagem e o som são muito mais poderosas quando são conjugadas.

Eu também. Pelo menos, no que concerne aos concertos de música electrónica, porque não tem grande interesse olhar para um geek atrás de um laptop. Mas nós não somos geeks! Nós mexemo-nos! Nós dançamos!

[Stef] Nós temos groove!

Eu ia perguntar-vos isso...um geek não canta.

É verdade, nós cantamos.

[Stef] Mal, mas cantamos.

Li algures que interessava mais nos Domotic a noção de forma do que a de conteúdo, e não concordo mesmo nada. Parece-me, aliás, que a expressividade que existe em "Bye Bye" só seria possível através de um grande trabalho de introspecção, e que a forma é uma consequência do conteúdo. Acha que faz sentido falar aqui na dualidade forma/conteúdo? E de que maneira ela está expressa na vossa música?

Sim.

[Stef] Era exactamente isso que eu queria dizer há uma hora e meia atrás!

Mas eu pensava que tinha dito exactamente o contrário! Eu acredito muito mais no conteúdo do que na forma, e é por isso que eu afirmei que podia trabalhar num estúdio analógico. Ou fazer música acústica. É um tema muitíssimo interessante. É muito interdependente, como disseste. Provavelmente não teria algumas ideias que tive ao experimentar efeitos electrónicos (forma), incluíndo-os na canção (conteúdo). Existe, portanto, um feedback constante entre o que usas e o que fazes.

Estava a pensar nos múm, e é como se, de certa maneira, a vossa forma fosse semelhante à dos múm, mas o conteúdo diferente, mais próxima às vossas referências, sejam os Beatles ou qualquer outra.

Sabes que para mim isto é assustador, porque toda a gente começou a fazer comparações com os múm, e a música deles parece-me tão vazia, quero dizer, não me afecta, não me faz reagir. E, por isso, tenho medo de estar a produzir algo igualmente vazio. É terrível.

Porquê vazio?

Talvez não seja a palavra exacta. Mas a música deles não significa nada para mim, não me preenche. E tenho pena de dizer isto. A música deles está sobrecarregada de anjos barrocos e bébés...

Mas eu ouvi qualquer coisa de vocês fazerem as primeiras partes deles...

[Stef] Foi um terror.

Nós fomos horríveis, o público também, e assim como os múm também o foram...De qualquer maneira, os anjos e os bébés são muito vazios. Desculpa dizer isto...

[Stef] Eu diria que os múm são os antípodas dos Domotic.

Horríveis? Os múm? Menos as gémeas, claro!

[Stef] Sim!

Sim!

Não tanto como a Mileece!

Mas elas andam com os outros elementos da banda.

Isso soa-me muito a Abba!

Mas eles são iguais aos Abba! Com o mesmo penteado! Só não têm é a barba...

Mudando de assunto: descreve o teu projecto de um comic book [projecto paralelo de Laporte]

Bem...eu peguei num catálogo e enchi-o com litros de tinta correctora, com excepção de algumas imagens. E construí um cenário com as imagens que restavam. Acho que vai ficar engraçado...é a história de Frau Züber, Dr. Jörg e Pepe Züber. É complicado, mas é igualmente divertido! Pepe Züber é parcialmente biónico. Frau está a escrever uma novela chamada "Kitties are nice", e o seu irmão é um inventor que bionizou o seu pai. A mãe não quis ser robotizada e morreu! É uma história um bocado idiota, mas eu gosto!

Tens mais algum projecto, para além de Domotic e do comic book?

Fazer ilustrações. E filmes em super 8 para um grande projecto que é ainda desconhecido para a minha consciência...E, para além disso, trabalho num colectivo de artistas como engenheiro de som. "Field recordings" e "sound diffusions". Colagens. Situacionismo.

Situacionismo?Afinal sempre havia uma posição política.

Obviamente! Não está é presente no projecto Domotic...

E que colectivo é esse? Fala-me acerca disso.

Chama-se "Ici Même".

Aqui mesmo.

Exacto. Eles fizeram qualquer coisa em Lisboa, na galeria ZédosBois...

Que é uma das mais conhecidas de Lisboa.

...em 98, creio eu. A sério? Porreiro! Eu não estava por lá, ainda. Este anos temos trabalhado em conceitos como a viagem, a conversação, a segurança, os espaços públicos. Acampámos em cidades, dormimos em locais completamente estranhos, para nós. Foi uma experiência muito forte. Agora, a minha casa é a minha cidade. Eu vivo num squatt em Grenoble e corto madeira para a lareira, para me aquecer...

Bem, vamos passar à frente. Kandisnky costumava falar no conceito de "Arte total". Achas que existe alguma unidade entre os diferentes meios de expressão que usas, da música à ilustração?

Não exactamente. Será que o artista é em si o único elo de ligação entre tudo isso? Por exemplo, eu estou com um problema. Estou a trabalhar na sleeve para um novo ep, e as pessoas têm-me dito que eu deveria usar as minhas colagens, mas eu não consigo estabelecer uma ligação do meu trabalho enquanto ilustrador e enquanto músico. É difícil conseguir uma lógica.

Existem softwares que tentam construir imagens directamente dos sons, o que me parece interessante. Contudo, quer o som quer a imagem devem ter a sua preciosidade, devem ser únicos.

Sim, sim. Detesto esses softwares. Bleargh.

[Stef] É raro ver shows de video que se interceptem.

Bacon disse qualquer coisa como: "Se consegues descrever uma pintura, para quê pintá-la?" Passa-se a mesma coisa com o som e a imagem, não é?

Não creio que consigas exprimir o mesmo com diferentes media.

Sim, e é isso que faz cada media tão único.

Então, achas que devo combinar uma música que expressa uma determinada coisa com uma colagem que expressa algo completamente diferente? A música é uma peça de 20 minutos, bastante drone. Chama-se "Smile again". E em ambos os casos trata-se de algo bastante abstracto.

O que eu acho é que a era contemporânea, os pós-modernismos e afins, vivem da reciclagem das coisas, do dar novas identidades e contextos às coisas.

[Stef] Concordo.

Eu também. Isso é o que eu faço no meu comic book. E então?

Tudo depende da intenção. Quando passas a colagem para um novo sujeito, ou contexto, deixa de ser uma colagem para ser uma coisa nova, diferente.

Esse é o problema. Eu tenho intenções diferentes quando faço música e quando faço colagens, por isso torna-se impossível combiná-las numa nova e única intenção sem as perverter, a uma ou às duas...e como eu me importo muito com ambas, eu não deveria pervertê-las.

Mas a recontextualização é sempre uma perversão, não é?

Sim. Mas se for intencional é boa. As intenções são boas. (o que é outro bom título para um álbum).

[Stef] Stef, que tal tocarmos no Porto em breve?

Sim!

O Porto legisla! Convidem-nos!

Nós temos um festival, o Blue Spot...

Nós somos baratos! A sério!

[Stef] Sim, e cantamos grandes clássicos do rock, como "The Wall".

Nós tocamos à borla se nos pagares o comboio e arranjares um sítio para dormirmos!

[Stef] E alguma coisa para comer, por favor!

Vocês teriam sítio para dormir...duas pessoas...acho que a minha mãe [mum] não se importava!

A tua mãe? ["your múm?"]

Para comer é que teria de ser o que a Carminda vos oferecesse...A Carminda é a minha empregada, e garanto-vos que nunca conheci ninguém que cozinhasse tão mal!

[Stef] Estou interessado!

O Stef gosta de experimentar comida estranha.

[Stef] Lembras-te dos Surimis? Bem saborosos!

Wax surimis. Feitos de velas recicladas!

Mas ela é engraçada. Falamos muitas vezes sobre futebol.

Nuno, conheces o Chris Ware?

Não.

Ele é maravilhoso. Um gajo de Chicago que fez o melhor comic book de sempre...Aquilo faz uma pessoa chorar!

Infelizmente não é uma área que eu perceba muito, a da banda desenhada...Uma vez vi um que gostei tanto, cheio de colagens e photoshop... ["Troquei o meu pai por dois peixinhos vermelhos"]

Mas isto é muito mais que banda desenhada! Não é propriamente o Super Homem. Tens mesmo de arranjar. "Jimmy Corrigan, the smartest kid on earth". Do Chris Ware e publicado pela Fantagraphics Books. É um pouco a puxar para o antiquado, o grafismo...Não se afasta muito de um "Little Nemo in Slumberland", ou seja, banda desenhada do início dos 1910’s...É muito minimal.

Tenho de comprar Krazy Kat. Conheces?

Sim. Sabes que o Krazy Kat que arranjares vai ter, provavelmente, uma capa do Chris Ware.

A sério?

Houve agora uma reedição e ele fez a capa.

Então esse Ware ainda existe.


Claro, ele tem 35, qualquer coisa assim...Ele é um excelente artista, diria mesmo um génio.

Sabes que eu estou a pensar ir para essa área. Estou em design gráfico, mas interessa-me muito a ilustração, e mesmo a banda desenhada também. E estou cansado do Porto! Até Lisboa é uma grande cidade comparada com isto.

Espera! Lisboa é uma grande cidade, não é? Nunca lá estive, mas tenho ouvido sempre que é fantástica...

Pode-se dizer que sim. Eu gosto de Lisboa, e talvez vá para lá...ou Barcelona. De qualquer forma, acabo o curso com 21 anos...


Quem sabe! Eu também nunca diria que estava agora a viver num squatt [casa ocupada] em Grenoble...

Onde fica Grenoble?

Nos Alpes. Pode-se ver a neve no fim de cada rua. É uma cidade porreira. Temos um grande festival de música e cinema experimental. E a grande editora "Metamkine".

Deve ser lindo.

Imagina Paris com montanhas.

Porque Paris?

Porque o mesmo arquitecto trabalhou cá e lá...Haussman.

É incrível como um arquitecto pode mudar a imagem de uma cidade, não é? Como o Gaudi em Barcelona...

Concordo! Mas o Haussman é tão maçador...Cinzento. Severo. Burguês.

De volta a Bye Bye... Apesar da pureza (pureza?) que se pode encontrar no álbum, os nomes das vossas músicas remetem, pelo menos a mim, para o universo da produção industrial, com nomes de músicas como "Consilium Industry", "Isometric Unit Construction" ou "Western Airlines". É um paradoxo entre os títulos e o conteúdo das faixas? Ou será de mim?

Eu acho é que é de mim! Nunca liguei muito aos títulos. São apenas nomes que eu gosto. E eu apercebi-me que tudo o que as pessoas têm para perceber a música são os títulos e a música per si. Por isso eu era muito naïve e inocente. Mas agora preocupo-me bastante mais com os títulos. Fui entrevistado há uns meses atrás por um jornalista alemão, e todas as questões foram sobre os títulos e suas associações com as músicas. O que me fez mesmo pensar.

[Stef] Pergunta-lhe sobre a Kinberli.

E acerca da Kinberli? [risos]

E a Kimberli...emmmmmm, é da marca de papel higiénico do banco onde costumava trabalhar. [risos] Kimberli Clark. Até temos desta marca no squatt em que vivemos agora!

Qual é a história da música "Consilium Industry"?

É a marca de um aparelho electrónico, usado para testar objectos electrónicos...Já não tenho a certeza, mas nós usámo-lo quando estávamos a estudar em Brest. A grande maioria dos títulos possui este tipo de história por trás.

O que eu li foi que estava relacionada com um estúdio de música...

Não. Não era de um estúdio, mas sim cenas ligadas à electrónica.

Mas concordas no que se refere ao imaginário industrial? Eu vejo nomes como "Cyclatron", "Isometric Unit Construction"...

Obviamente que estes títulos estão intimamente ligados à indústrica e à técnica. São nomes muito frios, e, para além disso, possuem todos um ‘i’...

Como os Go-Betweens nos seus álbuns, têm sempre dois ‘ll’...


A sério? Eu não os conheço. A "Isometric Unit Construction" é uma colecção de mobiliário do Marcel Breuer, gosto do trabalho dele. Agora mesmo estou sentado numa das suas cadeiras, sabes qual é? A mais conhecida de todas...Acho que é confortável.

Sim, sei. Mas nunca a achei muito confortável, especialmente para os braços. Na "Domestic Electrical Supplies" juro que consigo ouvir um sample TS404 do Fruity Loops. Ao mesmo tempo, identifico um som de piano. É esta a luta de que falava no início da nossa conversa. Concordas?

TS404? Que é isso?

É um efeito do Fruity Loops.

Bem, eu uso apenas Pro Tools, e dentro deste, efeitos muito simples: delay, pitch shift. Essa música é baseada num sample de piano, e adicionei apenas alguns sintetizadores analógicos, alguns dos meus chavões electrónicos e é tudo. E a cena da beatbox. Essa canção não é das mais interessantes. É bastante simples. Esta canção, pelo menos. Eu disse-te que é do primeiro EP, por isso...

Qual é o teu ponto de partida. Por onde é que começas?

Não posso afirmar que tenha uma receita, uma fórmula, tento até evitá-las. Assim, por vezes começo com um sample. E, por vezes, o sample nem chega a ser o resultado final (como na "Cyclatron"). E, por vezes, tenho a melodia a soar na minha cabeça (como na música idiota, a "Durchkomponiert"). E, por vezes, tenho tudo na minha cabeça! Mas na maioria das vezes acontece um feedback constante entre a "vontade", ou seja, a pré-determinação das coisas que quero fazer, e a experimentação e improvisação. Eu tento provocar os erros, experimentar coisas sem saber como elas irão soar. E existem, portanto, montes de coisas que eu não uso num momento mas poderei pegar nelas e usá-las para algo completamente diferente. Por exemplo, a "Smith Kline" começou com um efeito de delay que experimentei numa melodia da "Durchkomponiert". A meio da música, logo a seguir a uma pausa, existe uma pequena melodia (logo a seguir à kalimba parar), e esta melodia, mais lenta, dá-te o tipo de som glockenspiel da "Smith Kline".

O nome das músicas é dado a posteriori?

Sim! De outro modo, elas passavam-se a chamar "Whatthefuck" ou "Whocaresanyway". No entanto, às vezes encontro o título antes, mas ele pode encaixar melhor noutra canção, por isso nunca os títulos nunca estão definidos antes da impressão.

Tudo depende da tua atitude quando chegas ao computador, ou a outra qualquer ferramenta.

Nem sempre a música começa no computador. Eu toco apenas sintetizador num dictaphone para gravar demos, de forma a lembrar-me...De facto, eu julgo que gosto de dar títulos, embora não lhes atribua um significado muito relevante, gosto apenas da sonoridade das palavras. Ou seja, o som é mais importante que o próprio conteúdo, que o sentido.

Isso vale como significado só por si, não achas?


Exacto...É como a poesia.

Na minha experiência como músico, ou pintor, o título acaba por ser bastante autónomo e independente. Dizemos algo que não cabe no poema, ou pintura, que não ser dito lá...

A minha próxima música chama-se "Animals are ugly and so am i". Arranjei esse nome num site!

Já agora, que significa Domotic?

Oh não! Estou a brincar, adoro esta pergunta. Domotic é a ciência da casa, dos robots computurizados...por exemplo, quando podes dirigir o teu forno de qualquer parte do mundo com um telefonema apenas. Sonhos futuristas....(outro bom nome para um álbum).

Esse é um bom nome para uma compilação new age...

Mas, mais uma vez, prefiro o som ao significado. É bastante redondo ao início, como aquele sintetizador simpático em domo (tic), e simultaneamente agudo como os cuts digitais e alguns sons muito curtos ("tic"). Como uma agulha no teu ouvido. É o que eu gosto neste nome. É suave mas agudo...Tem os dois lados, é bipolar.

Tal como a tua música.

Domotic é um projecto muito bipolar. Lo-fi / Hi /fi, Pop / Experimental, etc...

E em relação à tua editora, a Active Suspension? Como é que chegaste lá? Fala-me da tua colaboração com o Davide Balula – fizeste a "Pure Glace" com ele.


Como te disse, foi o Reno que mandou uma demo ao JC, e este depois decidiu editar o grande e previamente desconhecido EP. E depois, o álbum. Eu nunca mandei uma demo. O que é bom, porque o JC tornou-se um amigo. Eu gosto do que ele lança no mercado, por isso estou contente com esta editora! Quanto ao David Balula...Foi o último a entrar no barco. Ele faz um tipo de folk que integra electrónica, e canta e toca guitarra. E também é artista. E a primeira coisa que decidiram editar foi um set de 3 7’’. E em cada 7’’ existe uma música por ele e outra que é uma colaboração com outros músicos da Active. Ele escolheu Hypo, Olamm e Domotic. Escolhemos evitar qualquer tipo de remix, e construir algo que não conseguíssemos por nós mesmos. Por isso fizemos esta canção. Eu toco bateria e teclados, e canto no speaker esquerdo. Ele toca guitarra e toypiano, e canta no speaker direito. Nós adoramos esta canção, ele compôs e eu fiz o arranjo. Foi uma colaboração muito interessante. Também fiz uma digressão como músico de suporte para ele. Mas agora que vivo em Grenoble, talvez ele trabalhe com o Stef. Esta canção é o exemplo de que precisávamos. Não é electrónico, mas é Domotic, não achas?

Porque é que foste para Grenoble, uma cidade tão longe dos verdadeiros epicentros musicais?

Eu fiz experiências muito interessantes através da "Ici Même". E eu quis tentar ver o que acontecia ao projecto Domotic num lugar diferente. Sabes, aquilo é um squatt artístico, por isso estou em contacto permanente com montes de artistas. O que alimenta a minha reflexão e os meus conhecimentos...

Qual é o rumo de Domotic, de agora em diante? Qual é o teu futuro, os teus planos, os teus objectivos?

Ui! Não sei mesmo...Acabei de realizar um novo EP, e estou, neste momento, a trabalhar num tema para uma instalação sonora chamada AudioLab. Deixou de ser pop, deixou de ter ritmo. E, neste momento, a minha música centra-se muito mais em texturas, em sensações e percepções em vez de emoções. Mas, quem sabe, talvez faça uma música pop amanhã. Eu tento não aborrecer-me, fazer coisas que goste e de preferência que nunca tenha feito. E isto equivale a muito, muito trabalho...
Nuno Cruz

Parceiros