ENTREVISTAS
:papercutz
Made in Portugal
· 19 Jan 2010 · 00:21 ·
O projecto nasceu como tantos outros: timidamente, resultado de algumas experiências, para dentro. Mas à medida que o reconhecimento foi chegando, :papercutz foi-se agigantando. Chegou ao ponto de não ser já apenas o projecto de Bruno Miguel para se abrir a novos colaboradores, para permitir a entrada de novas e diversas experiências. Lylac é mesmo isso: uma manta de retalhos que se serve das múltiplas possibilidades da música electrónica para se acercar da música pop, abrindo portas em vez de as fechar. Sem vergonhas, :papercutz pronuncia-se em inglês para que se abram mais portas: a internacionalização não é uma prioridade para Bruno Miguel, é algo verdadeiramente natural, como algumas escolhas estéticas que regem o seu trabalho. Para percebermos um pouco melhor Lylac e :papercutz, fomos falar com Bruno Miguel que abriu as portas da sua persona musical para o Bodyspace numa entrevista que foi a todas.
Tudo começou com um trabalho a solo mas evoluiu para o que é agora, uma banda a sério. Como é que nasce e se transforma este projecto?

Nasce verdadeiramente quando lanço um pequeno trabalho de nome Articulated forms (em edição de autor) que é o resultado da junção de algumas experiências que fui fazendo a nível instrumental com participações de vozes convidadas, isto no tempo livre entre ensaios e concertos que tinha com a banda em que estava na altura, os Oxygen (o Bodyspace tem um crítica a um dos trabalhos do grupo... é a minha triste voz que o canta [risos]). A ideia inicial era simplesmente explorar um registo que misturava a pop e a electrónica com timbres mais refinados. Esse trabalho chega às mãos do Pedro Leitão (Mono¨cromatica) que propõe a edição, na sua netlabel, de algumas dessas músicas num E.P. intitulado Nighttime at the playground. Como tive uma receptividade simpática a nível da crítica, decidi continuar e dedicar-me musicalmente apenas a :papercutz. O passo seguinte mais lógico pareceu-me ser compor um álbum. Voltei a trabalhar com uma vocalista, a tímida Melissa Veras, e depois de um trabalho de cerca de dois anos com tudo que um álbum envolve, e pelo caminho a edição de temas em compilações, nasceu o Lylac, editado pela Apegenine Recordings de Montreal, Canadá. Desta vez a receptividade foi ainda maior e surgem pedidos para apresentar o álbum ao vivo, algo que eu mesmo sentia falta. É nesta fase que decido reunir um pequeno núcleo de músicos (a Melissa entretanto voltou para os Estados Unidos) para interpretar o álbum ao vivo e dar continuidade ao projecto de uma forma mais humana, com mais atenção aos instrumentos acústicos e à voz. Falo da Marcela e do BrunoR que fazem agora parte desta encarnação dos :papercutz no formato banda.

Como é que te aproximaste deste trabalho que fazes agora, da música electrónica, da música instrumental? Quanto tempo dedicaste a essa procura?

Penso que alguém que quer criar tem que estar atento à sua realidade e partir dela para novos caminhos. O projecto tem vindo a evoluir de uma forma contínua e pensada, e embora eu sempre tenha integrado a música electrónica e a voz (ou falta dela) nas minhas composições, as fontes acústicas como o piano, a guitarra clássica ou o xilofone, passaram a ocupar o meu interesse em vez dos instrumentos eléctricos dos meus primeiros tempos em bandas. Logo, não é bem uma procura mas antes um caminho que me parece lógico, que me interessa, e no qual sinto que tenho algo para oferecer.

Sabemos que há um percurso percorrido com temas editados em várias compilações. Qual é a real importância desse caminho para chegar ao som de :papercutz?

Tudo o que componho tem um contexto temporal no qual faz mais sentido em termos estéticos mas há uma aprendizagem e sonoridade que vai atravessando o trabalho do projecto como um todo. O segundo álbum de originais que já estou a escrever, e que se tudo funcionar como planeado sai ainda este ano, será já um pouco diferente do Lylac, com algumas características comuns ao resto do trabalho que tenho vindo a desenvolver.

© Paulo Fernandes

O álbum, Lylac, como resumirias a sua criação? Foi um disco fácil de apurar, de concluir? Era aquilo que querias e precisavas naquela altura?

Eu trabalho muito com conceitos, já que me facilita a composição. Dessa forma passo a dispor de uma linha que acaba por definir todo o trabalho e ajuda-me nesse caminho da composição, nem que seja a descartar o que não interessa. Houve uma fase inicial de criação do conceito e do que pretendia do álbum, antes mesmo de pegar num instrumento, depois foi um longo trabalho pois nunca tinha escrito um álbum sozinho, tanto a nível musical e de produção como na escrita das letras. Estas acabam também por ter um parto difícil pois abordam algumas das questões que enfrentava na altura, basicamente o chegar à vida adulta na sociedade moderna e todo o pensamento que isso acarreta. O segundo álbum está a ser mais fácil, pela experiência que ganhei e é um pouco como aquela expressão da indústria Americana, "it takes a lifetime to record your debut album and a year to write the follow up".

Esse segundo disco já está a ser construído? Como está a evoluir? O que é que nos podes contar acerca dele?

No primeiro trimestre deste ano entra em fase de pré-produção, as gravações deverão acontecer a meio do ano. É difícil estabelecer prazos concretos de momento porque irá acontecer tudo em paralelo com a nossa agenda de concertos, logo vai ser nos intervalos de tempo que dispomos. De momento trata-se de definir um conceito, escolher dentro de algumas canções já compostas de acordo com esse conceito, compor mais algumas...é na realidade das fases que mais gosto porque soa tudo a fresco. De uma forma bruta posso para já dizer, que em termos de letras o álbum partirá do Lylac no sentido da procura de um equilíbrio interior para o entendimento do que me parece ser um dos nossos maiores mistérios e que tem sido fonte de inspiração para a arte desde sempre: as relações humanas. Será baseado em situações que passei e outras ficcionadas. No ano que passou perdi duas figuras importantes na minha vida, ambas me ensinaram muito sobre como encarar a vida e isto afectou-me e despertou-me a vontade de falar e de escrever sobre assuntos humanos e a sua dualidade como a vida e a morte, o amor, o ódio, a partilha, a inveja... algo que sempre evitei ou mencionei de uma forma abstracta mas que agora decidi enfrentar de frente. Mesmo que o resultado seja visível por pessoas fora da minha realidade, eu fico assim com um documento de uma passagem da minha vida e quem sabe, até possa surtir alguma curiosidade ou interrogação nessas mesmas pessoas já que afinal todos passamos pelo mesmo. Aliás, criar música é uma partilha discreta. Em termos musicais, os instrumentos acústicos e a voz terão maior espaço, a electrónica vai passar mais para um papel de fundo criando ambiências, texturas e uma certa tridimensionalidade à música (algo que tenho experimentando já nos concertos) e as canções irão mais directas ao assunto. Isso não quer dizer que se tornem fáceis. Como disse o Sassetti "espremer a música até à sua essência...simplicidade que não é simplista mas que é simples". A ideia será mesmo essa, espremer a essência de :papercutz.

No teu disco de estreia, o interesse da Apegenine nasceu de que forma? Como te sentes nessa casa da música electrónica?

Na altura de procurar uma editora, compilei alguns temas do álbum numa demo e enviei para editoras nacionais e estrangeiras. O interesse veio sobretudo de editoras estrangeiras. A Apegenine foi uma delas e achei que o Lylac fazia sentido no catálogo dela, onde figuravam nomes como o do David Kristian, Khonnor, Emanuele Errante, Julien Neto, Hunz, entre outros. Senti-me bem enquanto estive ligado à Apegenine mas de momento já assinei por uma outra editora, a Inglesa Audiobulb. A ideia é procurar editoras onde os trabalhos se encaixem e façam sentido para o seu mercado. Felizmente, hoje em dia, o interesse das editoras por :papercutz é maior e consigo facilmente casas para os meus trabalhos. Suponho que ainda irei passar por algumas até me decidir por dar um passo mais definitivo.

Editaste pouco depois algumas remixes de temas teus. Como é entregar assim música para a reinterpretação de outras pessoas? É complicado abrir mão das peças todas?

Não é complicado desde que se entregue o trabalho a artistas que confie no resultado. Aliás, gostei tanto da primeira experiência, que durante o primeiro semestre deste ano irão ser editados temas do Lylac remisturados num formato mais calmo, juntamente com uma faixa original de :papercutz . Este trabalho com o nome Do outro lado do espelho (Lylac ambient reworks) inclui remisturas de artistas que admiro como Taylor Deupree, Helios, Jasper TX, entre outros e alegra-me dizer que inclui a participação de um artista português, o Luís Fernandes (um dos fundadores dos peixe:avião) com o seu projecto de música electrónica que muito gosto, The Astroboy.

Essa reinterpretação dos teus temas é algo no qual investirás no futuro?

Sem dúvida!

O que é que te agrada tanto nessas interpretações?

O cruzamento de linguagens musicais distintas, a experimentação e o fazer chegar a música de :papercutz a um novo público. Outra coisa interessante é que há medida que crias um público para o teu tipo de música ficas mais preso a uma sonoridade e imagem e este tipo de trabalhos é como um pequeno passe que te permite dar uns saltos fora do percurso.

Tu próprio fizeste uma interpretação do “Forbidden Colours”, um tema que me agrada muito. Escolheste essa e mais nenhuma outra. Porquê?

A explicação é mais simples do que possa parecer. Na altura em que fiz essa escolha, a Apegenine preparava-se para editar uma compilação na altura do Inverno e pediu aos artistas para participarem com um tema e esta música desperta em mim esse tipo de imagens, o Inverno, neve...mais do que qualquer outra música que eu tenha feito até agora e decidi experimentar (mesmo tendo consciência que teria que haver um pedido para o seu uso). E obviamente sou um fã do trabalho do Sakamoto e do Sylvian (e quando estes se juntam criam algo de extraordinário). A editora gostou tanto do resultado que decidiu incluir o tema na versão digital do álbum, em vez de a incluir na compilação. Já fiz também uma remistura para peixe:avião e tenho tido ofertas para outras remisturas que quando tiver mais tempo livre de :papercutz posso vir a aceitar esses desafios. Gostei do facto de teres usado o termo interpretação, na realidade é dessa forma que vejo este tipo de edições paralelas aos temas originais, as que faço e as que fazem de :papercutz. É sempre isso que peço aos artistas envolvidos, uma interpretação do tema original.

© Paulo Fernandes

Tens recebido alguns prémios ultimamente para o Lylac, um deles é foi o The People´s Music Awards em Londres. Qual a real importância desse tipo de prémios? Servem para abrir portas?

Honestamente, custa-me ver a música como uma competição mas estes prémios são importantes para abrir portas, sim. Apenas isso. Dou mais valor a concertos bem sucedidos ou a um álbum do qual me sinta orgulhoso e que seja bem recebido.

Investes bastante em levar a tua música para fora de Portugal? É uma prioridade para ti neste momento?

Mais que uma prioridade tudo isto tem partido de uma série de acontecimentos que em parte não estavam programados, a partir dos quais tomo as decisões que me parecem as mais acertadas. A verdade é que há interesse lá fora pela música que faço, basta olhar para as editoras pelas quais tenho editado, e tenho a vontade de explorar nichos de mercados que não existem cá. Aliás faz-me confusão que tomemos como certo o facto de projectos estrangeiros virem cá tocar e nós não termos a simpatia de os ir visitar [risos]. E vejo com bons olhos existirem outros projectos nacionais que já chegaram ao público internacional e outros que para lá caminham.

Que projectos são esses de que te orgulhas?

Os que já chegaram a esse público, as pessoas já os os conhecem (excepto talvez o Rafel Toral e o Victor Gama), logo mais vale apontar os que penso que estão no ponto de, ou que acredito terem potencial para: Micro Audio Waves, X-Wife, Legendary Tigerman, Noiserv, Moullinex, Norberto Lobo, Dead Combo e Tiago Sousa são os que me vêm à cabeça mas posso estar a esquecer-me de algum. Penso que sobretudo os projectos instrumentais têm um mercado à espera deles do qual ainda não estão a tirar partido. E tenho pena que o Bernardo Sasseti não tenha perseguido essa internacionalização, já que é para mim um dos nossos mais brilhantes músicos. E ao nível dos melhores em todo o mundo. Atenção que eu acho que alguma (não toda) da revitalização da música portuguesa que temos assistido têm valor mas é mais complicado ultrapassar as fronteiras. O nosso grande problema está a deixar de ser a falta de qualidade na música que fazemos (embora ainda haja muita cópia, o que me entristece) mas sim a falta de uma estrutura, de uma indústria. Da forma que a venda de música está em declínio penso que nunca teremos essa indústria por cá (em outros países o facto de as empresas terem crescido permite-lhes agora procurar formas de se reinventarem) e a única hipótese é os artistas procurarem soluções editoriais fora de Portugal se quiserem o mercado internacional. As pessoas estão convencidas que apenas as editoras ganhavam com a venda de música mas isso não é verdade. Os artistas precisam de editoras, sobretudo em início de carreira, e sem esse apoio terão que fazer tudo pelas suas mãos... enquanto que se as editoras crescerem tal como qualquer empresa que se queira expandir, a exportação é o passo seguinte. Aliás, o que costumo dizer é que não vejo com maus olhos as pessoas fazerem download de música, sempre estão a descobrir novos artistas e poderão mais tarde compensar, se assim quiserem, ao vê-los ao vivo mas a verdade é que ao comprarem o álbum estão muitas vezes a pagar um segundo ou terceiro álbum e a mostrar que vale a pena a editora apostar nele e noutros que possam aparecer pelo caminho.

Que tipo de música, de artistas, de editoras te entusiasmam nos dias que correm?

Quanto a música ou artistas, a lista seria interminável mas basicamente entusiasmam-me as vozes próprias e que alimentam o nosso imaginário. Entusiasma-me música que faz sonhar e nos liberta da nossa condição humana... é a única forma de espiritualidade que entra na minha vida. As editoras são mais fáceis de enumerar, basicamente Independentes, que se afirmaram com critérios de qualidade de catálogo e de imagem: Warp, Kranky, FatCat, 4AD, Ghostly International, Type, 12K, Touch, SamadhiSound, ECM e a nossa Clean Feed. Honestamente, e como já referi, espero que as editoras não desapareçam ao contrário do que se anda a apregoar. São uma base importante na música e a combinação de uma boa editora com um artista emergente pode ser mágica. Servem também como filtro, num mundo em que a música paira em todos os cantos da Internet. Isso não quer no entanto dizer que estas não devam explorar outros meios de subsistência para além da venda directa de música. Os tempos são outros e ou nos adequamos a eles ou ficamos a perder.

Sei que és um fervoroso adepto do Porto enquanto cidade. Mas também sei que decidiste recentemente não viver na cidade. Porquê?
Eu não decidi não viver no Porto, ou pelo menos não foi uma decisão consciente. Vivi muitos anos no Porto com os meus pais e mais tarde sozinho, mas queria encontrar, juntamente com a minha namorada, uma casa para restaurar no centro histórico e um espaço por perto em que pudesse ter o meu estúdio (é a minha segunda casa). Na altura dessa procura os preços no Porto para esse tipo de imóvel estavam inflacionados e por outro lado, na minha opinião, muitas das zonas centrais do Porto deixavam muito a desejar. Já tinha passado por um estúdio na zona da Batalha e fiquei com má impressão, produzo sobretudo à noite, é quando mais gosto de trabalhar, e quando saía às tantas da manhã de volta para casa deparava-me com uma cidade deserta e houve algumas vezes que enfrentei problemas, inclusive. Pedi conselhos a uns amigos arquitectos sobre outras opções com as características que procurava, dentro do distrito do Porto, falaram-me de Vila do Conde, onde estou agora, feliz com a minha decisão. Continuo a ir ao Porto várias vezes por semana (as portagens na Scut é que vão estragar o esquema), já que é lá que estão os meus pais, parte dos meus amigos e até o meu agente. Vou sobretudo ao fim de semana também pela oferta cultural. Tenho ficado muito feliz com o que tenho encontrado, sobretudo na forma como as pessoas vivem a cidade na zona da Baixa, Clérigos, Miguel Bombarda e zonas contíguas. Se as coisas continuarem assim, é provável que a vontade de regressar à cidade do Porto cresça. A questão de ser um "fervoroso adepto do Porto", como dizes, tem o motivo sentimental, o Porto é a única cidade do mundo onde tenho verdadeiras memórias e me sinto em casa, porque, mais do que uma rivalidade (gosto, também, muito de Lisboa), acho que cada um deve fazer o que pode pela cidade que melhor o representa, só assim esta pode crescer em todos os sentidos. É inegável dizer que o Porto tem sido prejudicado pelo centralismo. Basta usar como exemplo os media, o Jornal Notícias e o Primeiro de Janeiro são o últimos jornais diários ainda no Porto, a esperança da NTV se transformar na RTP-N, sendo o N de Norte, ficou pelo caminho, já quase nada resta da televisão produzida nos estúdios do Monte da Virgem. Qualquer coisa que queira fazer a nível de promoção sou quase sempre obrigado a ir a Lisboa... as pessoas do Porto com uns bons anos a mais do que eu, riem-se da minha indignação. Dizem que é assim desde sempre! Sou a favor da regionalização, claro...

A cidade onde se deve é e deve ser um forte input para o tipo de música que se faz ou achas que a universalidade derrubou essas “barreiras”?

Acho que cada da vez mais vivemos num mundo globalizado, logo deixa de ter tanta importância de onde vimos, a não ser na cabeça dos críticos (vou começar a dizer que sou de Brooklyn [risos]) mas não deixa de ser importante os artistas absorverem o que lhes está mais próximo, reinventando-o para chegarem a novas fórmulas. A globalização tem também essa característica que os músicos podem usar a seu favor, a procura do exótico, por exemplo, como elemento diferenciador. Casos como os Buraka Som Sistema são paradigmáticos, música que nasce com condimentos próprios das cidades de origem dos músicos e funciona muito bem em todo o mundo. No meu caso, tento sempre absorver influências à minha volta mas regra geral não o faço exclusivamente na música, logo quanto mais rica a nível cultural for a tua cidade, mais podes absorver dela.
André Gomes
andregomes@bodyspace.net

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