ENTREVISTAS
Dave Burrell
Ecos da história
· 13 Jan 2010 · 16:21 ·
É um músico de excepção e um dos testemunhos vivos da história do jazz – e do “free”. Ao piano gravou discos que ficaram para a eternidade, colaborou com alguns dos maiores saxofonistas do mundo. Ao lado de Archie Shepp, gravou obras-primas como Attica Blues, Blasé ou Yasmina, A Black Woman; ao lado de Pharoah Sanders gravou discos míticos como Tauhid; ao lado de David Murray fez uma parceria memorável, testemunhada em inúmeros discos. Já gravou mais de cem álbuns - Echo será provavelmente o seu pico criativo - e tem espalhando o seu talento em diversas colaborações. Recentemente, tem colaborado com o contrabaixista William Parker e o seu projecto “The Inside Songs of Curtis Mayfield”, que reinventa a soul guerreira do autor de “Superfly”. Agora, o pianista que viveu a explosão do “free” vai passar por Portugal para dois concertos: no Porto (Culturgest) apresenta-se num solo absoluto; em Lisboa (Maxime) actua com o Sei Miguel Edge Quartet, numa combinação de resultados imprevisíveis. A história está a passar por aqui.
Nascido no Ohio, passou grande parte da infância e adolescência no Hawaii. Como foram os seus primeiros contactos com o jazz?

Os meus pais possuíam uma riquíssima colecção de grandes discos de jazz, desde os anos 20 até aos anos 50. Lembro-me especialmente de ouvir sem para os discos de Max Roach e Clifford Brown com Harold Land, o quinteto de Cannonball Adderly e Sarah Vaughn com Roy Haynes.

Na altura em que começou a tocar piano, quem eram os seus músicos de referência?

Lembro-me que quando era adolescente admirava imenso os pianistas Errol Garner e Ahmad Jamal. Adorava o disco Mambo Moves Garner [1957], que contava com a participação do grande percussionista Candido Camero. Há cerca de dois anos atrás tive o grande prazer de actuar num concerto em Nova Iorque com o Candido – num grupo liderado pelo Art Davis.

Tendo vivido em Nova Iorque a partir de meados dos anos 60, quando no mundo do jazz se assistia a enormes desenvolvimentos, teve oportunidade de conhecer grandes músicos da época. Isto terá sido importante para encontrar o seu caminho individual?

Quando conheci o Archie Shepp ele tinha acabado de deixar o grupo inovador do Cecil Taylor e estava a gravar para a ABC Impulse (Fire Music). Contudo, o primeiro grupo com o qual toquei quando cheguei a Nova Iorque em 1965 foi o quinteto de Marion Brown, que incluía Grachan Moncur III, Andrew Cyrille e Bob Cunningham. Aprendi imenso com Archie Shepp, Roswell Rudd, que estudou com Herbie Nichols, e com Grachan Moncur III, que na altura já tinha gravado o disco Some Other Stuff na Blue Note - com Wayne Shorter e Tony Williams.

Os seus primeiros grupos "Untraditional Jazz Improvisational Team" (com Byard Lancaster, Sirone e Bobby Kapp) e "360 Degree Music Experience" (com Grachan Moncur e Beaver Harris) foram importantes no processo de desenvolvimento da sua linguagem pessoal e da comunicação com os outros músicos?

Na qualidade de líder do “Untraditional Jazz Improvisational Team” tive a oportunidadde de gravar a música do West Side Story de Leonard Bernstein, com arranjos para um contexto avant-garde. Ter sido o co-fundador, co-líder e compositor e arranjador principal do grupo "360 Degree Music Experience" foi importantíssimo para mim naquela altura da carreira, incluindo o trabalho no LP From Ragtime to No Time, que contou com a participação de Doc Cheatham, Herb Hall, Maxine Sullivan, Marshall Brown, Ron Carter, Jimmy Garrison e Cecil McBee. Durante essa altura em que fazia parte do “360 Degree” também estava a estudar, com Marshall Brown – excelente músico (trombone de válvulas) e líder da Newport Jazz Festival Youth Orchestra.


O disco Echo, editado em 1969, é ainda hoje em dia um disco notável, é um documento de uma música muito intensa. Ainda ouve os seus discos mais antigos? Da sua longa discografia, consegue escolher um disco favorito?

Eu continuo a ouvir coisas novas de cada vez que ouço a remasterização do Echo. Também gosto muito dos dois discos em duo com o David Murray editados na Gazell, Brother to Brother e Daybreak, e consigo ouvir sempre coisas noivas, coisas nas quais que não tinha reparado ao princípio. E uma vez aconteceu uma história engraçada: o disco Blasé [de Archie Shepp, com Burrell no piano] estava a tocar antes de um concerto em Itália. Ao ouvi-lo nessa altura, gostei da música ainda mais do que na altura em que o gravámos, em 1970!

Já participou em inúmeros discos de saxofonistas influentes, como Archie Shepp, Pharoah Sanders e David Murray. Poderá dizer-se que desenvolveu uma relação especial com esse instrumento?

O saxofone é normalmente o instrumento que lidera. Eu tive primeiro de encontrar o meu lugar de “acompanhante”, só depois é que me pude aventurar a “solar” ao lado destes músicos inovadores. Por exemplo, o ano passado toquei com o saxofonista Giuseppi Logan em Nova Iorque e estivemos a debater o meu papel de acompanhante, de como adaptar o piano às suas melodias intrincadas... Com o Giuseppe, tal como acontece com o Pharoah Sanders, o saxofone e o piano têm papéis completamente diferentes.

Compôs uma banda sonora para o filme mudo Body and Soul, realizado por Oscar Micheaux em 1925. A composição para cinema é algo que aprecia?

Desde que estudei composição para cinema na Berklee College of Music, vejo com bons olhos as oportunidades de criar música para filmes. Quando compus a banda sonora para o documentário W.E.B. DuBois - A Biography in Four Voices no início dos anos 90, descobri que desde que a história do jazz se entrelaça com a história afro-americana, o meu trabalho tem uma dimensão mais alargada. Isto tem sido cada vez mais evidente no meu trabalho de composição actual. Como compositor “em residência” no Rosenbach Museum and Library in Philadelphia, onde estive durante quatro anos, sinto que cresço intelectualmente quando trabalho sobre documentos históricos – o meu trabalho mais recente chama-se “The Western Extension of the United States: Oregon Territory” e vai passar na televisão pública.

Como tem sido a experiência no projecto “The Inside Song of Curtis Mayfield” de William Parker?

Tem sido uma experiência muito positiva, uma vez que os arranjos que o William Parker trabalhou são muito fortes e todos temos desenvolvido os nossas funções específicas muito bem – isto é, duas vozes, três sopros e secção rítmica. É entusiasmante revisitar o legado de Curtis Mayfield, que se transformou na banda sonora do movimento dos direitos civis na América.


Como veterano da cena jazz, está a par das novas gerações de músicos? Quem gosta de ouvir?

Dos músicos mais jovens gosto especialmente de ouvir Vijay Iyer, Matthew Shipp e Steve Lehman.

A sua discografia inclui quase uma dezena de gravações a solo. O que podemos esperar do seu concerto a solo na Culturgest Porto?

Novas formas de “swing” e improvisação sobre baladas e blues.

Em Lisboa vai actuar com um grupo de músicos portugueses, o Sei Miguel Edge Quartet. Já conhecia o trabalho destes músicos? Sente-se à vontade a tocar com músicos com quem nunca tocou antes?

Embora esteja honrado e entusiasmado com o convite, não estou muito familiarizado com o seu trabalho. Contudo, o meu trabalho como improvisador já funcionou anteriormente em ocasiões semelhantes - recentemente fui convidado pelo grupo “Sine Loco” de Nicola Pisani e tocámos nos festivais de Cosenza e Molfetta. A experiência da improvisação vai permitir-me interagir com a abordagem de Sei Miguel.

Quais são os seus projectos para os próximos tempos?

Neste momento tenho previstas colaborações com a saxofonista alemã Silke Eberhard e novos trabalhos com David Murray.
Nuno Catarino
nunocatarino@gmail.com

Parceiros