ENTREVISTAS
Fujako
Bichos do mato
· 10 Dez 2009 · 15:54 ·
Situada no distrito de Viseu, concelho de São Pedro do Sul, a Aldeia do Fujaco seria o sítio mais improvável do país para ver nascer um disco de hip-hop corrosivo. Os poucos roteiros que mencionam a aldeia descrevem-na como um lugar onde o xisto das casas se confunde com o da paisagem envolvente. Anómalo e igualmente camuflado pela natureza da Beira Alta, Landform, possante álbum de estreia dos Fujako, é um cabrito de cornos retorcidos que destoa da restante fauna nacional. A aventura que terá sido gravar tão fértil quantidade de ritmos, a partir de matérias de recurso e a dezenas de quilómetros de qualquer estúdio, transparece agora num álbum-ritual vivido com os pés pendurados pela corda e o uivo do mato ampliado nos ouvidos.

O atrevimento de tão macabras produções partiu de Jonathan Uliel Saldanha (imparável força de inúmeros projectos da Soopa) e do produtor francês Ripit. São eles os cozinheiros do caldo guarnecido pelo flow macumbeiro de MCs como Sensational (capa da Wire de Dezembro), Seraphim, Cheravif ou Native. Não fodam com estes gajos. Disposto a abrir o livro de episódios e métodos em torno do peculiar Landform, Jonathan Saldanha (tcp HHY) guiou o Bodyspace pelas redondezas de Fujako.
Atendendo a que informação ainda é escassa, perguntava-te acerca das origens de Fujako. Como germinou o projecto?

Conheço o Nyko Esterle (aka Ripit) há algum tempo, temos amigos em comum na música e foram esses que nos conectaram. Desde essa altura ficámos sempre com vontade de fazer algo juntos. Ele esteve ligado às freepartys em Paris (fim dos anos 90), organizava também dezenas de festas em squats, e esteve ligado ao início do movimento breakcore (como músico e organizador). Na altura eu produzia um híbrido de jungle e freejazz, pelo que sempre pensei que íamos construir algo nesse caminho: rápido, saturado e espasmódico. Mas, quando começámos com Fujako, sentimos que íamos fazer algo muito lento e com muito espaço, uma motivação completamente inesperada e inexplicável naquele momento! Penso que essas direcções nasceram do profundo interesse pelo dub. Falo dos processos alquímicos de King Tubby ou Scientist, e não propriamente do estilo dub e menos ainda do dubstep, pelas suas propriedades de redução pelo eco de uma estrutura à sua memória, e pela reverberação do seu espectro. Fujako projecta-se nos fantasmas do hip-hop pelo dub, não enquanto formalização técnica de estilo, mas pela evocação e decantação.

Como estabeleceram a correspondência entre os instrumentais e as vocalizações dos diferentes MCs?

Construímos os instrumentais durante um período de tempo particular, vivido numa casa de pedra na montanha perto de uma aldeia em São Pedro do Sul, num cenário mental propício à construção do disco. Mais tarde fizemos chegar essas músicas a alguns MCs, todos eles de sítios e de vidas diferentes, e gravámos as vozes conforme as suas disponibilidades. Demorámos um ano até ter as vozes todas. O facto de durante esse período, tanto eu como o Nyko, estarmos a trabalhar com outros projectos, criou um limbo temporal para Fujako. Nesse período, da minha parte nasceram a F.R.I.C.S., HHY & The Macumbas e FacaMonstro, e da parte do Nyko nasceram os Solar Skeletons, o que nos obrigou a atrasar o timing da edição. Quando tivemos as vozes todas reunimo-nos em Bruxelas, no estúdio Silent Block, e misturámos o disco para o seu formato final.

Com que meios se chega a um disco como Landform? Que tipo de instrumentos acústicos utilizaram no disco? Até certo ponto, parece-me um disco feito com um computador e tudo o que alguém encontraria numa fazenda e num matadouro.

O disco foi todo gravado com apenas um microfone, um pré-amplificador, uma placa de som e um computador, mas a casa de pedra, onde gravámos, era perfeita, construída com pedras de xisto soltas e encaixadas umas nas outras, com uma acústica impressionante e com uma cor sonora característica. Ajudou muito à construção da alma do disco. Levámos um conjunto de instrumentos, que formaram o espectro tímbrico das músicas: partes de bateria, percussões (pandeiros, tablas, shakers), sopros (trompete, saxofone), um sintetizador analógico, chapas e cruzámos isso com pedras, grilos, bodes, cabras, corvos, etc..

Quando referes esse cruzamento com “bodes, cabras e corvos”, fico a pensar se o disco poderia ou não incluir uma declinação de responsabilidade, que assegurasse o facto de “nenhum animal ter sido magoado durante as gravações”. Eras capaz de me contar um pouco mais acerca de como incluíste os animais no disco?

Refiro-me a bodes e corvos enquanto evocação, quase como a essência dos animais que ficam petrificados num totem, um tipo de elemento que sugere um som ou um espaço nas músicas. Mas, para além de alguns animais, também rochas entraram no disco - de forma mais evidente na música “Stone Fire”. Pedras amplificadas com micros de contacto num esforço tosco de drenar o animismo das formas.

Acreditas que o facto de ter sido um disco produzido em isolamento afectou inevitavelmente o processo? Chegaste ao ponto da obsessão durante o tempo em que se dedicaram ao disco? Que tipo de hábitos tinham durante esses dias?

O isolamento foi um dos factores que despoletaram as dimensões presentes no disco, e a obsessão uma metodologia que encaro como essencial em certos momentos do processo de trabalho. É uma parte importante da música que faço. O sítio específico, em que estávamos, proporcionou as condições para nos dedicarmos ao som que produzíamos. Rapidamente encontrámos uma metodologia diária de trabalho, e, mesmo quando não estávamos no estúdio, estávamos dentro do disco, reconstruíamos o espaço em que nos encontrávamos e projectávamos uma cosmologia sónica a partir dele. Os sons, que rodeavam a casa, invadiam o disco e ocupavam o seu lugar na paleta acústica, a montanha também, sugerindo imagens. Exemplo: a música "Queda de Regoufe" corresponde a um episódio ocorrido na localidade de Regoufe, onde, num túnel de uma mina, eu vi dois olhos a brilhar no escuro e que me fizeram correr para fora do túnel!

A WordSound parece-me a label perfeita para lançar o Landform. Como chegaram a esse acerto? És um especial entusiasta de alguns lançamentos da WordSound?

A Wordsound é uma editora que conheço e sigo há alguns anos. Sempre me interessou a música que editavam. Foram pioneiros no hip-hop abstracto e no chamado illbient, movimentando-se num sincretismo, que retira tanto de cosmologias mais psicadélicas como do hip-hop de influência Wu-Tang Clan, ou da música ambiental, no sentido Eno do termo, passando por vezes perto do legado de Sun Ra ou Rammellzee. Como editora, o seu catálogo tem tanto de Jungle Brothers como de Prince Paul, Badawi ou Bill Laswell. Impressionante!

As primeiras vezes que ouvi discos da Wordsound, ficava agarrado à forma aparentemente aleatória como alguns samples são cortados ou loopados, com sons provenientes de bandas-sonoras de filmes de terror de série Z, enfatizando ainda mais a iconografia do oculto do som, onde MCs intoxicados lançam rimas fora da grelha. Mais tarde vi o documentário ficcionado Crooked, que oferece uma visão particular de um Brooklyn vivido na rua e que se misturava com pirâmides egípcias, beats psicóticos e dub. Perfeito!

Também conheço o Crooked. É um bom documento daquela temporada. Existe algum registo filmado da vossa temporada de isolamento? Se quisessem, podiam ter filmado ali um novo Projecto Blair Witch, não?

Não existe nenhum registo filmado nem fotos... Mas aconteceu mesmo! De qualquer forma, nunca seria minimamente um filme de terror. Nem todos temos medo de cabanas perdidas na montanha. Há quem se sinta confortável aí! Nas redondezas da casa só existiam imagens intensas, os fantasmas fomos nós que os metemos depois.


Que tipo de continuidade vislumbras para Fujako? É possível reproduzir este disco ao vivo com algumas adaptações? Consegues imaginar um segundo álbum?

Enquanto o som de Fujako se manifestar nas nossas caveiras, continuamos! A versão em vinil vai sair pela Angstrom Records, num duplo 10', e talvez algumas remisturas do disco também ainda este ano. Reproduzir este disco ao vivo, de uma forma fiel e mimética, não nos interessa. Estamos a recriar algumas das músicas em versão dub, expandindo-as ao vivo, em espaço e em tempo. Entretanto começámos a construir o próximo disco. Em 2010, teremos algo cá fora que vai contar com participações interessantes!

O que podes adiantar em relação a essas participações no segundo disco? Já te passou pela cabeça convidar um MC português? Eu via bem o Halloween a rimar sobre um produção de Fujako.

Não vou adiantar muito, porque ainda não sei muito bem como vai ser, se usamos ou não algumas das gravações que já temos, se este ou aquele MC vai ou não participar... Logo se verá! De resto, sim, já me passou pela cabeça convidar um MC português. Sou amigo, desde sempre, do pessoal dos Dealema. Estou ligado a estes MCs há anos: Maze, Ex-peão, Fuse e Mundo. Mas, mais uma vez, logo se verá!

A remistura de Tzii quase sugere um espectro medonho à espreita na montanha. É um excelente exercício de contenção. Sentes que complementa bem o disco?

Sem dúvida, o Tzii é fortíssimo em criar ambientes medonhos! É talvez uma das pessoas que de mais perto acompanhou o surgimento de Fujako. A integração da remistura dele na edição da Wordsound era para nós evidente. Tínhamos outras remisturas nas mãos, que ainda não saíram, mas optámos rapidamente pela do Tzii, que, muito mais do que as outras, construídas sobre beats, carregava e decantava a nossa imagética. Lembro-me de no processo de mistura, analógico e por isso lento, passar horas com a música dele, escutando-a repetidamente e tentando diversas equalizações. Estava profundamente hipnotizado pelo movimento que criou na sua versão.

Como tem sido colaborar com Mark Stewart? Que ensinamentos tens absorvido dessa experiência?

Tem sido muito gratificante a vários níveis de paranormalidade! O seu processo de pensar e construir música é bastante particular e intrincado, na forma de distribuir os níveis de leitura que se encontram numa música, filtrando as canções, quase sempre de contorno pop, numa reinterpretação orgânica e, mais uma vez, fora da grelha, dando-lhe uma outra leitura. Bem... É difícil explicar... É sem dúvida uma boa experiência estar com ele em palco, e perceber que tem algo que se tornou difícil de encontrar, de forma genuína num vocalista, uma propensão para o xamanismo e a alienação, que se encontra de forma clara no seu passado nos anos 80, com o pós-punk e o dub. O seu som impregnou o som de Bristol e o dub mais psicótico, e esse contexto é bom de absorver e reler. O último concerto que tocámos, Mark Stewart + Mécanosphère, teve a presença do Adrian Sherwood na mesa de mistura, e o facto de podermos tocar com o Adrian e o Mark é brutal. O futuro trará mais concertos e discos com eles.

Calculo que mantenhas alguma familiaridade com o hip-hop francês. O meu contacto é intermitente, mas parece-me que, há 15 anos, os colectivos faziam um excelente aproveitamento do modelo Wu-Tang Clan. Ultimamente o cenário perdeu-se um pouco em clones de 50 Cent. Até certo ponto, a França parece-me um micro-cosmos da tendência global. Concordas com isso?

A França é talvez o maior mercado mundial para o hip-hop logo a seguir aos Estados Unidos, obviamente, e, por isso, como muitas vezes acontece com investidas em massa, agarrou-se com toda a força ao lado electro e club, algo que não me entusiasma, tornando-se, na sua maioria, previsível, sem espectros, higienizado e pouco evocativo. É verdade que conheceu uma cena que considero mais pertinente anos atrás, muito inspirado nos Wu e no som mais hardcore dos anos 90, mas que desapareceu ou se tornou numa caricatura de si mesma e do modelo adoptado. Não sei, mas a verdade é que, sempre que escuto um DJ de hip-hop, pouco daquilo que tocam me entusiasma. Muitas das vezes são as duas ou três músicas de RZA ou J Dilla que me batem. Isto, claro, quando se fala do formato mais tradicional. Há outros projectos, que também se movem na equação hip-hop, que me continuam a entusiasmar!

Actualiza-me em relação às novidades da Soopa para os próximos meses.

Este ano está a imprimir um ritmo intenso para a Soopa e todo o seu cosmos. As bandas e projectos são muitos, mas o discurso é o mesmo. Talvez seja por 2012 estar a chegar! Projectos meus, ou a mim ligados, a ser editados este ano pela Soopa, são os vinis de Besta Bode, um 7” de Psychik-Death-Metal a sair em parceria com a Lovers & Lollypops, e HHY & The Macumbas, um 7' de Voodoo Dub. A par disso e em formato CD, temos o disco The Earth As A Floating Egg, que conta com uma cantora lírica, arranjos de cordas, e naipes de sopros. No joke!. Fora da Soopa e para além da edição em vinil de Fujako, sairá o segundo disco de United Scum Soundclash, de nome Machine Gun, pela americana Blossoming Noise, e que conta com vários músicos da cena noise/rock/psicadélica americana, e que foi produzido por mim e pelo Scott Nydegger. No plano dos concertos, até ao fim do ano, são muitos! Destaco apenas alguns: HHY & The Macumbas no festival Trama, Mental, Liberation Ensemble, em concerto com Rafael Toral, no auditório do Balleteatro do Porto, o ciclo de concertos EXPLOITATION, organizados pela Soopa e pela Lovers & Lollypops, em que destaco Besta Bode Vs. Marcelo Aguirre. Mas, como disse, há muito mais! Fora de Portugal, e para já, está a tour nos EUA do duo HHY & The Drums of Habnomcom, que conta comigo nas electrónicas e vox e com o Gustavo Costa (Genocide, F.R.I.C.S., Lost Gorbachevs), na bateria. Um duo com recorte sónico de Doom Dub. Estaremos em tour com Sikhara (de Scott Nydegger) e contamos com alguns convidados, como Steve Mackay, Raz Mesinai e Dan Kaufman. Quem quiser vai poder apanhar um dos concertos, que será transmitido em directo e arquivado online na mítica rádio WFMU de NY. Para mais novidades sobre as actividades da Soopa, basta ir consultando o site sempre actualizado.
Miguel Arsénio
migarsenio@yahoo.com

Parceiros