ENTREVISTAS
Kurt Vile
Um prodígio constante
· 04 Dez 2009 · 11:56 ·
© Shawn Brackbill
É fácil explicar o enquadramento de Kurt Vile: o puto nasce rodeado de música, amadurece com um banjo nas mãos, e os discos aparecem. Um pouco mais tarde surge o caule psicadélico da Filadélfia, que adormeceu com o arrefecimento dos Bardo Pond, mas que nunca desaprendeu por completo. Pelo meio, a Matador Records interrompe uma série nunca vista de flops com a contratação de Kurt Vile. Kurt não hesitou em fazer da todo-poderosa label a picareta certa para concluir uma escalada que vinha a ganhar consistência com cada CD-R e EP — esses que soam a espontâneos lo-fi muito mais do que a diários de desleixo.

E foi assim que a genética privilegiada de Kurt Vile culminou num dos discos mais pertinentes da ressaca da América freak. Livre de agenda, Childish Prodigy vive de movimentos próprios: situa a alma acima do género; destaca pedaços preciosos de jam (escute-se “The Hunchback”); dá corda à mais autêntica folk-rock americana como quem prepara a mochila musical para alguém que vai fugir de casa. Kurt Vile não está ali.

Se tudo correr bem, estará com os Violators, no Maus Hábitos (Porto) e no Frágil (Lisboa), a 8 e 9 de Dezembro, respectivamente. A segunda data, na capital, conta ainda com B Fachada, que, enquanto angaria amor e ódio em doses iguais, lá vai examinando o afecto em canções como este país não conhecia desde a melhor temporada de Rui Veloso. O Bodyspace moderou esta espera numa conversa com Kurt Vile.
Como tens passado? Que tens feito?

Está tudo porreiro. Ando um pouco ocupado, o que é bom, claro. Mas sou preguiçoso por natureza. Ultimamente tenho dormido até tarde. Fico por casa a tocar guitarra acústica e baixo sem preocupações. Isso e coisas inevitáveis do “negócio da música”. Voltei agora mesmo de uma longa digressão pelos Estados Unidos. Anseio pelos concertos na Europa. Estou muito entusiasmado. Ou assim estarei, quando tivermos tudo na mala e conseguirmos aterrar em segurança. Isso é sempre um stress…

Pelo que li acerca de ti e após ter escutado os discos, suspeito que mantenhas alguns álbuns no forno até decidires que é altura de os completar. Consegues antever um futuro preenchido por alguns dos discos que possam não ser mais do que esboços?

Grande parte das minhas gravações foram feitas muito antes de ter encontrado uma label interessada em lançá-las. Quando surgiu esse interesse, foi uma loucura compilar tudo o que tinha arquivado. Tenho vindo a escrever o meu próximo disco na mente e nas guitarras acústicas, mas ainda não gravei nada. Vou aguardar até encontrar o estúdio e o produtor certos, e essas cenas. Devo começar muito em breve. Já tenho um monte de canções. Pretendo dedicar-me muito a este disco. Espero fazer com que pareça bonito…

Suponho que a gravação de Childish Prodigy tenha sido mais dispendiosa do que a dos restantes álbuns. Acrescentaste algo após teres recebido o “sim” da Matador ou conseguiste financiar sozinho o disco que escutamos hoje?

Grande parte do disco estava gravado antes do “sim” da Matador. Mas ainda não estava masterizado, e aí eles foram uma grande ajuda. Algumas canções até foram remisturadas. As duas canções que gravei de facto, no seguimento do acordo com a Matador, foram “He’s alright” e “Goodbye, freaks” (sem título no disco). As outras estavam acabadas há vários anos. Acho que, depois de receber o aval da Matador, podia ter passado mais tempo a misturar as canções, mas andava há tanto tempo à volta delas que só queria despachá-las e partilhá-las com o mundo. De certo modo, essas canções transparecem a minha luta para fugir a um emprego banal, enquanto tentava encontrar um tecto para a minha música. Revelam uma urgência espalhafatosa. Fiquei satisfeito por deixá-las assim mesmo. Não fazia sentido poli-las. Estava na altura de avançar.

© Sara Mckay

É admirável a forma como transformaste a “Freak Train” num exercício rock que poderia durar uma eternidade sem nunca roçar o tédio. A aceleração daqueles 7 minutos faz com que pareçam apenas 2. Começou por ser uma canção mais curta que cresceu com o tempo? Quão variável é a sua duração?

Obrigado, meu. Bem… Eu comecei por gravar a drum machine numa fita. Não fazia ideia de qual seria a duração da canção, mas seria demorada certamente. Isso fez com que, logo de início, criasse um espaço para que respirasse. Senti que, a certa altura, seria inevitável editá-la. Mas, assim que mergulhas na música, torna-se difícil eliminar qualquer som que seja. Apaixonas-te pelas harmonias e pelos contornos até ficares hipnotizado. Fica a lição para quem procura escrever um êxito com uma drum machine: interrompam a batida por volta dos 3 minutos, no máximo!

Parece que a maioria dos músicos da tua geração tem um momento Pavement. Já os viste ao vivo? Guardas memória de algum episódio especial? Que opinião tens em relação à reunião marcada para o próximo ano?

Vi-os no festival Lollapalooza, quando o Wowee Zowee tinha saído. E, algumas vezes, durante as digressões de Brighten The Corners e Terror Twilight. Gostava de os ter visto na fase Crooked Rain, Crooked Rain, porque é esse o meu álbum favorito. Comprei-lo assim que saiu, mas acho que, nessa altura, não tinha como saber onde e quando iriam tocar. Ajustei as contas pouco depois. Estou entusiasmado com a reunião. Adorava abrir para eles, mas isso é o que toda a gente deve querer. Ainda assim, acho lindo que sejam os meus amigos Endless Boogie a ocupar esse lugar.

© Devin Woolf

Algumas das canções incluídas no Childish Prodigy, como é o caso de “Monkey”, não soariam estranhas ao lado de Neil Young e Tom Petty, numa rádio de rock clássico americano. Com este disco, recebeste alguma reacção da parte de alguém que dificilmente pegaria num disco da Matador?

Na verdade, “Monkey” é uma cover de Dim Stars, a banda de Richard Hell, Thurston Moore, Steve Shelley e Don Fleming. A canção passou a ser nossa com a versão, mas trata-se de um tributo. A versão dos Dim Stars é uma obra-prima, e a letra é linda. E era suficientemente obscura para que tivesse vontade de fazer uma versão, embora não soubesse que seria incluída no álbum. Mas era a nossa canção mais “orelhuda”, e achei que daria alguma descontracção pop ao disco. A reacção tem sido quase sempre boa por parte de meios grandes e pequenos. Algumas pessoas ficaram confusas com o álbum, mas é impossível agradar a toda a gente. Na verdade, a minha música anda um bocado a leste de tudo, o que faz com que agrade mais aos freaks do que ao público mainstream. Mas nem sempre é assim. Estou satisfeito com os elogios que recebi e procuro ignorar os detractores.

Até que ponto o facto de viveres em Filadélfia contribuiu para a tua escrita?

O benefício é essencialmente pessoal, porque é a cidade que conheço e onde passei grande parte da minha vida. A influência do meio é inevitável, mas não sei precisar como isso acontece. Mas adoro este lugar. Caminho por aí e fico inspirado por coisas como a decadência urbana.

Pareces cada vez mais habituado a um intenso calendário de concertos. És capaz de escrever novos temas em digressão, ou a tua casa é sempre o lugar preferencial para esse tipo de efeito?

Só recentemente comecei a tocar muito ao vivo. É um fenómeno relativamente novo para mim. Consigo escrever um pouco na estrada, mas muito mais quando estou em casa. Nessa altura, o ímpeto quase transborda em mim, na minha guitarra e no meu sofá. É difícil andar em digressão, mas eu adoro. Sempre sonhei com essa possibilidade, pelo que devo ficar satisfeito agora que isso acontece finalmente. Mas vou descontrair um pouco depois das próximas digressões e começar a trabalhar no novo álbum.

Até que ponto pode um alinhamento ser diferente, se compararmos concertos a solo com os que tocas com banda? Agrada-te perceber como as canções mais esqueléticas de um Accidents, por exemplo, podem resultar com banda?

Sim, desenvolvi arranjos para uma banda completa para muitas dessas canções. É uma questão de intuição, noite após noite. Às vezes, toco sozinho entre canções da banda. Logo veremos o que vos reservámos para vocês.

Trazes a banda contigo até Portugal?

Portugal será a nossa primeira paragem. Estou empolgado com isso. Nenhum de nós conhece o país. E sim, levo a banda completa comigo.
Miguel Arsénio
migarsenio@yahoo.com
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