ENTREVISTAS
Lulina
Príncipes e orgasmos múltiplos
· 01 Jun 2009 · 23:25 ·
A sua relação com a música começou quase por acaso, com 15 anos, como se nada esperasse dela senão a oportunidade de contar histórias. Hoje, dá cada vez mais concertos, lança cada vez mais discos - de forma mais ou menos - sobretudo menos - oficial. As suas canções estão irremediavelmente cheias de humor e ironia, o som é democraticamente lo fi na sua grande parte e a atitude é despreocupada. O seu nome vai crescendo firmemente entre o underground brasileiro e Lulina parece algo indiferente, a saborear apenas a oportunidade de mostrar a sua música a mais algumas dezenas ou centenas de pessoas. Tudo pode mudar num futuro próximo e Lulina está preparada, no entanto, para esse cenário. Ao Bodyspace, contou como começou esta aventura e passeou-se pelos episódios principais desta narrativa aberta dos tempos modernos.
Porque a informação é pouca, podes-nos contar um bocado como nasceu este projecto e como chegou aqui até aos dias de hoje?

Começou como uma brincadeira: aos 22 anos, numa tarde de domingo chuvoso, resolvi gravar de forma caseira algumas músicas que eu compunha desde os 15. Assim, fiz o meu primeiro disquinho, onde finjo que sou uma cantora famosa a dar uma entrevista num programa de rádio francês. Quis ironizar com o facto de que no Brasil, ao menos naquela época, um artista só era valorizado quando se tornava famoso no exterior. Tomei gosto pelas gravações caseiras e desde então, todos os anos, gravo um disco em casa, contando, quase sempre através de metáforas, coisas reais e imaginárias que acontecem comigo. Hoje em dia tenho banda, dou concertos, vou lançar um disco numa editora, mas contínuo a gravar as minhas caseirices.

O que é que queres que Lulina represente?

Eu quero apenas que ela me represente, que continue a ser a forma mais confortável, verdadeira e simples que encontrei de falar da minha visão das coisas e dos meus sentimentos. Como não tenho a pretensão de ficar famosa com a música, ou de ganhar dinheiro, uso-a apenas como válvula de escape para os aperreios e alegrias da vida. O que vier, em consequência disso, é lucro. Mas como gosto de brincar com essa coisa de carreira musical, já tenho mais ou menos planeada a "carreira" de Lulina: ela tornou-se famosa na França com o primeiro disco, depois passa alguns anos a cantar a sua vida, os seus amores e dores, e em 2013 ela é abduzida (que é quando eu vou acabar a banda). Assim como boa parte dos artistas, Lulina só vai ter sucesso mesmo depois de morrer. Ou seja: para aproveitar esse sucesso ainda em vida, eu vou matar Lulina antes que eu mesma morra.

O som de Lulina é um ET no Brasil? Sentes isso?

Sim, sinto-me um ET em vários aspectos. Primeiro, porque o meu som não se identifica com o da parte do Brasil de onde eu venho, que é do Nordeste. No próprio Brasil algumas pessoas já me viam no início como um etzinho, já que não faço a música regional que se espera de alguém de lá. O mesmo acontece quando um estrangeiro ouve o meu som sob o rótulo de música brasileira. Não é bossa nova (mas também componho bossas), não é samba (mas também componho sambas), não é indie (mas soa como indie), então é "folk geográfico com arranjos futuro do pretérito" (termo que comecei a usar para explicar o que diabos eu fazia). Mas a verdade é que eu gosto de me sentir uma ET.


Sei que tens muitos discos gravados de forma caseira – ainda há pouco o confirmavas. É fácil para ti compor?

Sim, é fácil, talvez porque eu não componha com o objectivo de fazer música boa. Eu não julgo, apenas cantarolo, escrevo e toco, deixo-me levar sem pensar muito. Tenho muita música que não mostro a ninguém, que guardo em CD-Rs dentro de caixas de sapatos, porque acho que ninguém vai gostar, mas nem por isso eu deixei de colocar para fora. Compor faz-me muito bem, às vezes é como um transe, eu escrevo e nem sei do que estou a falar, só descubro bem depois. Às vezes, é como uma terapia, que me faz pensar sobre as coisas e chegar a conclusões que me surpreendem. E às vezes é apenas diversão, quando me junto a amigos, entre cervejas e conversas, e compomos músicas que só fazem sentido para nós mesmos.

O que é que te faz compor? Existem melhores horas, ou melhores semanas, meses estações ou anos para se escrever uma canção?

Eu não sei, acho que componho sempre que alguma coisa mexe comigo. Tem épocas que as coisas não se traduzem em música, como foi na época em que a minha avó faleceu e eu só conseguia desenhar. Noutras, a música parece ser a minha única forma de falar a respeito de certos assuntos. Mas já percebi que a melhor hora para compor são em dias de ressaca. Hoje, por exemplo, é domingo e acordei de ressaca. Fiz 3 músicas.

Há um imaginário quase infantil, mas ao mesmo tempo muito adulto nas tuas canções. Dizes numa canção que o teu príncipe te dá múltiplos orgasmos. Achas que a tua música é recomendada a alguma faixa etária em especial?

Alguns amigos que têm filhos dizem que a criançada adora as músicas e que eles enrolam-se sempre quando elas perguntam "o que é um orgasmo". Misturar a temática infantil com a adulta é natural quando se faz músicas sobre a própria vida. Não penso muito em quem vai ouvir, apenas mando a música ao ar e se alguém gostar e se identificar, óptimo. Isso faz-me muito feliz, porque sei que quando uma criança ou um velhinho gosta, estão a partilhar ideias e sentimentos muito meus. No Brasil, infelizmente, a criançada ouve todo o dia músicas que não são nada educativas, pois boa parte dos hits das rádios têm letras de duplo sentido sexual. Ao menos o meu modo de abordar o tema é mais romântico e não estimula nenhuma criança a rebolar em programas de auditório.

Quanta ironia em percentagem existe na tua música?

Eu diria que 99,13%. Mas posso estar a ser irónica na resposta.

És uma pessoa supersticiosa? Ou gostas apenas do número 13?

Em certa época da minha vida, percebi que o número 13 me perseguia. Sempre esteve atrelado a várias coincidências e factos que, bons ou maus, eram especiais. Então entrei no jogo dele e fiquei bastante viciada no número, a ponto de gravar discos apenas com 13 músicas e de ter raiva do número 14 (que, para mim, significava que o 13 tinha ido embora). Comecei a resolver esse problema no ano passado, quando lancei, juntamente com o meu amigo Leo (e braço direito nas composições) o "Aceitação do 14", disco onde faço as pazes com o número. Desde então, acho que superei o 13, estou bem menos supersticiosa, quase não o vejo mais nos meus dias.


Quais são as tuas grandes influências musicais e o que é que fazes para as combater enquanto compões? Ou juntas-te a elas quando não as podes bater?

Quando comecei a compor, na adolescência, a minha banda preferida eram os Nirvana, mas a minha música não tinha nada a ver com eles. Eu não sabia classificar o que eu compunha e também não sentia essa necessidade de definir, já que eu só cantava para mim mesma no meu quarto. Só depois dos 20 anos, comecei a ter mais contacto com bandas indies e outras mais antigas, como a minha preferida de todos os tempos, que são os Velvet Underground. Comecei a encontrar coisas em comum, como o facto de compor com notas básicas, em sequências simples. Comecei a ouvir mais sambas antigos e bossa nova e a encontrar algumas coisas em comum também, especialmente nas temáticas metafóricas. Digamos que conheci as minhas referências só depois de já compor as minhas canções. Então, acho que uso muito mais o sentimento que boas músicas me causam do que o som propriamente dito delas como influência nas minhas composições.

Entretanto já lá vão alguns anos de percurso na música independente brasileira. Já foi mais fácil ou é casa vez menos difícil?

Acho que é cada vez menos difícil. Hoje em dia, com a internet, muita banda boa acaba sendo "descoberta" (ou "melhor mostrada", eu diria). Mas ao mesmo tempo, também por causa da internet, cria-se um vício por novidades e a relação músico-fã muitas vezes acaba por ficar superficial. No Brasil, especialmente em São Paulo, tendemos a unir-nos em pequenos grupos e a inventar pequenos festivais em bares, parques e até na casa de amigos. O facto de ser independente estimula-nos a ter soluções mais criativas para compensar a falta de estrutura e apoio.

Estás sozinha nesta aventura ou estás rodeada de outras bandas e projectos de música independente? Interages em algum grupo ou cena musical específica?

Eu acho que faço parte de uma pequena (mas muito criativa e organizada) cena indie, apesar de flirtar com outros projectos que fogem um pouco desse público, como é o caso dos meus concertos só de sambinhas. Mas 90% das minhas actividades musicais acontecem graças ao convite desses meus amigos agitadores da cena independente, pessoas que fazem a Peligro, o selo Open Field (e a banda Open Field Church), a festa Folk this Town, a revista e festival Coquetel Molotov, o pessoal da Tronco e Amplitude e todas as bandas vinculadas a essas produções, pessoas queridas que fazem magia com as limitações e se dedicam a esses projectos só por amor mesmo, porque dinheiro, na cena independente, está longe de ser o principal estímulo.

Tens planos maiores para Lulina além de continuar a escrever canções como sempre?

Acho que o único plano maior que eu tenho é dar mais concertos noutros estados do Brasil e também arriscar tocar no exterior, quem sabe este ano ou no próximo. Isso já seria uma grande alegria. Outro sonho que eu tenho (é mais sonho do que plano) é trabalhar mais como compositora, compondo para outros artistas gravarem. Vamos ver se este disco ajuda a realizar algum desses "planos".
André Gomes
andregomes@bodyspace.net

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