ENTREVISTAS
Evangelista
Repitam com ela: a palavra é “amor”!
· 26 Jan 2009 · 17:49 ·
Quando Hello, Voyager chega ao fim e Carla Bozulich anuncia a palavra “amor (love)” como último recurso para uma civilização condenada à auto-destruição, havia-se já desenrolado um dos mais majestosos e intensos discos de memória recente. Por essa altura, encontrava-se já consumada uma descida aos infernos alimentada por sangue e suor, uma entrega missionária profundamente feminina que não pode ser facilmente rivalizada. Assim é Hello, Voyager: ressurreição visionária de Carla Bozulich sob o signo de Evangelista, e demonstração actualizada do poder de fogo ao alcance de alguns membros do colectivo Thee Silver Mt. Zion (cinza ainda quente dos incomparáveis Goodspeed You Black Emperor!) quando o pós-rock passa a ser uma causa de fé. Com o caule e historial que se lhe conhece, Carla Bozulich parecia quase predestinada a oferecer sentido à anarquia emocional que rasga pano em Hello, Voyager: germinou no epicentro da no wave nova-iorquina, fez-se rija ao lado de incontornáveis como Nels Cline, Mike Watt ou Wayne Kramer, aventurou-se pela country alternativa nos Geraldine Fibbers e numa revisão integral de The Red Headed Stranger do icónico Willie Nelson (que participou nessa reinterpretação). A Wikipédia revela isso mesmo e tudo o resto. Agora quer ensaiar a sua própria utopia de liberdade enquanto Evangelista. No dia 30 de Janeiro, o gospel e toda a euforia que provoca vão marcar presença na Galeria Zé dos Bois. No dia seguinte instala-se no Beat Club de Leiria, no âmbito do festival itinerante Fade In. A primeira parte ficará a cargo do percussionista Ches Smith que, depois de ter singrado na alucinada e sempre recomendável escola de Mike Patton (ocasionalmente na de John Zorn), tem servido a neura e mutilação existencial de Jamie Stewart nos Xiu Xiu. Por agora, em jeito de pré-saudação dirigida aos viajantes, Carla Bozulich evangeliza o Bodyspace.
Existe alguma relação entre o título Hello, Voyager e a conversa que tiveste com o Ches Smith no voo até Minneapolis?

O “viajante” do título é todo o tipo que luta por manter o mundo vivo quando tudo está repleto de manhas e mentiras, e tornou-se finalmente evidente que já não restava qualquer esperança. Tudo estava perdido. Assim aconteceu porque, depois de alinhar durante tanto tempo nestes jogos, ninguém iria escapar. Foi então que souberam da existência de outro lugar onde as pessoas continuavam vivas e decidiram viajar para esse lugar, onde foram recebidos com uma tempestade de poeira, destruição total e algumas vozes moribundas.

O Ches é a pessoa mais diplomática que conheço. Ele mantém uma forma artística de falar com as pessoas e sobre as pessoas. Escuta atentamente e responde honestamente. Ele é divertido e não é um fingido, sendo que também não “arranja merda com ninguém”, não alinha em fofoquices e nem se interessa pelas discussões das outras pessoas. É assim que mantém uma grande classe. O Hello, Voyager refere-se ao que faríamos se já não restasse tempo e pouco importasse o que alguém nos dissesse ou fizesse, ou até se nos matassem, porque, em todo o caso, só teríamos mais algumas horas de vida. O que farias com esse tempo? A voz no Hello, Voyager sugere Que se foda. Vivemos as nossas vidas agarrados a tantas máscaras, só para não incomodar os outros, para manter o emprego e para pertencer à sociedade. Tivemos de esconder os nossos segredos e deformações, etc. Agora restam-nos algumas horas até que tudo se evapore, por isso Que se foda. O que pretendes fazer nas tuas últimas horas? Eu vou finalmente ser aquilo que realmente sou. Suja, triste, plena de amor e desejo, alguém que grita música como fogo a partir da cabeça. É uma ideia muito romântica. Estou certa de que existem coisas que poderia fazer ou dizer que não seriam tão simpáticas. E tu? Que coisas não queres que os outros vejam? O Ches foi a pessoa perfeita para falar sobre isso. Basta escutá-lo a tocar bateria. Hello, Voyager.

Parece-me que alguns arranjos do Hello, Voyager sofreram longas metamorfoses até encontrarem a forma assumida em disco. Quão flexíveis te parecem esses arranjos finais em termos das diferentes aplicações que podem ter em concerto?

A própria “Hello, Voyager” e a “The Blue Room” foram as únicas tocadas ao vivo antes de serem gravadas e muitas das músicas foram escritas no dia ou noite anterior à gravação em estúdio. Algumas canções, tal como a “The Blue Room”, utilizam a mesma progressão básica de acordes, andamento, do início ao fim. A única diferença é que posso tocá-la sozinha ou juntamente com alguém… Muitas das canções foram baseadas em improvisações e assim será quando as tocarmos ao vivo. É esse o caso da “Winds of St. Anne”. Alguns dos momentos ao vivo são totalmente improvisados.


Que motivos levaram a que adoptasses o nome Evangelista neste disco?

Evangelista representa tanta coisa. Primeiramente, estava a pensar em levar avante um projecto de gospel noise e lembrei-me de como, na América, “Evangelista” é uma palavra tão poderosa na influência sobre a paróquia, ao ponto de levá-la a fazer e a dizer coisas terríveis. Sempre me irritei com isso e achei que podíamos aproveitar algum desse espírito de cooperação e comunidade, e invertê-lo no sentido do nosso poder como comunidade musical pronta a acertar onde realmente importa. Contra-atacar. Então pensei nos Sandinistas de El Salvador e foi assim que o nome surgiu.

Qual será a formação da banda nos concertos que se avizinham na Europa?

A Tara Barnes sempre. O Dominic Cramp é o nosso mais recente membro permanente. Ele é de Oakland. Um belo pianista, organista e também um excelente manipulador de sons. O Ches Smith estará também connosco! O Francesco Guerri, de Bolonha, é um violoncelista que toca essencialmente música improvisada. Ele já tocou muitas vezes connosco e é óptimo. Diz-nos que só toca canções desde que está connosco.

Tenho ideia de que existe um grupo de pessoas que nunca perdeu realmente a esperança de que os Godspeed You Black Emperor! pudessem ainda reagrupar-se para voltar a fazer aquele tipo de música autenticamente intensa. Alguma dessa chama GYBE! arde também em ti? E a partir de que altura ficaste entusiasmada com a perspectiva de colaborar com músicos do colectivo Thee Silves Mt. Zion?

Devo dizer que, de acordo com o meu gosto e contrariando muitas dessas pessoas tão espertas, os Silver Mt. Zion são muito melhores que os Godspeed You Black Emperor!. O último álbum dos Silver Mt. Zion é uma das minhas obras favoritas de sempre. Chama? Pá… Eu estou a arder! Tive a sorte de ouvir e tocar com a Jessica Moss anos antes nos Geraldine Fibbers e sempre desejei voltar a tocar com ela. O Thierry Ajar sempre me pareceu brilhante e era quase inevitável que viéssemos a tocar juntos. No que respeita a tocar com todos como um conjunto, não pensei nisso sequer uma vez até me ver armadilhada nessa relação com o colectivo.


Quão impressionante foi a oportunidade de ver os Xiu Xiu tocar todas as noites quando andaram em digressão em Agosto passado? Como descreverias o papel que o Ches tem agora na banda?

Bem… Atendendo a que acho o Ches um dos melhores bateristas da nova vaga, sinto que eu própria terei dificuldade em superá-lo em palco. Xiu Xiu é uma linda história que se desenrola de maneira diferente a cada vez que um novo enquadramento tem início – um novo álbum. Eu adoro como fundem arte profundamente abstracta com pop completamente orelhuda. A Caralee também combina esses extremos, quando parece tão acessível como um bonito gelado, que podes provar, mas que, ao ser saboreado, revela o choro dos pequenos ursos de goma. O Jamie é um louco. A sua voz é um retrato verdadeiro. O seu corpo é um carro veloz.

Fui alertado para o teu comentário no MySpace de Dru em que mencionavas que a música do trio “se assemelhava à montanha”. Costumas “picar” as novidades no MySpace?

Quando aderi ao MySpace, achei que era estranho nomear toda aquela gente como “amigos”, quando não os conhecia, embora reparasse que perderam algum tempo para descobrir mais sobre mim. Isso levou-me a que visse cada uma das páginas dos meus primeiros 2000 amigos. Se não fosse publicidade ou um perfil completamente aleatório, deixava um comentário. Certas vezes alguma poesia genuinamente bonita. A tarefa era árdua e consumia muito tempo, por isso parei após as 2000 páginas. Agora avalio apenas a fotografia e, caso pareça interessante, visito a página. Se houver música, escuto. Já encontrei algumas coisas bem porreiras. Admito que não me recordo de quem toca o quê, mas é habitual escutar algumas músicas enquanto trabalho noutra coisa, e é frequente reagir a isso com um comentário. Tens de admitir: a música dos Dru soa realmente à montanha com esse nome.

No que respeita à disponibilidade de Willie Nelson para tocar nas suas próprias canções no teu disco, que reinterpreta integralmente o The Red Headed Stranger, como é que isso se sucedeu realmente? Como se consumou o envolvimento de Willie Nelson?

O meu amigo John Rosenfelder trabalhava na editora do Willie. Ele escutou as primeiras gravações do meu álbum de covers centrado no The Red Headed Stranger na esperança de que o Willie gostasse e desejasse participar. Foi fantástico receber o telefonema do manager do Willie a pedir-me que fosse até Austin gravar.

Recordo-me de um documentário sobre o Abel Ferrara em que o próprio referia que Nova Iorque parece agora a Disneylândia em comparação com o que era há 25 anos. Partilhas dessa opinião?

Nova Iorque… Bem, a cidade está fodida mas ainda faz correr algum daquele sangue vivo a que não consigo resistir. É provável que esse sangue corra debaixo das ruas.

Quando li a história oral sobre Perry Farrell e os Jane’s Addiction, Whores, fiquei surpreendo com o facto do Good God’s Urge de Porno For Pyros ter sido gravado em circunstâncias tão carregadas de droga, quando o álbum até transparece um ambiente mais “límpido”. Como te lembras do Perry e dos Porno For Pyros desses tempos?

Quando os Porno For Pyros começaram, eu já não falava com o Perry. Eu conhecia bem o Perry Farrell ainda antes de Jane’s Addiction, mas não posso dizer que alguma vez o tivesse como um amigo próximo ou até mesmo alguém particularmente interessante.

Vais celebrar a chegada de Obama à Presidência de alguma forma especial?

Não. As coisas continuam demasiado fodidas para isso. Vou manter os dedos cruzados. Também fazem isso por aí? É como pedir um desejo.
Miguel Arsénio
migarsenio@yahoo.com
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