ENTREVISTAS
Anabela Duarte
Máquina Lírica
· 18 Set 2007 · 08:00 ·
Ela foi em tempos a voz dos Mler Ife Dada, nome essencial da música portuguesa dos anos 80. Tantas vezes esquecido, tantas vezes elogiado. Anabela Duarte, hoje, é a voz de tantos territórios, de distintos caminhos necessários para a sua existência. anabela Duarte vive bem com a mudança; antes, necessita dela para avançar, é parte dela. Machine Lyrique vê a cantora mover-se pelo canto lírico, num disco com a presença constante de Kurt Weill e Boris Vian, registo de canções possíveis e impossíveis. Em entrevista ao Bodyspace, Anabela Duarte fala dos seus projectos passados e dos seus projectos futuros, da experiência de levar canções para os concertos e de reinvenção. Temas essenciais de uma voz incontornável.
Já sabemos que este disco apresenta “canções possíveis e impossíveis de Kurt Weill e Boris Vian”. Como é que ambos entraram na sua vida e com que impacto?

Bem, para começar, o seu a seu dono. Essa designação de canções possíveis e canções impossíveis (Chansons possibles et chansons impossibles, no original) deve-se aos editores de Vian nos anos 50, creio eu, que optaram por assim designar uma série de registos de canções de Vian com uma tiragem muito limitada e que, por isso, hoje em dia são uma verdadeira raridade. Mas o tom provocador da designação é que importa, tratando-se no fundo de uma característica profundamente vianesca o acto da novidade e da provocação que estava longe de ser gratuita. As canções incluídas nesse pacote do impossível eram “Le Déserteur”, “Je bois”, “La Java des bombes atomiques” (Mon oncl’ un fameau bricoleur / faisait en amateur / des bombes atomiques / Et le pays reconnaissant / L’élut immédiatement / Chef du gouvernement, coisas deste género. E como uma bomba atómica entrou o belo Vian na minha vida…embora eu não o elegesse governador, nem ele aceitaria. O caso de Weill é menos excitante mas igualmente poderoso, porque a sua veia inconformista, embora de contornos mais politizados, sempre me seduziu como uma atracção fatal. É a saga do compositor fatal (não da mulher fatal).

Como é que idealizou e concebeu este disco? O que é que nos pode contar acerca deste Machine Lyrique?

Este disco já estava perfeitamente concretizado na minha cabeça desde 1999 e só em 2006 consegui realizá-lo e editá-lo. Mas na altura ninguém achava piada a estas canções, ou se achavam não descortinavam a importância de uma edição deste género. E na realidade, que eu saiba, não há nenhum disco igual. O facto é que o disco vendeu e continua a vender muito bem, o que prova que a música feita por portugueses também pode ser comercial e o que faz falta não é avisar a malta mas haver malta avisada, por assim dizer.

Já andou pelos terrenos da pop, do fado, agora dedicou-se aqui ao canto lírico. Sente-se confortável nesta realidade? Exigiu muito estudo?

È verdade, andei por muitos terrenos, mas não por todos os terrenos. Apesar de parecer à primeira vista que me movimento indiscriminadamente por várias áreas, nada estaria tão longe da verdade que assumir o acaso como uma pedra de toque do meu percurso artístico. Não se trata de um percurso programático, mas muito menos de um percurso indeterminado. Há um pouco das duas vertentes na minha direcção e, sobretudo, existe um caminho estético em todas as minhas produções que não se congratula com a facilidade ou a moda do momento. Na realidade, todas as minhas produções estão fora de moda e é a força delas próprias que poderá ou não incluí-las no mainstream corrente. Ao Machine Lyrique não poderei chamar propriamente de canto lírico. A designação “lyrique” do disco é muito mais modernista no sentido em que os surrealistas davam ao discurso poético, duma poesia que é também canto e desregramento, ou como Deleuze e Guattari sintetizaram em Mille Plateaux, posteriormente, em relação ao signo, poética formada pelas vicissitudes de uma máquina-desejante na sua qualidade de interpretação infinita. E tudo isto exigiu muito estudo e muita espontaneidade. Porque, no fundo, trata-se de aprofundar aquilo que já em nós existe. Compreender como se desenvolvem as nossas próprias capacidades e canalizá-las para uma ou várias direcções definidas. O Machine Lyrique usa os vários códigos da música pop e rock, da chanson, do lírico e, ao mesmo tempo, vive da qualidade e da projecção do momento (de estar, de gravação, de apresentação, etc), que ultrapassa todos esses códigos e que tem a ver com a nossa história pessoal e a nossa vivência artística. Nada de novo, mas sempre pronto a ser reformulado.

Caminhar por todos esses terrenos é a sua forma de reinventar-se? É a maneira de nunca estar no mesmo local?

Eu posso mudar de local mas o meu corpo é sempre o mesmo e isso é uma limitação, mas talvez essa seja uma maneira de sairmos do nosso próprio corpo. Ser Deus. Podermos alcançar o desconhecido. Há quem tente através das drogas, do álcool e outros que criam coisas, abrem buracos no espaço, planeiam pinceladas na luz, fazem amigos. Que sei eu. Fascina-me (termo muito mlerifeano) a ideia do artista enquanto ser mediador entre a matéria e o espírito, entre a razão e a loucura, como um agente que permite a passagem para as zonas mais transcendentes do ser, tal como Aurore (George Sand) descreveu maravilhosamente em relação aos poderes encantatórios do poeta polaco Mickiewecz.

Este disco parece mais uma forma de ir ao encontro da arte em várias formas. É assim que consegue fazer música, juntando-a a outras artes?

Este disco tem uma dimensão teatral que é fruto dos próprios textos e das histórias que cada um conta. Nesse sentido, tem também um lado cinematográfico que joga com os trechos e a música como se fossem frames de uma fita de cinema. Cada compasso, cada música, é rodada como num trailer. Todos os momentos são sempre muito intensos e a súbita serenidade é apenas, afinal, a preparação para uma nova acção. Percebe-se a voz off, os planos cortados, sobrepostos, os clichés. É uma espécie de Tarantino, em que a cultura pop é glorificada e simultaneamente esquartejada. De qualquer modo, qual é a música que não está associada a outras artes? À pintura, à literatura, ao cinema. Só uma música muito pobre. A música cria imagens, as imagens uma semântica, esta uma movimentação (dança?), uma teoria, uma técnica….É o mesmo que dizer que o ser humano como nasceu com pernas só serve para andar, ou porque tem uma boca, só pode comer, e por aí fora.

Quanto se envolveu Ian Mikirtoumov na criação deste disco? Como avalia o seu trabalho neste disco?

O Ian é um músico profissional que eu convidei para trabalhar neste disco. Como acima referi, já havia trabalhado nestas peças com vários pianistas e chegada a altura das gravações, tive a sorte de conhecer o Ian que se mostrou disponível para poder participar. A contribuição do Ian é imprescindível porque é um músico de qualidades brilhantes e felizmente, ultimamente, tenho conhecido alguns músicos muito bons que a curto prazo também incluirei nos meus espectáculos do Machine, entre outros. Para além disso, temos uma relação profissional muito boa, de aliados e amigos. Ele também tem os seus próprios projectos que não têm nada a ver com os meus.

Como resulta Machine Lyrique ao vivo? Como é que vivem estas canções em cima do palco?

Bem, eu acho que ao vivo é muito melhor. Como é que vivem? Vivem!

Os concertos têm obrigatoriamente de ser para si mais do que a apresentação de temas? Gosta de assumir o risco da performance nos concertos, dar-lhes outra dimensão?

Claro. Esse é que é o gozo! Mas está, como não podia deixar de ser, intrinsecamente ligado à apresentação dos temas. Divirto-me muito, e o público tem-se mostrado muito receptivo. Mas cada espectáculo é como estar na corda bamba, nunca se sabe exactamente o que vai acontecer, apesar dos ensaios e da preparação. Há uns meses atrás participei num concerto sobre Rossini e cantei a ária da Semirâmide (Bel raggio, lusinghier) acompanhada por um septeto de cordas e piano, sob a direcção de Laurentiu Ivan-Coca. É uma ária longa e difícil, mas muito fortificante… uma espécie de tónico para a voz. E no fim da ária fiz uma cadência nova, diferente da dos ensaios. Ninguém estava à espera, nem eu. Mas saiu muito bem. Eu penso que o que vale nos espectáculos, mais do que uma excelente execução é a intensidade com que interpretamos cada canção, a força e o thrill do momento, do tempo em que cada tema decorre. E hoje em dia vejo isso muito pouco, no que respeita a cantores. Há pouco lia uma biografia de uma artista/cantora em que destacavam o percurso da sua linhagem familiar e salientavam o facto de ela ter cabeleireiros em Paris e em Tóquio, etc. Eu perguntei-me: mas a artista é cantora ou cabeleireira? Não se percebia muito bem.

Que tipo de músicas ouve hoje em dia? Que discos têm estado junto de si nos últimos tempos?

Tenho ouvido muito o Nicholas Lens, compositor belga, que aconselho a todas as almas crentes ou prontas a crer na famosa superioridade da música em relação às outras artes. Não sou eu que o digo, mas também, vendo bem, já não me lembro de quem o disse. Não interessa. São apartes. Pela primeira vez, oiço música pop e rock, que também é clássica e com um naipe de cantores perfeitamente fabulosos. Um compositor que sabe escolher cantores, é muito raro. Os álbuns Flamma, flamma, Gli orrori dell’ amore, Terra terra, são absolutamente fantásticos. Tenho ouvido também a Meret Becker que, afinal, descobri já cá ter estado em Portugal no Gõethe Institut. Pena ter perdido. Nachtmahrt, Noctambule, e o disco com os Ars Vitalis (Einsturzenden) são muito bons. Uma cantora e uma actriz extraordinária. Depois há a Sussan Deyhim, os Negativland e os Residents que é sempre bom rever, o Franco Corelli e o Ramon Vargas que descobri há pouco tempo. Tudo artistas na verdadeira acepção da palavra. Tenho pena de não poder ouvir o Chaliapin, cantor de ópera russo que, neste momento, é o cantor cuja vivência e ideias estéticas em relação à ópera e ao canto mais me fascina.

Ocaso Épico, Bye Bye Lolita Girl e Mler Ife Dada. Imagino que guarde memórias fortes de cada um destes projectos. Como as gere na sua biografia?

Fazem parte do meu percurso e como tal não os renego. Têm importância em si e para muitas gerações, espero, como os Pop dell’arte e o João Peste, que tenho adorado ouvir na rádio, o que é raro (ouvir na rádio, sobretudo), os Mão Morta, os antigos Xutos e tantos outros, e fazem parte de uma fase da minha vida. São clássicos, ou seja, já passaram por todas as provas de sobrevivência. Não precisam de ser protegidos de ataques porque a contínua resistência a esses ataques constitui a prova infalível da sua permanência no tempo e, por isso, do seu papel de clássicos da música moderna portuguesa. Neste momento, vejo-os como laboratórios daquilo que actualmente estou a produzir.

Sei que está já a preparar um novo disco para ser editado ainda este ano. O que é que nos pode contar acerca dele? Continua com o canto lírico?

Não nego. Mas ainda é cedo para contar alguma coisa. Há quinze anos que estou metida em trabalhos com o lírico, em todos os sentidos… [risos] Mas, finalmente, pode ser que acabe bem. No entanto, já tenho mais discos preparados: um sucessor do Machine, um de música portuguesa e um de Mozart e o Dust que não há meio de sair (embora já cá esteja fora). [risos] Não acredito é que saiam todos este ano… Os artistas em Portugal estão sempre em guerra.
André Gomes
andregomes@bodyspace.net

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