ENTREVISTAS
Grails
Purificação histórica
· 02 Jul 2007 · 08:00 ·
Apesar da qualidade unicamente instrumental da sua música, o que distingue os Grails do restante pelotão pós-rock acaba por ser a noção histórica cada vez mais presente nos seus discos e declarada no mais recente Burning Off Impurities. É como se os seus músicos tivessem sido obrigados a percorrer algumas das ocasiões mais dramáticas da História, para com mais credível intensidade representarem-nas em momentos a que se sente a cerimónia e uma qualquer mudança no rumo dos eventos (“Silk Rd” é cavalgada em nome de causa incerta). Imagine-se, por exemplo, que o fazem num paralelo mais neutro comparativamente ao percurso que toma a figura maligna que assistiu à crucificação de Cristo e guiou um tanque de guerra só para o relatar em “Sympathy for the Devil” dos Rolling Stones. A verdade é que o fazem correspondendo a emotividade ideal a cada um dos respectivos ambientes que a merece (e o baixo de “Outer Banks” parece conspirar o assassinato de um qualquer líder político). Emil Amos, baterista dos Grails e brilhante gestor da melhor lo-fi enquanto Holy Sons, partilhou com o Bodyspace detalhes internos acerca da produtiva instabilidade da banda que anda a queimar as impurezas acumuladas pelo Homem de fato e gravata - esse que bem pode reavivar memórias passadas neste categórico terceiro longa-duração.
Fala-me um pouco da digressão com os Mono e do modo como vieram a revelar-se ao vivo as faixas de Burning Off Impurities?

O Burning Off Impurities acabou por ser um disco de estúdio que englobava as músicas que vínhamos a tocar ao vivo, ao contrário do Black Tar Prophecies que era mais vocacionado para experiências de pós-produção. A digressão com os Mono correu muito melhor do que o esperado, e nos concertos muitas das pessoas confessaram-nos que a experiência ao vivo era muito melhor do que a escuta dos discos. Isso é estranho e um pouco frustrante para mim, porque contraria, em geral, as minhas intenções. Mas, no caso dos Grails, acaba por ser mais fácil funcionar democraticamente quanto tocamos ao vivo, já que ao gravar um disco tudo se torna num longo e emaranhado debate.

Quando mencionas esse debate, que aspectos específicos tentas mais aguerridamente defender?

O debate é, em grande parte, filosófico para mim. A maioria das pessoas entende a música como uma fatia de um enquadramento social, quando para mim é mais Platónica, existindo num ponto separado da “multidão”. Tal dinâmica e discórdia leva-me até ao motivo pelo qual pratico música e à tensão que se agrava em mim. Mas também conduz à equação que tento resolver através da arte. Tento dissociar do conhecimento aquela ideia de que uma situação é insolúvel. Pelo facto de um disco ser um meio não-social, sinto-me melhor nesse âmbito. Quando sobes a um palco, tornas-te um entertainer e, em geral, as dinâmicas do poder social provocam-me náuseas pela forma como iluminam a inevitável falta de escrúpulos e solidão inerente aos sonhos ambiciosos da humanidade. É isso a que tento escapar na música, ao refugiar-me em verdadeira energia e confiança pessoal.

Tenho a certeza de que não foi permitida ao Burning Off Impurities a mesma quantidade de tempo que normalmente ocupas com os discos de Holy Sons e com as diversas mutações desses, mas, mesmo assim, achas que existirão algumas causas decisivas para que o disco alcançasse uma forma que podia simplesmente não ter sido obtida ou acabado por se tornar em algo completamente diferente?

Os Grails encontram-se sempre atrapalhados com prazos que, até certo ponto, ameaçam a qualidade de cada lançamento. Muitos referem que os prazos são uma maldade necessária que obriga a um maior esforço. Para mim, isso é completamente mentira e totalmente avesso ao aproveitamento dos instintos. O Burning Off Impurities soa grandioso e cinemático porque percorreu duas fases de mistura. Primeiro eu e o Alex (Hall) misturámos cada uma das faixas e adicionámos todo o tipo de perversões próprias da pós-produção. Depois, o Jeff Saltzman entrava no processo, efectuando uma limpeza e alternando os efeitos de cada instrumento. É um processo interessante que produz coisas altamente positivas, mas que ainda padece dos inevitáveis compromissos que implica o trabalho colectivo.


“More Extinction” soa realmente a Crime Jazz do Tibet (definição usada pelo grupo no seu My Space). Quem encontrou aquele groove de bateria perfeito? Existe alguma jam com o nome de “Extinction” que preceda a “More Extinction”?

Não devo referir a origem daquele loop de bateria por motivos relacionados com o copyright. Há algum tempo voltei a North Carolina, onde nasci, e vasculhei algumas velhas caixas com coisas que ali tinha deixado na minha última visita e acabei por encontrar uma mina repleta de flexi-discs - daqueles dobráveis e em vinil que surgiam nas revistas dos anos 70. Eu extraí o tal loop de bateria a um desses. No que se refere ao título, gosto de acrescentar “More” a tudo. Tipo “More Voodoo”, “More Noise Pollution”...

Quais foram os instrumentos mais atípicos usados nas gravações de Burning Off Impurities?

Talvez as tapes e a bateria eléctrica distorcida usada na “Draw Curtains” ou o cravo que se escuta na “More Extinction”. A oud nem chega a ser tão exótica na medida em que é uma simples guitarra.

Acho interessante mencionares o uso de tapes na “Drawn Curtains”, atendendo a que esse me parece um terreno que oferece ao teu trabalho a solo e colectivo aquele sentimento de estranheza que acaba por se enquadrar perfeitamente. Mas deve haver uma necessidade maior de manipular intensamente as tapes no caso dos Grails, certo? Suponho que utilizar uma tape em que sejam completamente perceptíveis as palavras seria quebrar com a regra instrumental dos Grails, ou isso ainda é possível?

Sim, é possível fazer qualquer coisa estilisticamente, mas a democracia abranda as medidas de progresso mais revolucionárias. O que não é assim tão mau, porque cada um de nós é necessário para conduzir as músicas até pontos a que de outra maneira nunca chegariam. Mas decisões do tipo Deveríamos incluir esta porção de diálogo nesta faixa? acabam por ser politicamente desgastantes. O argumento de maior peso geralmente acaba por passar pela constatação Se soa excelente, utilizemo-lo então. - e assim deve ser. Cada membro tem as suas próprias diatribes que tenta incutir ao grupo e a minha tem sido, desde o início:Podemos fazer o que entendermos..

Que factores levaram a que efectuassem aquela fantástica cover de “Satori” dos Flower Travellin’ Band (incluída no EP Interpretations)? Algumas vez tentaram, nem que apenas por gozo, tentar uma versão do álbum inteiro?

A minha música favorita do álbum Satori é sem dúvida a última. Na verdade, a cover que fizemos intitula-se “Hiroshima”, mas os detalhes perdem-se sempre ao longo do processo. Encontra-se no seu disco ao vivo Make Up. Pegaram na linha de baixo de “Satori” e expandiram-na através de uma melodia fatal. Infelizmente, arrasta-se até ao pior solo de bateria que alguma vez ouvi. Mas esse disco vale nem que seja apenas pela faixa “After the Concert”. Tenho muito mais ideias para covers, mas efectuá-las serviria apenas para tornar mais lento o progresso da banda. Não existe motivo para tentar a cover da maioria das músicas. Por exemplo, qual é a necessidade de fazer o remake de Sisters (obra de Brian De Palma) com a Chloë Sevigny, quando o original é perfeito como está?


Ainda assim, há que reconhecer os talentos ocultos dessa actriz. Elucida-me agora quanto à cronologia do material que veio a integrar o EP Interpretations. Não foi uma das últimas coisas que gravaram com o vosso violinista? Que covers preteridas ficaram mesmo à beira de integrar o disco?

Sim, o Interpretations acabou por ser o último disco a contar com a sua participação nos Grails. A nossa última colaboração acabou por ser em duas faixas que integram o próximo disco de Holy Sons. Nunca mais o vi desde aí e já lá vão um par de anos. Tínhamos em mente lançar um segundo volume de covers, mas tal opção acabou por ser colocada de parte. Não sei ao certo se acabaremos por fazê-lo. Talvez daqui a uns anos isso volte a ser relevante para nós. Mas actualmente toda a gente tem acesso imediato à música mais obscura. Já não é como noutros tempos em que ainda era necessário passar a palavra e uma herança relacionada com as bandas menos conhecidas. Talvez por isso, as covers parecem-me menos vitais nos termos actuais. Além de que a maneira de grande maioria das bandas reformular canções prévias é de tal forma indolente, que o resultado acaba geralmente por ser desprovido de real conteúdo.

Não me quero aprofundar no mito, mas que peculiaridades existem na colaboração com Jandek (a misteriosa entidade que Emil tem acompanhado na bateria)? Eras capaz de me adiantar algo acerca do que ele tem para lançar em Agosto?

Ele é o mais receptivo e prestável colaborador que já conheci. Imagino que todos aqueles que tenham tocado com ele dirão o mesmo. Ele cultiva métodos subtis para abordar o sentimento de cada música, mas geralmente desejava que eu fizesse aquilo que entendesse. O primeiro concerto que demos foi uma experiência ao vivo mais construtiva e diria mesmo rock. Mas o segundo concerto equivalerá a um melhor disco e foi, para mim, algo próximo de uma sensação de exotismo e de balada.

Durante a entrevista, foste soltando algumas pistas que indiciam a probabilidade de um novo disco de Grails. Podes já revelar algo sobre isso ou a minha questão surge demasiado cedo para tal? Quantos discos futuros tens na manga?

Os Grails encontram-se envolvidos em dois discos diferentes, mas ainda é longo o caminho até definirmos as identidades separadas de cada um. Espero que venham a atingir os extremos mais desejáveis e não se percam a meio. Também tenho dois novos discos de Holy Sons na calha e uma compilação de velho material que necessito de terminar. Também tenho trabalhado em vídeos de ambas as bandas e andado a escrever um livro, o que significa um progresso lento em todas as frentes.

A questão irresistível: refere três covers para o dia de hoje.

“She’s Actin’ Single (I’m Drinkin’ Doubles)”, Gary Stewart. “In My Eyes”, Minor Threat. “Stone Junkie”, Curtis Mayfield.
Miguel Arsénio
migarsenio@yahoo.com
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