ENTREVISTAS
Mão Morta
Novos cantos do mal
· 03 Jun 2007 · 08:00 ·
Há uma nova página na rica biografia dos Mão Morta. Uma que se conta com um livro aberto: Os Cantos De Maldoror, a obra que Isidore Lucien Ducasse publicou em 1869 sob o pseudónimo de Conde de Lautréamont que explora a violência e a maldade. A temática não será virgem no território dos Mão Morta, mas Os Cantos De Maldoror parece um projecto que soma todas as faces da banda. Um projecto que envolve música, teatro, vídeo; um espectáculo que envolve uma série de meios e uma equipa de número considerável. Algo que, pela sua dimensão e importância, teve para os Mão Morta um peso e responsabilidade especiais. Os Cantos De Maldoror estreou no Theatro Circo em Braga (em duas noites de sala esgotada) e em Portalegre, e deve seguir muito em breve para outras cidades nacionais. Em entrevista ao Bodyspace, Adolfo Luxúria Canibal falou-nos do novo espectáculo Os Cantos De Maldoror e da evolução que este terá no futuro dos Mão Morta.
Tanto quanto sei a ideia de pegar no livro Os Cantos de Maldoror, de Isidore Ducasse, sob o pseudónimo de Conde de Lautréamont, foi da responsabilidade do Miguel Pedro. Como chegou essa ideia ao núcleo da banda?

Digamos que pela voz!... O Miguel Pedro faz parte do núcleo da banda e, a exemplo do que acontece com qualquer outro elemento do grupo, transmite normalmente as suas ideias ao colectivo de forma oral – a oralidade continua a ser a comunicação mais fácil, directa e eficaz!

Segundo sei o livro está na sua mesinha de cabeceira desde os seus 16 anos. Poderá esse mesmo livro ter alimentado de certa forma o imaginário dos Mão Morta?

Mais do que na minha mesinha de cabeceira, acrescentaria que está na mesinha de cabeceira de todos nós, no grupo. Sendo um livro de referência há tanto tempo e tendo assim contribuído para o nosso imaginário de uma forma tão marcante, é evidente que a sua influência no que são os Mão Morta não pode ser negada, ainda que exercida de uma maneira meramente fantasmagórica, que impede a sua detecção directa em partes isoladas da obra do grupo.

Ao final de tantos anos cansaram-se do formato disco ou da sequência lançamento de disco, promoção do álbum? Desejavam explorar outras áreas? Não terá sido “Gumes†uma declaração de interesses que já apontava para este cenário?

Contrariamente ao cenário anglo-saxónico e europeu, onde os concertos serviam essencialmente para promover discos, a realidade portuguesa sempre foi maioritariamente a inversa, isto é editavam-se discos para justificar e contratualizar concertos. Com a crise da indústria fonográfica, a prática internacional mais recente tem-se desenvolvido no sentido do que já era corrente em Portugal e o concerto, a prestação ao vivo, volta a impor-se como o elemento privilegiado de uma carreira musical, tal como acontecia antes da era da reprodução mecânica. Mas nada disto, nem qualquer cansaço com a gravação discográfica, ditou a opção dos Mão Morta em partirem directamente para a produção de um espectáculo, o que já haviam feito com o Müller no Hotel Hessischer Hof. Desde o princípio deste projecto, pelas suas características, que se nos tornou evidente que ele só se podia materializar num espectáculo ao vivo e não num disco. O disco, e o DVD, a existirem, só fariam sentido depois, como memória e fixação para a posteridade desse espectáculo.

Ouvi também dizer naquele vídeo que tinha terror de transformar a obra para os espectáculos ao vivo. Imagino que tenha pelo formato e pela complexidade e não pela temática, visto que os Mão Morta sempre lidaram com uma carga dramática e de terror similar…

O terror era ante a carga de trabalhos em que nos íamos meter!... Os Cantos de Maldoror são um livro que, para lá do seu peso na história da literatura, ostenta uma complexidade muito grande e características de impossível transposição para outros códigos linguísticos – por exemplo, a unidade que consegue apresentar e que lhe é dada pela força da própria escrita, apesar da completa ausência de linearidade narrativa e discursiva e mesmo da confusão e contradição aparente em que essa narrativa se enreda. Como manter essa unidade e simultaneamente preservar o seu carácter fragmentário e estilhaçado, numa outra linguagem que não a literária? Era a resolução de questões como esta que me causava terror e tinha fundadas razões para isso – demorei quase um ano a encontrar o mecanismo que permitia resolvê-las, criando assim as condições que possibilitavam a montagem de um espectáculo.


Entregaram bastantes tarefas deste espectáculo a outras pessoas. Essas pessoas, mais do que trabalharem sob ordens da banda, trabalharam em conjunto com os Mão Morta. Qual é a sensação? O que é que nos pode contar acerca disso?

Para nós era evidente, desde o princípio, que o Maldoror apresentava um grau de complexidade e de dificuldade muito diferente do que tinha representado o Müller no Hotel Hessischer Hof e que, por muito airosamente que nos tivéssemos safado na sua montagem trabalhando apenas com a mera intuição, aqui iríamos precisar de competências específicas, coisa que ninguém nos Mão Morta se arrogava possuir. Assim, contactamos pessoas – algumas com quem já trabalhávamos, outras de quem conhecíamos apenas o trabalho – que tinham essas competências e o talento artístico que nos permitia depositar-lhes inteira confiança nas opções que seriam levadas a tomar. Porque foi numa relação baseada na mais profunda confiança que todas estas colaborações se desenrolaram – e só assim faria sentido, uma vez que cada pessoa ficou responsável, na sua área, pelo desenvolvimento de todo o projecto. E o que é certo é que tudo se passou extraordinariamente bem, numa sintonia total, como se estivéssemos habituados a trabalhar juntos há muitos anos… E quando isso acontece e chegamos ao fim realizados e contentes com o que criamos, a sensação é indescritível de satisfação! Ainda por cima, como sempre acontece quando há um trabalho de grupo partilhado e transparente e ainda mais quando os seus elementos transpiram saber, estes meses foram de uma aprendizagem constante e acelerada – saímos da montagem do Maldoror inquestionavelmente mais sabedores.

Estrearam recentemente este novo espectáculo ao vivo e já repetiram a experiência duas vezes. Como é que avaliam os resultados?

O resultado artístico é francamente positivo, deixou-nos muito satisfeitos. Mas também a sua recepção foi extraordinária, com as três apresentações até agora realizadas a esgotarem as salas e a serem recebidas de uma forma muito calorosa e com comentários muito optimistas e encorajadores.

É preciso outra preparação para subir ao palco pronto para dar vida a Maldoror? Exige mais de si do que um concerto digamos normal dos Mão Morta?

Claro que é preciso outra preparação, a começar pelos quilómetros de texto que foi preciso encaixar. Mas também ao nível da dicção, das marcações de palco e de luz, dos gestos, da conexão com os adereços, da própria relação com os figurinos e a maquilhagem… Num concerto rock é tudo muito mais espontâneo e intuitivo, as únicas marcações são musicais! No Maldoror nada é deixado ao acaso, até a respiração foi dirigida e marcada pelo encenador…

Estrear este espectáculo no Theatro Circo, precisamente na cidade de Braga, foi algo de especial para os Mão Morta?

O espectáculo estreou no Theatro Circo porque foi o Theatro Circo que nos convidou e o produziu, não foi por nenhuma opção regionalista nossa!... Seja como for, deu-nos particular prazer – e muito trabalho, diga-se – descentrar os olhares mediáticos da capital e pô-los a cobrir Braga e Portalegre. E deu-nos prazer, e orgulho, estrear numa sala que apresenta tão excelentes condições técnicas e por cujo palco já passaram, nos seus curtos seis meses de existência, espectáculos tão excelentes como o Turning do Anthony ou o Moonchild do John Zorn.

Além do Theatro Circo parece que a cidade é agora espaço de mais algumas manifestações culturais ou musicais. Que retrato faz agora da cidade de Braga?

Culturalmente falando, não se pode dizer que seja bom viver em Braga! É verdade que a reabertura do Theatro Circo e a excelência da sua programação veio alterar significativamente a pasmaceira da urbe, veio pelo menos dar um bálsamo à secura e permitir um olhar sobre o que se passa no mundo da música. Mas tal como uma árvore não faz uma floresta, um binóculo não faz uma movida! E em Braga não existe qualquer ambiente criativo, não há incentivos para que tal coisa aconteça, as pessoas vivem atomizadas nos seus apartamentos suburbanos sem qualquer alternativa, mesmo após os espectáculos no Theatro Circo não têm para onde ir e acabam invariavelmente por recolher aos seus subúrbios espalhados pela cidade… Há tentativas para mudar este estado de coisas, como a Velha-a-Branca ou o Espaço Censura Prévia, mas são duas ilhotas demasiado isoladas e sem reais condições para inverter o panorama geral.

Faz sentido transpor este espectáculo para um álbum ou a ideia é registar Maldoror em DVD? Ou ainda guardar a essência da actuação exclusivamente para os palcos como acontece com o teatro?

Os espectáculos do Theatro Circo foram gravados e filmados e a ideia é editar um CD e um DVD. Neste momento estamos a fazer a audição das gravações, para que o CD esteja no mercado em Setembro – e o que posso dizer é que faz todo o sentido, a parte estritamente sonora do espectáculo funciona por si. O DVD sairá depois, até porque continuam a ser filmados todos os bastidores da digressão do espectáculo para um documentário que no DVD irá acompanhar o filme do Maldoror propriamente dito.

Para quando a apresentação de Maldoror noutras cidades portuguesas? Existe já alguma data oficial?

Depois das duas datas de Braga e da data de Portalegre, que já aconteceram, as próximas só devem ocorrer depois do Verão, a partir de Setembro e a entrar por 2008. Serão oportunamente anunciadas.

Vê os Mão Morta a continuarem esta ideia de adaptar livros para o palco. Se sim, que obra gostaria de trabalhar num futuro próximo?

Este é um tipo de projecto, pelo trabalho e pelos custos que implica, fadado para só acontecer de vez em quando, talvez daqui a dez anos, que foi o tempo que separou o Maldoror do Müller no Hotel Hessischer Hof. De resto, não vejo nenhum outro livro que os Mão Morta possam adaptar para palco…

Reparei que os Mão Morta não fazem uso de um myspace mas renovaram o site recentemente. Não é fã da ferramenta musical da moda ou é mesmo por falta de tempo? Curiosamente existe um myspace mantido por fãs…

Eu pessoalmente não tenho grande pachorra para o MySpace. Já ter um site completíssimo e actualizado considero que é essencial. Mas a haver algo no MySpace, prefiro de longe que seja um espaço mantido por fãs – e tenho orgulho no MySpace Mão Morta que uma fã mantém activo e para o qual nos pediu gentilmente autorização.

Se Maldoror não está nos planos para ser o próximo disco dos Mão Morta o que é que está? Existe já algo pensado para um próximo álbum?

Maldoror vai ser o próximo disco dos Mão Morta. E também já existe algo pensado para o álbum que se lhe há-de seguir, mas é ainda muito prematuro estar a adiantar o que quer que seja…
André Gomes
andregomes@bodyspace.net
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