ENTREVISTAS
Manuel Mota
Arquitecturas do tempo no espaço
· 11 Abr 2007 · 08:00 ·
Tanto quanto sei, a tua estreia no experimentalismo musical deu-se com o projecto Vcorux Aeia, em que tocaste guitarra e baixo eléctricos sobre gravações de sons concretos. Que importância tiveram essas primeiras experiências para a busca de um caminho?
Passa-se logo após o tomar conhecimento e consciência do underground, circa 1988: edições em cassete, capas feitas à mão, controlo total do trabalho pelo próprio artista... achava ter já algo a dizer, depois de alguns anos a praticar, a experimentar, a tocar sobre discos... foi a abertura enunciada pelo underground o principal catalisador - fui inspirado e motivado por imensa música para mim nova, tornada pública de uma forma totalmente independente. Ainda acredito nesse processo. Trabalho em casa, quase sempre sozinho, onde são realizadas a grande maioria das gravações e utilizando o mínimo de recursos possível. Também importante estímulo e fonte de inspiração foram os primeiros contactos com o jazz. O tocar guitarra e a sacralização do momento da execução instrumental duram até hoje e são aspectos primordiais no meu trabalho.
Esse primeiro contacto com a experimentação… acontece já de uma forma ‘legitima’ e com conhecimento ou como simples resposta à curiosidade que resultou da audição desses discos? Quando se torna comum no teu trabalho a exploração do drone, do tapping, do near silence, da micro improvisação?
Bem... ainda hoje não me considero especialmente "conhecedor" do que se passa por aí, se é disso que falas... mas as poucas coisas a que tive acesso nesses primeiros contactos acabaram por ser também importantes primeiras referências... não sei se se poderá considerar o que fiz nessa altura legítimo nem com conhecimento mas era seguramente trabalho honesto... Dediquei-me exclusivamente à exploração do drone entre 95 e 97. Tenho imensas gravações desse período (quase só com guitarra acústica) mas praticamente nada tornado público. É a minha estada de 2 meses em Nova Iorque, com o Phill Niblock, que mais me estimula a dedicar ao drone. A música que faço desde 97 está (cada vez mais) enraizada nos blues e no jazz, principalmente.
Que música nova era essa de que falas? Que discos eram esses que despertaram interesse e descoberta?
Vou-te referir apenas o Solo Guitar vols 1 e 2 do Derek Bailey. Comprei-os na Contraverso por essa altura e têm-me acompanhado durante estes 16 ou 17 anos... De resto, não sei bem... Também nunca fui muito metódico nessa busca... Ia filtrando o que ia aparecendo, ou por compras que fazia, ou por empréstimos de amigos... Ainda não havia internet...
O criar da tua própria editora, a Headlights, corresponde aquele desejo de independência que manifestavas há pouco?
O meu desejo era de tornar público o meu trabalho... O criar a Headlights foi (e é) a forma que encontrei possível de o fazer, embora não o consiga tornar assim tão público... A sua gestão é desempenhada com algum esforço e desagrado, mas acho que tem valido a pena...
Gostava que falasses um pouco de Outubro, da ideia, da sua concepção…
A música que faço não parte de ideias, acho... Sou adverso a essa palavra... Vivência e acaso são os factores com que lido, e este disco é outra consequência disso mesmo. O ser músico foi-se tornando gradualmente essencial na minha vida, quase sem ter dado por isso. Uma espécie de missão que tenho vindo a desempenhar com crescente empenho e profundidade, tendo-me tornado cada vez mais incapaz (ou, se calhar, borrifando-me) para me dedicar a outras actividades. Tornou-se a minha cruz. O Outubro foi gravado para aí no mês mais difícil, infeliz, da minha vida... Não sei se o reflecte, mas é um facto. Também só andava a ouvir Paul Desmond com Jim Hall e Loren Mazzacane...
Este disco serviu para aclarar ou aprofundar melhor as relações distintas que tens com a guitarra eléctrica e com a acústica?
Sim, também para isso (embora pretenda reduzir essa distinção), mas principalmente para me manter à tona. Como todos os outros, mas talvez principalmente, um disco feito para mim...
Tens andado muito activo ultimamente com os Cúria, com o Afilhado Cigano e com a dupla que tens com a Rita Vozone dos CAVEIRA. O que é que nos podes contar acerca de cada um dos projectos? O que é que encontras neles que não encontrar no teu trabalho a solo?
Projecto é outra palavra com que embirro, mas está bem... não sei se é por ter andado em arquitectura... mais uma vez, essas formações são obras do acaso, não premeditadas nem calculadas... todos os envolvidos (Margarida Garcia, David Maranha, Afonso Simões, Pedro Gomes e Rita) são amigos próximos com quem gosto de estar e por quem tenho admiração pelo que têm vindo a fazer... Sendo assim, foi natural surgirem oportunidades de trabalho juntos. Curia: eu e o Afonso estávamos a tocar juntos e a ensaiar há já algum tempo (tínhamos tocado no Espaço - Centro de desastres) e íamos tocar na mesma noite que a Margarida e o David, que também andavam a ensaiar juntos, no Music Box. Entretanto, o Manuel Poças da ZDB convida-me para lá tocar mais ou menos para a mesma altura, e eu lembro-me de fundir os dois duos para tal... Perguntei aos três o que achavam, no momento, e assim ficou. O baptizar esse quarteto foi uma espécie de assumir um compromisso para um trabalho mais contínuo e regular, com o qual estou entusiasmado. Estamos agora a gravar um disco para a Ruby Red, da minha beloved Sintra. O afilhado cigano nasceu de um convite do Nuno Moita (da Grain of Sound), que estava a organizar uns concertos nos estúdios da Bomba Suicida, para tocar com os CAVEIRA. O Quim (baterista dos CAVEIRA) já tinha um concerto agendado para esse dia com a sua outra banda e não tinha possibilidade de o fazer, por isso, passámos a trio de guitarras... Só demos esse concerto e gravámos uma sessão para a rádio... não sei o que o futuro reserva a este trio, mas a Rita e o Pedro são também os meus guitarristas favoritos aqui do burgo, sem qualquer desprimor para os restantes, e é com entusiasmo que recebo propostas para colaborar próximo deles... Continuo também a trabalhar em duo com a Margarida (trabalho que já existe desde 1998, para aí...), que regressou ao fim de 3 anos em NY com uma guitarra... As colaborações são uma prática que também me dá prazer realizar. Já disse isto numa outra entrevista: existe um pacto de confiança e de união, de responsabilidade repartida... no trabalho a solo confrontam-se o músico e os seus demónios, só...
Acompanhas esta nova geração de improvisadores como os CAVEIRA, os Frango, os Fish & Sheep? Que retrato fazes desta geração?
Sim, acho que tenho vindo a ser mais ou menos ou menos público fiel nos concertos de algumas dessas bandas (mais precisamente essas mesmo que referes), e fico contente por já não ver só tampas abertas com uma maçã iluminada e uma cabeça a beber vinho e a fumar cigarradas em cima de um palco... Retratos não faço, só em desenho... Ficaria feliz por saber que têm prazer no que estão a fazer e que sentem que isso lhes é importante... Ficaria feliz por saber que se borrifam para as consequências socio-profissionais das suas escolhas... Estou cansado de calculismos, manipulações e oportunismos excessivos... A música é espiritual, terapêutica, essencial...
Achas que há razões para optimismo ou pode ser uma coisa passageira? É importante que estas bandas passem a “barreira” do CD-R que para eles até foi a forma de aparecer?
Não acho essencial a questão do formato em que se torna público o trabalho... E se é pretendido imediatismo e controlo total no resultado final, a edição em CD-R é até o meio mais adequado... Assim, passa ao lado o negociar com fábricas, o esperar mais tempo pelo produto final do que o acordado com os vendedores, o reclamar os erros que cometem (sempre, pelo menos essa é a minha experiência). A edição em CD-R é a forma mais independente e despretensiosa de o fazer... Em resumo, não vejo os formatos de forma hierárquica. Pessoalmente não sou fã, porque não me interessa editar muito, não tenho pressas (tenho vindo a editar com muito pouca regularidade e durmo bem com isso), e porque sou preguiçoso (copiar CDs, fazer capas, etc, é actividade que dispenso). Em relação à vaga: não sei... Na natureza, a vaga é efémera. Neste caso, se calhar também o será mas de qualquer forma, anima um bocado a cidade, que na década passada esteve tão deprimente, pelo menos no meio em que me movia. E alguns hão-de sobreviver à sua desintegração, por necessidade e por amor. E é isso mesmo que valorizo. Como te disse antes de outra forma, estou-me a borrifar para cenas, meios, modas... Inspiram-me pessoas, neste caso músicos, com uma visão própria do que querem criar, e que trabalham para a concretizar, que assumem um compromisso com eles próprios. Eu sei que o diabo está sempre presente, tentando com os factores dinheiro e, ainda mais, reconhecimento público...
Achas que existe uma quantidade insuficiente de editoras em Portugal dedicadas a estes territórios musicais?
Não sei... Nem me interessa, desculpa. Mas se editora é uma empresa que te convida para fazer um disco, te paga as despesas (gravações, produção, etc.), e te paga pelo trabalho e vendas, então não conheço nenhuma cá. As como a Headlights, são edições de autor camufladas. Pobres mas com uma aura especial...
Mudando agora de assunto, como é “transportar” a tua música para os concertos. Que peso extra incute nas tuas explorações. O imediatismo dos concertos é diferente do imediatismo da improvisação em estúdio?
Mais facilmente te posso referir o factor "som" como condicionante num concerto. Pratico e gravo sempre na mesma sala, em minha casa, quase sempre com o mesmo equipamento. Acabo por ficar muito habituado às características acústicas desse espaço. Por isso é que no soundcheck para um concerto, e embora num minuto monte o equipamento e ligue a guitarra, gosto de demorar um pouco a tocar, para me habituar à acústica do espaço e ao amplificador (em Lisboa costumo usar o meu, mas no estrangeiro tenho muitas vezes que me sujeitar ao que aparece). A outra condicionante é uma questão de vibrações, não sei como te explicar de uma forma clara.
É complicado ainda encontrar sítios em Portugal para tocar? O Vítor Rua dos Telectu está a travar uma batalha pelo tratamento dado aos músicos portugueses no que diz respeito a questões monetárias e até em relação aos DJs. Não sei se tiveste já contacto com este debate. Que te oferece dizer acerca disto?
Sim, recebi esses e-mails, mas confesso que não os li com grande atenção. O que significa que, como podes depreender, me estou a borrifar para essa causa. Também porque não sei bem qual é o problema deles (Vitor Rua, Nuno Rebelo e Carlos Zíngaro, autores dos e-mails que recebi em relação a essa batalha que referes). Também porque não me revejo nas formas de proceder do Vitor Rua ao longo dos anos. E também porque estou longe de subscrever o que foi para ali escrito. Considero que a forma de melhorar o que nos rodeia é tentando ser melhor pessoa, coisa que só o próprio sabe avaliar (ofereça-se um espelho a quem avalia muito terceiros), fiel aos próprios princípios, honesto consigo, esforçando-se por tomar consciência do que pode melhorar em si e tentar fazê-lo. Este processo claramente se transpõe para a música, mas também para qualquer outra actividade. Eu sei que isto soa a cliché, e talvez até o seja... Que se lixe...
Em tempos, enquanto vencedor da Bolsa Ernesto de Sousa em 1995, beneficiaste de uma estadia em Nova Iorque. Que retiraste dessa experiência?
Energia para trabalhar mais, abertura... Tive acesso a inúmeros concertos e música que seria impossível conseguir aqui, naquela altura... Contactei com muita gente, e fiz alguns amigos que mantenho até hoje. O Phill Niblock foi crucial nisso tudo e é um desses amigos.
Li algures que quando chegaste de Nova Iorque ficaste em estado e choque durante algumas semanas pela diferença de oferta cultural, entre outras coisas. Conseguiste ultrapassar essa diferença gigantesca? Ou aprendeste simplesmente a viver com ela?
Sim, disse isso numa entrevista aos Major Eléctrico. Já estava habituado ao andamento de Nova Iorque. Quando lá estava só pensava em lá viver, mas considero que fiz bem em voltar aqui para a pequenez. Consigo, acho, focar-me melhor no meu trabalho. Em Nova Iorque sentes muita mais pressão em cima... Se paras já não pagas a renda... Aqui, a pressão é outra. Sente-la se trabalhas muito, é só obstáculos, uma espécie de censura... É a pequenez de que te falava, um bocado ridícula...
Quase todos os músicos com quem falei que tiveram a oportunidade de trabalhar com Sei Miguel dizem que com ele é possível aprender imenso. Partilhas essa opinião?
O Sei Miguel dedica-se muito aos músicos com quem trabalha, também para conseguir concretizar a sua música, que é bastante exigente... Ele tem dado prioridade ao trabalho de grupo. Trabalhei com ele regularmente de 1998 a 2005 e foi, de facto, um processo com o qual ganhei muita experiência e desenvolvi capacidades.
Como lidas com a tua forma livre de fazer música com a forma mais “estruturada”, digamos assim, de fazer música do Sei Miguel? Ele diz constantemente que não é um…
Improvisador? Também eu não aprecio a palavra, mas consigo conviver com ela... mas improvisar não deixa de ser um pouco sinónimo de desenrascar, não? Sim, a música do Sei Miguel é mais rigorosamente desenhada do que aquela em que eu trabalho, mas também soa mais rígida do que é na realidade. E a minha é mais pensada que o caos que aparenta ser. De qualquer forma, acredito no e admiro o trabalho do Sei Miguel e sempre tentei perceber o que ele queria para me esforçar por concretizá-lo. Ao mesmo tempo, ele sempre respeitou o meu trabalho quando me propunha qualquer coisa.
Que planos tens para os próximos tempos em termos de discos a solo? Há alguma coisa na manga que possas revelar desde já?
Planos para disco a solo... Um na Phonomena, de Tóquio. Fui convidado para o fazer há mais de dois anos mas ainda não o fiz. Só isso... Mas surge sempre mais qualquer coisa que não está nos planos...
André GomesPassa-se logo após o tomar conhecimento e consciência do underground, circa 1988: edições em cassete, capas feitas à mão, controlo total do trabalho pelo próprio artista... achava ter já algo a dizer, depois de alguns anos a praticar, a experimentar, a tocar sobre discos... foi a abertura enunciada pelo underground o principal catalisador - fui inspirado e motivado por imensa música para mim nova, tornada pública de uma forma totalmente independente. Ainda acredito nesse processo. Trabalho em casa, quase sempre sozinho, onde são realizadas a grande maioria das gravações e utilizando o mínimo de recursos possível. Também importante estímulo e fonte de inspiração foram os primeiros contactos com o jazz. O tocar guitarra e a sacralização do momento da execução instrumental duram até hoje e são aspectos primordiais no meu trabalho.
Esse primeiro contacto com a experimentação… acontece já de uma forma ‘legitima’ e com conhecimento ou como simples resposta à curiosidade que resultou da audição desses discos? Quando se torna comum no teu trabalho a exploração do drone, do tapping, do near silence, da micro improvisação?
Bem... ainda hoje não me considero especialmente "conhecedor" do que se passa por aí, se é disso que falas... mas as poucas coisas a que tive acesso nesses primeiros contactos acabaram por ser também importantes primeiras referências... não sei se se poderá considerar o que fiz nessa altura legítimo nem com conhecimento mas era seguramente trabalho honesto... Dediquei-me exclusivamente à exploração do drone entre 95 e 97. Tenho imensas gravações desse período (quase só com guitarra acústica) mas praticamente nada tornado público. É a minha estada de 2 meses em Nova Iorque, com o Phill Niblock, que mais me estimula a dedicar ao drone. A música que faço desde 97 está (cada vez mais) enraizada nos blues e no jazz, principalmente.
© Esquilo |
Que música nova era essa de que falas? Que discos eram esses que despertaram interesse e descoberta?
Vou-te referir apenas o Solo Guitar vols 1 e 2 do Derek Bailey. Comprei-os na Contraverso por essa altura e têm-me acompanhado durante estes 16 ou 17 anos... De resto, não sei bem... Também nunca fui muito metódico nessa busca... Ia filtrando o que ia aparecendo, ou por compras que fazia, ou por empréstimos de amigos... Ainda não havia internet...
O criar da tua própria editora, a Headlights, corresponde aquele desejo de independência que manifestavas há pouco?
O meu desejo era de tornar público o meu trabalho... O criar a Headlights foi (e é) a forma que encontrei possível de o fazer, embora não o consiga tornar assim tão público... A sua gestão é desempenhada com algum esforço e desagrado, mas acho que tem valido a pena...
Gostava que falasses um pouco de Outubro, da ideia, da sua concepção…
A música que faço não parte de ideias, acho... Sou adverso a essa palavra... Vivência e acaso são os factores com que lido, e este disco é outra consequência disso mesmo. O ser músico foi-se tornando gradualmente essencial na minha vida, quase sem ter dado por isso. Uma espécie de missão que tenho vindo a desempenhar com crescente empenho e profundidade, tendo-me tornado cada vez mais incapaz (ou, se calhar, borrifando-me) para me dedicar a outras actividades. Tornou-se a minha cruz. O Outubro foi gravado para aí no mês mais difícil, infeliz, da minha vida... Não sei se o reflecte, mas é um facto. Também só andava a ouvir Paul Desmond com Jim Hall e Loren Mazzacane...
Este disco serviu para aclarar ou aprofundar melhor as relações distintas que tens com a guitarra eléctrica e com a acústica?
Sim, também para isso (embora pretenda reduzir essa distinção), mas principalmente para me manter à tona. Como todos os outros, mas talvez principalmente, um disco feito para mim...
Tens andado muito activo ultimamente com os Cúria, com o Afilhado Cigano e com a dupla que tens com a Rita Vozone dos CAVEIRA. O que é que nos podes contar acerca de cada um dos projectos? O que é que encontras neles que não encontrar no teu trabalho a solo?
Projecto é outra palavra com que embirro, mas está bem... não sei se é por ter andado em arquitectura... mais uma vez, essas formações são obras do acaso, não premeditadas nem calculadas... todos os envolvidos (Margarida Garcia, David Maranha, Afonso Simões, Pedro Gomes e Rita) são amigos próximos com quem gosto de estar e por quem tenho admiração pelo que têm vindo a fazer... Sendo assim, foi natural surgirem oportunidades de trabalho juntos. Curia: eu e o Afonso estávamos a tocar juntos e a ensaiar há já algum tempo (tínhamos tocado no Espaço - Centro de desastres) e íamos tocar na mesma noite que a Margarida e o David, que também andavam a ensaiar juntos, no Music Box. Entretanto, o Manuel Poças da ZDB convida-me para lá tocar mais ou menos para a mesma altura, e eu lembro-me de fundir os dois duos para tal... Perguntei aos três o que achavam, no momento, e assim ficou. O baptizar esse quarteto foi uma espécie de assumir um compromisso para um trabalho mais contínuo e regular, com o qual estou entusiasmado. Estamos agora a gravar um disco para a Ruby Red, da minha beloved Sintra. O afilhado cigano nasceu de um convite do Nuno Moita (da Grain of Sound), que estava a organizar uns concertos nos estúdios da Bomba Suicida, para tocar com os CAVEIRA. O Quim (baterista dos CAVEIRA) já tinha um concerto agendado para esse dia com a sua outra banda e não tinha possibilidade de o fazer, por isso, passámos a trio de guitarras... Só demos esse concerto e gravámos uma sessão para a rádio... não sei o que o futuro reserva a este trio, mas a Rita e o Pedro são também os meus guitarristas favoritos aqui do burgo, sem qualquer desprimor para os restantes, e é com entusiasmo que recebo propostas para colaborar próximo deles... Continuo também a trabalhar em duo com a Margarida (trabalho que já existe desde 1998, para aí...), que regressou ao fim de 3 anos em NY com uma guitarra... As colaborações são uma prática que também me dá prazer realizar. Já disse isto numa outra entrevista: existe um pacto de confiança e de união, de responsabilidade repartida... no trabalho a solo confrontam-se o músico e os seus demónios, só...
Acompanhas esta nova geração de improvisadores como os CAVEIRA, os Frango, os Fish & Sheep? Que retrato fazes desta geração?
Sim, acho que tenho vindo a ser mais ou menos ou menos público fiel nos concertos de algumas dessas bandas (mais precisamente essas mesmo que referes), e fico contente por já não ver só tampas abertas com uma maçã iluminada e uma cabeça a beber vinho e a fumar cigarradas em cima de um palco... Retratos não faço, só em desenho... Ficaria feliz por saber que têm prazer no que estão a fazer e que sentem que isso lhes é importante... Ficaria feliz por saber que se borrifam para as consequências socio-profissionais das suas escolhas... Estou cansado de calculismos, manipulações e oportunismos excessivos... A música é espiritual, terapêutica, essencial...
Achas que há razões para optimismo ou pode ser uma coisa passageira? É importante que estas bandas passem a “barreira” do CD-R que para eles até foi a forma de aparecer?
Não acho essencial a questão do formato em que se torna público o trabalho... E se é pretendido imediatismo e controlo total no resultado final, a edição em CD-R é até o meio mais adequado... Assim, passa ao lado o negociar com fábricas, o esperar mais tempo pelo produto final do que o acordado com os vendedores, o reclamar os erros que cometem (sempre, pelo menos essa é a minha experiência). A edição em CD-R é a forma mais independente e despretensiosa de o fazer... Em resumo, não vejo os formatos de forma hierárquica. Pessoalmente não sou fã, porque não me interessa editar muito, não tenho pressas (tenho vindo a editar com muito pouca regularidade e durmo bem com isso), e porque sou preguiçoso (copiar CDs, fazer capas, etc, é actividade que dispenso). Em relação à vaga: não sei... Na natureza, a vaga é efémera. Neste caso, se calhar também o será mas de qualquer forma, anima um bocado a cidade, que na década passada esteve tão deprimente, pelo menos no meio em que me movia. E alguns hão-de sobreviver à sua desintegração, por necessidade e por amor. E é isso mesmo que valorizo. Como te disse antes de outra forma, estou-me a borrifar para cenas, meios, modas... Inspiram-me pessoas, neste caso músicos, com uma visão própria do que querem criar, e que trabalham para a concretizar, que assumem um compromisso com eles próprios. Eu sei que o diabo está sempre presente, tentando com os factores dinheiro e, ainda mais, reconhecimento público...
Achas que existe uma quantidade insuficiente de editoras em Portugal dedicadas a estes territórios musicais?
Não sei... Nem me interessa, desculpa. Mas se editora é uma empresa que te convida para fazer um disco, te paga as despesas (gravações, produção, etc.), e te paga pelo trabalho e vendas, então não conheço nenhuma cá. As como a Headlights, são edições de autor camufladas. Pobres mas com uma aura especial...
Mudando agora de assunto, como é “transportar” a tua música para os concertos. Que peso extra incute nas tuas explorações. O imediatismo dos concertos é diferente do imediatismo da improvisação em estúdio?
Mais facilmente te posso referir o factor "som" como condicionante num concerto. Pratico e gravo sempre na mesma sala, em minha casa, quase sempre com o mesmo equipamento. Acabo por ficar muito habituado às características acústicas desse espaço. Por isso é que no soundcheck para um concerto, e embora num minuto monte o equipamento e ligue a guitarra, gosto de demorar um pouco a tocar, para me habituar à acústica do espaço e ao amplificador (em Lisboa costumo usar o meu, mas no estrangeiro tenho muitas vezes que me sujeitar ao que aparece). A outra condicionante é uma questão de vibrações, não sei como te explicar de uma forma clara.
© Esquilo |
É complicado ainda encontrar sítios em Portugal para tocar? O Vítor Rua dos Telectu está a travar uma batalha pelo tratamento dado aos músicos portugueses no que diz respeito a questões monetárias e até em relação aos DJs. Não sei se tiveste já contacto com este debate. Que te oferece dizer acerca disto?
Sim, recebi esses e-mails, mas confesso que não os li com grande atenção. O que significa que, como podes depreender, me estou a borrifar para essa causa. Também porque não sei bem qual é o problema deles (Vitor Rua, Nuno Rebelo e Carlos Zíngaro, autores dos e-mails que recebi em relação a essa batalha que referes). Também porque não me revejo nas formas de proceder do Vitor Rua ao longo dos anos. E também porque estou longe de subscrever o que foi para ali escrito. Considero que a forma de melhorar o que nos rodeia é tentando ser melhor pessoa, coisa que só o próprio sabe avaliar (ofereça-se um espelho a quem avalia muito terceiros), fiel aos próprios princípios, honesto consigo, esforçando-se por tomar consciência do que pode melhorar em si e tentar fazê-lo. Este processo claramente se transpõe para a música, mas também para qualquer outra actividade. Eu sei que isto soa a cliché, e talvez até o seja... Que se lixe...
Em tempos, enquanto vencedor da Bolsa Ernesto de Sousa em 1995, beneficiaste de uma estadia em Nova Iorque. Que retiraste dessa experiência?
Energia para trabalhar mais, abertura... Tive acesso a inúmeros concertos e música que seria impossível conseguir aqui, naquela altura... Contactei com muita gente, e fiz alguns amigos que mantenho até hoje. O Phill Niblock foi crucial nisso tudo e é um desses amigos.
Li algures que quando chegaste de Nova Iorque ficaste em estado e choque durante algumas semanas pela diferença de oferta cultural, entre outras coisas. Conseguiste ultrapassar essa diferença gigantesca? Ou aprendeste simplesmente a viver com ela?
Sim, disse isso numa entrevista aos Major Eléctrico. Já estava habituado ao andamento de Nova Iorque. Quando lá estava só pensava em lá viver, mas considero que fiz bem em voltar aqui para a pequenez. Consigo, acho, focar-me melhor no meu trabalho. Em Nova Iorque sentes muita mais pressão em cima... Se paras já não pagas a renda... Aqui, a pressão é outra. Sente-la se trabalhas muito, é só obstáculos, uma espécie de censura... É a pequenez de que te falava, um bocado ridícula...
Quase todos os músicos com quem falei que tiveram a oportunidade de trabalhar com Sei Miguel dizem que com ele é possível aprender imenso. Partilhas essa opinião?
O Sei Miguel dedica-se muito aos músicos com quem trabalha, também para conseguir concretizar a sua música, que é bastante exigente... Ele tem dado prioridade ao trabalho de grupo. Trabalhei com ele regularmente de 1998 a 2005 e foi, de facto, um processo com o qual ganhei muita experiência e desenvolvi capacidades.
Como lidas com a tua forma livre de fazer música com a forma mais “estruturada”, digamos assim, de fazer música do Sei Miguel? Ele diz constantemente que não é um…
Improvisador? Também eu não aprecio a palavra, mas consigo conviver com ela... mas improvisar não deixa de ser um pouco sinónimo de desenrascar, não? Sim, a música do Sei Miguel é mais rigorosamente desenhada do que aquela em que eu trabalho, mas também soa mais rígida do que é na realidade. E a minha é mais pensada que o caos que aparenta ser. De qualquer forma, acredito no e admiro o trabalho do Sei Miguel e sempre tentei perceber o que ele queria para me esforçar por concretizá-lo. Ao mesmo tempo, ele sempre respeitou o meu trabalho quando me propunha qualquer coisa.
Que planos tens para os próximos tempos em termos de discos a solo? Há alguma coisa na manga que possas revelar desde já?
Planos para disco a solo... Um na Phonomena, de Tóquio. Fui convidado para o fazer há mais de dois anos mas ainda não o fiz. Só isso... Mas surge sempre mais qualquer coisa que não está nos planos...
andregomes@bodyspace.net
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