ENTREVISTAS
Ty
Mais perto
· 26 Jan 2007 · 08:00 ·
Mais perto de Ty, o rapper britânico que também acredita que o hip-hop morreu. Encontrado entre prostitutas e empregados de mesa embriagados de marisqueiras, o homem passa de tipo simpático e esfomeado que fala sobre rappers que se tornaram actores a artista completamente irado pelo seu, a seu ver, paupérrimo espectáculo. Há centenas de rappers “conscientes” que, fora do mainstream, não falam sobre dinheiro e prostitutas e carros e a vida de gangsta. Todos sabemos isso. Ora, isso não faz com que a sua música seja, automaticamente, melhor ou pior. Ou que tenham de seguir uma dieta estrita de música com ideais semelhantes aos seus. Há más pessoas que fazem boa música, há boas pessoas que fazem má música. O facto de Ty (lê-se “Ti-uái” e não “Tái”) não falar sobre a vida de gangsta não faz dele melhor ou pior rapper. Mas ele é bom rapper. E sabe fazer boa música.
O londrino Ty já participou em discos de Tony Allen e tem um interesse desmesurado por tudo o que tenha a ver com hip-hop. Quando o encontramos, em pleno Cais do Sodré, quase à hora de jantar, tem na bolsa exterior da sua mala o DVD de ATL, o filme do rapper T.I. Perguntamos-lhe se muita gente confunde os dois. Responde que não, mas que isso seria bastante bom para as suas vendas. A questão das vendas parece interessar a Ty, quando se fala, ao jantar, de More Fish, o segundo disco que Ghostface Killah lançou em 2006. Ty mostra-se fascinado por Ghostface ter fãs suficientes para lançar dois discos no mesmo ano. Mas adiante. T.I., tal como Ghostface, é um rapper com letras que tratam as mulheres como objectos. “If you don't come, I ain't gonn' die”, diz ele em “My Love” de Justin Timberlake.

Mas Ty não tem de concordar com o que diz T.I. para apreciar a sua música. Ao longo do jantar antes do seu concerto no festival Roots & Routes, vai falando com o seu DJ, Big Ted, nome maior da rádio inglesa dedicada ao hip-hop e grande imitador de rappers. Big Ted mostra já conhecer de cor as letras de Kingdom Come de Jay-Z, fazendo jus ao casaco com capuz cinzento da Rocawear que usa. Ty diz que sabe à partida que não vai gostar de Kingdom Come. Mas discute com Ted se Snoop Dogg – Ty diz que, quando era mais magro e quando Dogg apareceu, os seus vizinhos diziam que era bastante parecido com ele -, homem também dado à objectificação das mulheres, é ou não um poeta. Ted acha que Snoop Dogg não sabe escrever letras, enquanto Ty diz que o rapper tem letras realmente bonitas.

O hip-hop morreu

Ty é um fã de hip-hop que acha que o hip-hop morreu. Concorda plenamente com o título do último disco de Nas, Hip-hop is Dead. “O hip-hop é algo que tem estado na minha vida desde sempre e sinto mesmo que está morto. Não acabou, não é impossível de salvar, suicidou-se e precisa de reestruturamento.”


Mos Def dizia que nós, todos nós, éramos hip-hop. KRS-One disse que era a personificação viva do hip-hop. Como é que podemos, então, salvar o hip-hop? Nós, as pessoas, a nós próprias? “Não sei como é que as pessoas podem salvá-lo. Não tem a ver com como as pessoas podem salvá-lo, isto não é uma cruzada, é preciso que as pessoas queiram fazer isso. Se as pessoas quiserem fazê-lo, arranjam maneira de fazê-lo. Eu sei o que tenho de fazer. Por isso estou a fazê-lo. Não é algo público, é algo pessoal.”

“É preciso ter integridade. É isso que estou a fazer. Não sei se as pessoas querem fazê-lo. Não sei se as pessoas ainda percebem o que é o hip-hop.” E o que é o hip-hop? “É uma forma de arte musical que deriva da cultura negra e está aberta a toda a gente e utiliza sentimentos que estão relacionados com todos nós, é funk, é jazz, é soul, é rock, é música erudita, usa música. Não há música que o hip-hop não toque. Mas o que o hip-hop faz é juntar as pessoas. Nos clubes de hip-hop, onde quer que eu vá, vê-se gente junta que nunca se veria de outra forma. O hip-hop junta todos os passados, todas as culturas para apreciar a música. É isso que é possível fazer através da música, através de ouvi-la, de dançar com ela, de participar nela, de sê-la, junta as pessoas e acho que é isso que se esqueceu.”

E o que é que aconteceu? “Acho que os artistas de hip-hop estão apenas à procura de dinheiro de forma egoísta e venderam a importância da música. Já não estão sequer interessados em ser os melhores, só querem fazer dinheiro.”

Os melhores do mundo

Ty tem, em “Everybody”, de Closer, disco lançado no ano passado, uma frase interessantíssima. “Everybody wants to be the best in the world, I just really wanna have sex with my girl” (ao jantar, do nada, muda a frase para “make love”, mas, infelizmente, não repete a proeza no concerto). Explica a frase não num contexto de hip-hop, mas sim dizendo que as pessoas querem ser os melhores e não o melhor que podem ser. “Não digo que não queira ser o melhor, só não estou interessado em ser o melhor. Estou interessado em fazer boa música, e acho que esse é um problema com o que se passa agora. As pessoas deixaram de querer fazer boa música.”

Mas haverá, certamente, algo que o interesse no hip-hop, uma das suas culturas favoritas. Apesar de passar o tempo no iTunes e no MySpace à procura de rock progressivo e psicadélico - “a música é incrível”, diz -, há algo que o atrai no hip-hop que ouve e faz. “Aquilo de que gosto no hip-hop é a energia que antes tinha. Quando vejo essa energia em pessoas hoje, como em Dave Chappelle's Block Party, isso lembra-me porque é que gosto de hip-hop.” Block Party é um filme-documentário realizado por Michel Gondry com o comediante Dave Chappelle que mostra uma festa em Brooklyn com Black Star, Common, Fugees, Roots, etc., que Ty diz ser um dos melhores filmes de hip-hop que já viu.

“São as coisas boas, as memórias e os bons sentimentos que trazem às pessoas. Gosto disso.” Mas não tem artistas favoritos, está apenas “apaixonado pela forma de arte”. Contudo, um disco de hip-hop que ouvia muito quando era mais novo era The Show de Doug E. Fresh e o último disco que tinha comprado e adorado era Shine Through de Aloe Blacc, artista da Stones Throw.

Hip-hop com significado

“Sempre ouvi todos os tipos de música, mas tenho ouvido hip-hop toda a minha vida, ouço-os desde que andou por aí, desde que tive conhecimento da sua existência. Deve ter sido no final dos anos 70.”, confessa.

“Acho que o hip-hop é uma subcultura. Gosto de música. Gosto de música ao vivo. Gosto da música, gosto da energia de boa dança, gosto da energia dos b-boys e do graffiti e de tudo isso e, em geral, gosto só de boa música. Quando falo de boa música falo de música que não é manufacturada e fraca. Gosto de música que tem substância, significado. J. Dilla, sou fã de artistas como ele. O que se passa com ele é que percebes o que se passa em todos os tipos de música e acho que ele é um génio. Acho também que toda a gente tem saudades dele como eu.” O produtor, que morreu em 2006, é constantemente citado por tudo e todos a toda a hora.


O próprio Ty, no seu concerto, que tinha acabado de se dar e que, para ele, não tinha corrido nada bem (problemas no som, entre muitas outras coisas), tentou homenageá-lo apenas dizendo o seu nome, como acontece várias vezes, até no hip-hop português.

Integridade

No início dos anos 90, Angela Davis, a mítica lutadora pelos direitos civis negros e membro dos Black Panthers, juntou-se a Ice Cube, ex-membro dos NWA que lançou Death Certificate em 1993, para uma conversa. Aí perguntou-lhe pela sua objectificação das mulheres e o uso de termos como “bitch” e “hoe”. Ice Cube, fugindo completamente ao âmago da questão, disse que era a linguagem que usava para falar directamente com as pessoas dos bairros, que era assim que toda a gente falava.

Em 2003, Jay-Z, quando lançou o seu Black Album, disse numa conferência de imprensa que em “99 Problems”, quando dizia “99 problems but a bitch ain't one” (que era citação directa de Ice-T), não se referia a uma mulher, pelo que não era uma questão de misoginia. Isto vindo do homem que, apenas 3 anos antes, em “Big Pimpin'”, objectificava de uma forma brutal as mulheres, dizendo “But I don't fuckin' feed'em”, entre outras pérolas. São duas maneiras de fugir a uma questão essencial, de se desculparem de algo que é, basicamente indesculpável. Mesmo que ambos sejam diferentes (Ice Cube era o inimigo número 1 da América e Jay-Z é, hoje em dia, um filantropo), é a mesma questão. Em Ty, essa objectificação não existe. Mas não é razão para ele odiar algum dos dois.

Ao jantar diz que respeita bastante Ice Cube, mas a questão é a seguinte: nem Jay-Z nem Ice Cube fazem melhor ou pior música por causa das suas ideias. O que interessa, e Ty parece perceber isso, é o produto final. Só não veremos nenhum dos dois artistas nos seus discos. E isso não se prende apenas com não pertencerem à mesma liga, tem a ver com a sua ideia de integridade no hip-hop.

O triunfo dos positivos

Em Closer não temos nem Ice Cube nem Jay-Z, não, Ty prefere associar-se, em termos de lendas do hip-hop, a gente como Speech (dos Arrested Development) e aos De La Soul, por exemplo. O primeiro está nisto há uns 15 anos, sempre a mostrar a toda a hora que faz “hip-hop positivo”, e teve dois êxitos nos anos noventa com “Mr. Wendal” e “People Everyday”, ambos baseados nos Sly & The Family Stone. O grupo tem, hoje em dia, pouca visibilidade, mas Ty diz que ainda fazem discos, só não entram no circuito comercial normal.

Os De La Soul conseguem manter-se relevantes e reinventar-se de certa forma mesmo nos anos 2000, apesar de nunca terem conseguido mudar o mundo outra vez como o fizeram com 3 Feet High and Rising, clássico absoluto do género.

Speech aparece em “This Here Music”, tema muito soul com sopros à mistura, e os De La Soul aparecem em “The Idea”, tema baseado em loops de Ty a cantar “ooh-ooh” que funciona bastante bem.

“Escolhi trabalhar com gente que representa o tipo de integridade na música que eu quero pôr de volta no meu hip-hop. Então preciso de tê-los no meu hip-hop”, diz-nos, adicionado que acha que “toda a gente é relevante, mesmo que seja má, porque mostra o que é bom e o que é mau”, quando lhe dizemos que os Arrested Development são pouco relevantes hoje em dia, “no hip-hop, se é de qualidade, não existe o conceito de velho ou novo.”

Em Closer há três produtores: o próprio Ty, Drew Horley e Leroy Brown. Para o rapper, é bastante importante trabalhar com as mesmas pessoas em todos os temas. “A produção nos álbuns de hip-hop está a sofrer porque já não encontras uma história. Um álbum é suposto ser uma história, do início ao fim, não importa se está ou não ligada, mas a história está na música e nas pessoas que são um grupo. As melhores canções de sempre no hip-hop são de grupos. Qualquer grupo, qualquer canção de hip-hop, mesmo grupos que pensas que são a solo são grupos, porque o produtor e o MC ou o MC e o DJ trabalham juntos vezes sem conta e fazem êxitos.”

Ty acha que as colaborações contastntes com produtores diferentes estragam a música. Por isso é que cinge àqueles produtores. E, entre refrões melódicos, o seu sotaque londrino completamente extra-grime, em produções modernas, boas letras e muito apelo pop, Closer triunfa. “Acho que fiz um álbum muito bom e estou impressionado com o que conseguimos fazer.” E nós também.
Rodrigo Nogueira
rodrigo.nogueira@bodyspace.net

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