ENTREVISTAS
Most People Have Been Trained to Be Bored
O ruído, tal como o conhecemos
· 07 Nov 2006 · 08:00 ·
Most People Have Been Trained to Be Bored é o projecto a solo de Gustavo Costa, músico portuense que colaborou ou colabora com nomes como Genocide, Stealing Orchestra, Três Tristes Tigres, Drumming, Gregg Moore, Ethos Trio, Damo Suzuki ou John Zorn. Como o próprio nome do projecto indica, este veiculo funciona como uma espécie de desafio à maioria dos ouvintes - e como marco de uma abertura da Bor Land que é de saudar. Success In Cheap Prices é uma colagem de noise, música ambiental, electrónica ou electro-acústica, o statement que provavelmente já se vinha desenvolvendo na mente de Gustavo Costa há muito tempo. Aqui, em entrevista, Gustavo Costa dispõe-se a responder a algumas perguntas que clarificam todas as duvidas que possam gravitar em redor do projecto.
Como se inicia o teu interesse pela bateria? Tanto quanto sei estudaste música durante muitos anos…

Bastante novo. Tive a sorte de ter um irmão mais velho que ouvia Led Zeppelin, Deep Purple e por aí fora, e eu passava-me com os solos de bateria do Ian Paice e do John Bonham, ao ponto dos meus pais me darem uma bateria de brincar quando tinha 6 anos. Ficou completamente destruída em pouco tempo. A aprendizagem musical em escolas só começou mais tarde, quando tinha 13 anos, e pode-se dizer que ainda hoje continua, embora agora tenha concentrado o estudo mais na área da composição algorítmica.

Durante tanto tempo participaste com bandas como os Genocide, Stealing Orchestra, Três Tristes Tigres, Drumming, Gregg Moore, Ethos Trio, Damo Suzuki ou John Zorn. O que é que guardas como experiência e ensinamento de todos esses projectos?

Sim, comecei a tocar em bandas há 17 anos atrás, já lá vai algum tempo. Todas as experiências acabam por levar a uma maturação tanto a nível musical como a nível pessoal. Nos Genocide toquei durante 15 anos, ainda hoje é uma espécie de segunda família para mim. Embora faça música em nome individual, grande parte do que faço é em colectivo, e é assim que gostaria de continuar. Não é fácil lidar com várias personalidades ao mesmo tempo, temos que encontrar um ponto de equilíbrio, onde o respeito e o trabalho possam dar frutos, o que nem sempre é possível.

Como foi trabalhar especificamente com Damo Suzuki ou com John Zorn? Tive por acaso a oportunidade de assistir à actuação da John Zorn's Cobra na Casa da Música em 2005…

Ainda hoje não consigo perceber a sorte que tive de poder trabalhar com o Damo e o Zorn. O Zorn foi provavelmente a figura que mais me marcou, tenho mais de 300 discos onde ele está envolvido que fui coleccionando desde que ouvi o Torture Garden dos Naked City. O que posso dizer mais? Continuo a ser um fã do Zorn, apesar de achar que ele cobra demasiado dinheiro para tocar. Em relação ao Damo Suzuki, já tive a oportunidade de tocar com ele quatro vezes e conviver um pouco mais de perto. Continua a ser um hippie muito simpático com uma visão muito romântica da música.

Porquê Most People Have Been Trained To Be Bored? Parece uma mensagem, um statement… é realmente isso que significa o nome do projecto?

O nome é retirado de um livro do John Cage; sou um grande admirador do Cage, não só da música mas também da sua postura na vida. É um statement quase político, mas sem cair nos clichés habituais do tipo "fuck the system", não me agrada repetir o que outros já fizeram bem melhor do que eu. Como também me dou mal com o extremo formalismo académico, não quis usar um nome do género "Gustavo Costa: obras seleccionadas...", não gosto de me personificar no papel de compositor clássico, até porque a minha formação é bem distinta.

Como chegaste ao resultado final de Success In Cheap Prices em termos de definição estética? Teve a ver com as tuas actuais áreas de interesse na música?

A minha definição estética engloba com o mesmo respeito Napalm Death, Xenakis, Cage, Crass, John Coltrane, tascas, intelectuais e por aí fora. Quando faço música em nome individual, todas estas influências se fundem e o resultado pode perfeitamente ser o que se ouve neste disco.

Como aconteceu a gravação do disco? Quais são os pormenores importantes que rodearam a concepção de Success In Cheap Prices?

Quase todo o disco foi feito sentado em frente a um computador, com excepção das partes gravadas em tempo real, como aconteceu com os convidados que participam no disco. Talvez o pormenor mais curioso na concepção do disco seja a utilização de um estúdio analógico cujo equipamento proveio da exposição universal de 1958 em Bruxelas, e foi utilizado pelo Edgar Varése para a composição do Poéme Electronique, uma das mais importantes obras electrónicas da história da música. Na altura estava a estudar sonologia na Holanda, e tinha acesso a este estúdio; sempre que lá entrava tinha a sensação de estar numa igreja monumental...


Também o título do disco, Success In Cheap Prices, parece ser uma mensagem. Como surge e o que significa para ti?

O nome, como quase todos os nomes que acabo por utilizar, envolve sempre uma margem grande para diferentes interpretações. Este nome em concreto faz referências ao actual modelo social em que vivemos, onde somos completamente controlados por uma ditadura comercial que nos foi imposta quase subliminarmente sob uma capa de pseudo democracia.

No myspace do projecto, nomes como Luc Ferrari, Keiji Haino, Napalm Death dos primeiros tempos, James Plotkin, Iannis Xenakis, John Zorn e Giacinto Scelsi aparecem como influências para ti. De que forma crês que todos estes nomes transparecem no teu disco?

O projecto é extremamente pessoal, por isso seria legítimo citar qualquer uma das minhas muitas influências. Estes nomes podem até nem transparecer imediatamente, mas são extremamente importantes na minha formação musical e, consequentemente, no resultado final deste disco. Tenho um gosto especial pela música underground e anti comercial, e isso reflecte-se mesmo em alguns dos compositores mais eruditos. Tanto Luc Ferrari como Scelsi foram compositores marginais, e toda a sua obra reflecte um espírito bastante pessoal e distante de muitos dos preconceitos académicos.

Actualmente dás também aulas na Escola Superior de Musica e das Artes do Espectáculo, no Porto. Em que se baseia a disciplina ou as disciplinas que leccionas?

Estou neste momento com três disciplinas, sendo uma apenas de acompanhamento aos alunos que estão a realizar a sua última peça electrónica no curso de composição. Tenho também uma disciplina intitulada Formalização Musical, no curso de composição, onde são abordadas algumas das técnicas mais recorrentes de composição algorítmica e uma disciplina intitulada Laboratório e Estúdio, para o curso de Jazz, onde são abordadas algumas técnicas de estúdio e ensinados alguns conhecimentos técnicos básicos a músicos que, de uma forma geral, pouco contacto têm com tecnologias.

Como pensas transpor este disco para os concertos? Quais são os meios que pensas utilizar?

O disco é literalmente impossível de transpor ao vivo; tudo foi processado vezes sem conta, e muitas das sequências que apresentam notas convencionais são impossíveis de ser tocadas, ou teriam que ser redistribuídas por um grande ensemble. Optei por fazer uma abordagem bastante diferente do disco, embora vá buscar algumas reminiscências, principalmente na ambiência geral do disco. Vamos fazer a apresentação com uma formação de saxofone, bateria, contrabaixo e computador, embora todos nós teremos alguma electrónica associada aos nossos instrumentos. Iremos usar também alguns instrumentos menos convencionais, como é o caso da Mesa, um instrumento construído pelo João Martins (saxofonista), baseado no Daxofone do Hans Reichel.

Está também planeada uma grande digressão pela Europa nos próximos tempos. Como estão a correr os planos?

Vim há poucas semanas de uma digressão europeia com os Lost Gorbachevs, uma banda onde toco com duas das pessoas com quem mais tenho tocado ultimamente e que me vão acompanhar na apresentação deste disco. A próxima digressão será com os Barbez, uma banda Nova Iorquina que me pediu para substituir o baterista deles na tour europeia, e será no final de Novembro até meados de Dezembro. As datas ainda não estão todas confirmadas, mas vamos tocar em cidades "grandes", o que representa sempre um desafio extra, pois as pessoas tendem a ser mais frias. Por outro lado, surgem sempre boas oportunidades, contactos e, apesar de cansativo, é sempre divertido.
André Gomes
andregomes@bodyspace.net
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