ENTREVISTAS
Carlos Zingaro
Solo
· 01 Set 2006 · 08:00 ·
© J. Magalhaes
Carlos Zíngaro começou a estudar música aos quatro anos mas esse não será porventura o facto mais importante na sua biografia para se perceber aquilo que representa para a música portuguesa e mundial nos dias de hoje. Deve-se ao seu encontro com os sons de Ornette Coleman, Jimi Hendrix e John Cage, na sua adolescência, o salto de gigante que tornou Carlos Zíngaro um nome fundamental na música improvisada. A forma: o violino e a música electrónica. Formou: os Plexus em 1967, mas foi em nome próprio que desenvolveu maior actividade na música - ou com os inúmeros colaboradores com que criou e continua a criar (a lista é extensíssima). Mas nem só de música Carlos Zíngaro vive Carlos Zíngaro: além da sua estreita relação musical com o teatro, com o cinema e com a dança, recebeu prémios para os seus cartoons, comics e ilustrações. Se duvidas ainda restassem, fica demonstrado nesta entrevista com Carlos Zíngaro, o seu empenho em utilizar toda a sua energia em criar, em evoluir, em lutar contra as adversidades.
O seu grupo, Plexus, o primeiro do género a surgir em Portugal, foi formado em 1967. O que se lembra desses tempos? Sentia na altura o peso de estar a abrir novos caminhos em Portugal?

Sentia, fundamentalmente, a vital necessidade de fazer algo de diferente, depois da esclerose de 15 anos nas músicas chamadas eruditas. Não esquecer que as formas de ensino eram outras e que a repressão se estendia impune a todas as áreas e maneiras de pensar. Seria demasiado jovem para ser consciente de qualquer peso ou abrir de novos caminhos. Era essencial para mim a vontade de fazer e de “gritar”! Determinante também a minha já proximidade auditiva a John Cage, ao Free Jazz e ao rock mais visceral, underground ou alternativo. Evidente que a incompreensão e repúdio eram generalizados e, de forma não sistematizada e muito menos organizada, eu senti por isso que teria uma atitude política face ao sistema e ao pensamento estabelecidos.

Em 1979 ganhou um Fulbright Grant, e posteriormente foi convidado pela Creative Music Foundation a participar em encontros e actuações em Woodstock. Sente que esses dois momentos foram primordiais para a sua ascensão como músico no mundo?

Como outros anteriores… a minha presença nos 1º e 2º festivais de Willisau (Suiça) em 1975/76, onde encontrei músicos que depois me foram determinantes – Steve Lacy, Kent Carter, Irene Schweiser, Rüdiger Carl, Peter Kowald. E em 1977 ao integrar os workshops dirigidos por Steve Lacy no derradeiro festival de Chateauvallon (França) e sua apresentação final no seu belíssimo anfiteatro. A oportunidade de começar então a tocar com Kent Carter (contrabaixista de Lacy, como antes de Paul Bley) que me convidaria para todos os seus projectos a partir de 1978 até 1984. O convite para a participação nos encontros de Teatro Instrumental na Universidade Técnica de Wroclaw (Polónia) durante os primeiros meses de 1978, que coincidiu com a minha passagem por Londres e o encontrar os membros fundadores do London Musicians Collective – Steve Beresford, Evan Parker, Derek Bailey, Clive Bell, Roger Turner, Peter Cusack – com alguns dos quais viria a colaborar mais tarde (Roger Turner, Evan Parker, Derek Bailey). Ainda no final do mesmo ano, conhecer em New York, e por indicação de Steve Lacy, o grande músico, compositor e amigo Richard Teitelbaum, com quem manteria uma colaboração continuada até hoje. Em 1979 ter contactos com a realidade contemporânea Italiana através de Andrea Centazzo – de cuja Mitteleuropa Orchestra fui membro até 1984 – e do crítico, musicólogo Filippo Bianchi, contactos que me manteriam uma actividade intensa de 1980 a 1985 em Itália. Foram estas tão diferentes realidades — aonde ninguém me inquiria sobre que clubes frequentava ou em que escola teria andado, apenas acreditando no que tocava, fazendo-me integrado no meio, eu que, até então, me sentira um constante excluído, inadaptado no meu país — que me convenceram de que, afinal, eu até estaria no caminho correcto. Que as opções estéticas assumidas afinal nem eram aberrações nem derivações masturbatórias…

Com que discos teve o primeiro contacto com a música electrónica? Em que momento sentiu a urgência de a descobrir por si próprio, de trabalhar de perto com ela?

John Cage, Williams Mix, Pierre Schaeffer, Étude aux Chemins de Fer, Edgard Varèse, Poéme Électronique, Karlheinz Stockhausen, Kontakte, Milton Babbitt, Philomel, MEV (com Richard Teitelbaum), Spacecraft, Morton Subotnick, Silver Apples of the Moon Part 1… e tantos outros, assim como tantos elementos do rock mais experimental. Desde a “descoberta” (acidental e inicialmente desagradável…) do feedback motivado pelos péssimos microfones de contacto que utilizava inicialmente no violino, até à visceralidade de Hendrix, passando por isso por toda uma panóplia de pedais ligados ao meu violino eléctrico Fender – adquirido em 1971 – até às músicas concretas desde a aquisição do meu primeiro Revox em 1975, ou a síntese analógica depois da aquisição do ARP 2601 em 1978… tudo me servia de experimentação e manipulação. Transcender o difícil som do meu instrumento primeiro – o violino (relação de amor/ódio que se manteria até muito recentemente), a necessidade de “dialogar” com algo/alguém dadas as prementes dificuldades locais de encontrar interlocutores minimamente sintonizados ou interessados pelas estéticas que me fascinavam. Fundamentalmente o som, a sua transformação electroacústica, a sua escultura.

Como se gere criativamente as influências de Bela Bartok, Chostakovich, John Cage, Ornette Coleman, Jimi Hendrix e Morton Subotnick? Alguma vez a multiplicidade das suas influências foi um entrave para o encontrar de uma linguagem musical desejada?

De facto, receei sempre a colagem de influências e tentei retirar de propostas mais próximas essencialmente conceitos, mais do que técnicas. Digamos que a noção de “linguagem desejada” me é de alguma forma alheia, em paralelo com a ideia de “obra” determinada e determinante. O conceber uma ideia de carreira ou fim a atingir foi-me sempre algo estranho e daí talvez um percurso ziguezagueante de interesses, paixões e influências. Gosto de ser surpreendido, sou um voraz e apaixonado curioso… Hoje, infelizmente, o tempo é mais curto e as opções não poderão já ser tão alargadas. Talvez por nunca ter tido um “mestre orientador”, ou, a partir da quebra académica, o ter optado por percursos de aprendizagem alternativos, tenha sido determinante para esta aparente confusão de estéticas e disciplinas… que na realidade não o é!

Do rol de improvisadores com que colaborou ao longo dos tempos incluem-se nomes como os de Derek Bailey, Evan Parker, Peter Kowald, Steve Lacy e Frederic Rzewsky. De todos os músicos com quem tocou até aos dias de hoje, qual foi aquele que o marcou mais?

Será a pergunta do milhão de dólares que gostaria de evitar por me ser impossível designar um mais do que outro… Lembro o fraseado de Lacy como temática dos meus treinos mecânicos ainda antes de o conhecer pessoalmente. O pretender que o violino soasse a outro instrumento ou outra “coisa” qualquer… O próprio Ornette Coleman a tocar violino — instrumento que de todo não dominava, mas com o qual conseguia fazer o que eu há muito perdera com o classicismo… Claro que, de todos aqueles com quem tive o privilégio de colaborar mais de perto, haverá os que se mantiveram durante bastantes anos, criando laços de cumplicidades artísticas e afectivas – Richard Teitelbaum, Joêlle Lèandre, Daunik Lazro, Roger Turner, o desaparecido Peter Kowald, etc…

Alan Licht disse: "Acho que há um grau de sucesso e falhanço em toda a música improvisada. Eu digo sempre que é como viver um dia da vossa vida, não é um minuto excitante a seguir ao outro; são períodos de excitação e aborrecimento”. Partilha esta visão da música improvisada?

Absolutamente, daí considerar a improvisação uma disciplina/técnica de tão difícil e exigente aprendizagem, pois a regras são permanentemente mutáveis, alteráveis, inesperadas. Nada se pode emendar se houver falha. A atenção tem de estar sempre em overdrive pela complexidade das combinatórias em jogo. Por vezes, com a maior prática e experiência, haverá um fluir pontualmente não consciente, que permitirá um maior usufruto do prazer de ouvir, de fazer… mas não há rede e os buracos são imensos e o jogo, no seu risco, viciante! Claro que frequentemente me interrogo sobre critérios e facilitismos que utilizam a improvisação mais epidérmica como primária porta de entrada no mundo das artes contemporâneas – mesmo que depois se evite o termo “improvisação” como algo de pejorativo, pouco sério, ou indigno… mas não serão esses os riscos de todas as novas formas, de todos os novos conceitos? Competir-nos-á – no discernimento (e na coragem…) - a separação do trigo do joio e saber identificar o porquê, o quando, o como, o para quê…

Que retrato faz da música improvisada feita em Portugal? Como descreveria a evolução nessa área desde os anos 70 até aos dias de hoje?

De maneira algo simplista… quando comecei há quase 40 anos, seria um milagre absoluto encontrar um músico minimamente esclarecido, interessado, curioso, praticante corajoso de tais músicas, independentes de idiomas e/ou modas. Hoje, a nossa associação Granular engloba cerca de 60 praticantes das mais variadas influências ou preferências, assim como existem, de Norte a Sul do País, outros grupos/indivíduos que tentam uma (difícil) dinâmica naquilo que alguns convencionaram de chamar “música viva hoje” ou “novas músicas”. Infelizmente as dificuldades são imensas, as incompreensões e ignorâncias (inculturas?) paquidérmicas, os cargos e as chefias culturais, assim como os opinion makers de serviço, dedicam-se ao apagamento sistemático de qualquer veleidade alternativa, despudoradamente comparando, do alto das suas cátedras pagas por todos nós, desafinações populares com “aberrantes músicas contemporâneas ou outras vanguardas” (Mega Ferreira dixit!).

Para além de trabalhar com a música é também artista plástico e cenógrafo, e autor de banda desenhada. Trabalhar noutras áreas parece ser um desejo constante daqueles envolvidos na música improvisada. Como explica isso? Quando sentiu essa necessidade?

Comecei a desenhar antes de aprender música – o meu pai desenhava e pintava e, além do fascínio pelo desenho, esse seria um bom estímulo. Apesar de ter pretendido um maior investimento nestas áreas, todas as publicações de BD ou aonde ilustrei tiveram existência breve e mortes mais ou menos anunciadas. E, apesar dos prémios que me foram atribuídos enquanto ilustrador ou cartoonista, absolutamente nada significaram numa aparente não dinâmica editorial que passará pelo entendimento de determinados objectos como “artes menores”. Haverá algumas tentativas, haverá mais autores, algumas pontualíssimas edições, haverá até uma bedeteca municipal, mas, proporcionalmente, muito pouco mudou em relação há 30 anos atrás. Um pequeno fait divers acontecido recentemente – foi-me solicitada a publicação de desenhos meus no último número do jornal Les Allumés Du Jazz – edição das discográficas francesas de jazz e afins. Passada uma semana, a editora de BD Zampano, de Paris, que viu os ditos desenhos, contactou-me para colaboração… Nunca tal me aconteceu nesta Santa Terrinha e foi exactamente um processo idêntico que me fez ter uma carreira internacional nas músicas há 30 anos. Pelo que teremos de fazer um paralelo com as novas músicas, com a diferença de a edição discográfica hoje em dia ser muitíssimo mais viável economicamente que a edição em papel graças aos avanços tecnológicos e ao abaixamento de preços. Nada impede no entanto que, apesar do anteriormente dito sobre existirem mais músicos, outras práticas e dinâmicas, a realidade infelizmente continua a ser confrontada com a notável falta de estruturas de acolhimento, o desinteresse mediático, a proliferação de concertos pagos à entrada - o que significa a maioria destes músicos pagarem para poderem tocar! Há 30 anos, sendo menos, até se conseguiam alguns contratos pagos, pois, enquanto música algo “revolucionária”, enquadrava-se melhor no espírito da época…

Apresentou há alguns anos um espectáculo chamado “Senso”, descrito como “um falso concerto e um falso solo”, uma actuação que incluía música, vídeo interactivo, entre outros. O que nos pode contar acerca do conceito desse espectáculo?

Uma deturpação algo humorada e em third degree do “Me, myself and I”… Isto é, a minha decisão de me debruçar sobre mim mesmo, coisa que nunca fizera antes. Utilizando os meus sons, as minhas imagens (de mim próprio), os meus desenhos a partir dessas mesmas imagens. Todo este material em acumulação/sobreposição ao real - eu a tocar atrás de um “scrim” (uma superfície de projecção com várias densidades de transparência). Quase todo o material era manipulado, transformado, pervertido em tempo real, obedecendo a uma estrutura predefinida. Na realidade, tratava-se de um falso solo, porque tinha comigo mais três colaboradores em palco, além das inúmeras repetições de mim próprio. Falso concerto, por saber da muito mais facilitada e imediata aderência do público à imagem que ao som…

Vi-o actuar com John Zorn num ensemble que incluía nomes como Carlos Bica, entre outros. Foi uma actuação curiosa, especialmente para quem assistia. Agrada-lhe este tipo de experiências?

Dependerá do que considerarmos como curioso… É para mim muito raro este tipo de situações. Conheço o Zorn desde 1979, ainda ele tocava nas caves downtown Nova York, ensaiando justamente conceitos como o COBRA. Nunca tocara com ele nem coisas dele, apesar de anteriores convites que falharam por questões económicas. Esta situação ficou-me presente pela energia e entusiasmo de todos os músicos participantes, alguns de áreas substancialmente diferentes das praticadas por Zorn. Pela correspondente reacção entusiasmada do público, que calorosamente enchia a Casa da Música. Por ter sido, quanto a mim, e totalmente isento, a versão mais conseguida do COBRA, de todas as a que me foi dado assistir – incluindo as que fez com os excelentes instrumentistas do seu próprio ensemble! Ele mesmo, no final do concerto, mo confidenciava entusiasmado…

Grande parte da sua actividade como músico fez-se com músicos de outros países, grande parte dos seus discos foram editados em selos estrangeiros, como já referiu há pouco…

A necessidade de encontrar correspondência estética, compreensão, partilha, trabalho enfim… tornou-me um emigrante em part-time. Deveria tê-lo sido em full time pois reconheço agora que haverá uma mentalidade “no hope” que nada evoluiu, castradora, impeditiva de evolução saudável e enriquecedora. Mesmo assim, em derradeira investida num mítico colectivismo luso, constituí a Granular em 2002. Sabia já que nada iria ganhar com isso, antes muito pelo contrário… a família interroga-me para que raio preciso eu disto?… Sabia também das inevitáveis incompreensões, ataques, bloqueios e demais habituais ferramentas do espírito Português — que não faz nem deixa fazer… Mas, graças ao empenho de alguns (poucos) bons e profissionais amigos, à transpiração teimosa, à insistência, lá vamos conseguindo algum espaço no panorama nacional, sem um cêntimo de subsídios e sem um espaço próprio! E aqui reside justamente o meu anterior paralelo entre estes 30 últimos anos, pois a realidade, apesar das maiores quantidade e qualidade dos intervenientes, volta a basear-se na militância, no pagar para tocar, no bater a portas, entregar flyers em mão — já não colar cartazes pois pessoalmente não o considero eficaz… Enfim, tudo o que é possível para furar, para tentar viver e fazer viver estas frágeis e fugazes músicas. Uma dificuldade única se compararmos com outras disciplinas artísticas em paralelismos estético/históricos! Grupos de dança com existência muito mais recente facilmente se enquadram em políticas de subsídios e outros apoios, estatais ou não. Outras artes serão “entendidas” e correspondentemente apoiadas por serem mais visíveis e eventualmente mediáticas, por serem baseadas em “objectos”, movimento e imagens… As novas músicas, senão techno e afins, são sistematicamente preteridas, bastardas, entendidas apenas como complemento, tantas vezes ilustrativo e funcional, justamente das restantes artes…

Em que é que está a trabalhar neste momento. Quais são os seus planos de momento a nível criativo?

Continuar teimosamente a querer fazer aquilo que sei e que as minhas energias ainda me permitam aprender… Cada vez mais interessado na utilização das tecnologias em projectos transdisciplinares, um sistemático maior investimento nessas áreas — Fragment Frame, Senso, Parasita Acumulador, ME(e)AT - o mais recente e ainda in progress, que distanciadamente é referente a relação homem/máquina, sem quaisquer intuitos moralistas, apenas a constatação do prolongamento de uma mítica juventude ou vida mediante processos tecnológicos e/ou artificiais — o gradualmente estarmos a ser mais cibernéticos, prostésicos, implantados, cirurgicamente alterados… Isto para além de me ter dado uma recente e enorme, perigosa pulsão de pintar e montar uma instalação exactamente com elementos do SENSO… juntando o lado artesanal e “passé” de ainda pintar com recentes recursos tecnológicos.

André Gomes
andregomes@bodyspace.net
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