ENTREVISTAS
Pharmakon
Visceralidade real
· 01 Out 2014 · 00:47 ·
Meto “Pharmakon” no Google e aparecem-me filmes, livros, referências àquilo que de facto procuro e muito material farmacêutico. Mais interessante do que tudo o resto, surge-me algo sobre o filósofo franco-argelino Jacques Derrida e a sua perspectiva sobre pharmakon, a palavra grega para remédio e a citação seguinte: “Se o 'pharmakon' é ambivalente é porque constitui o meio através do qual os opostos se opõem, o movimento e a relação que os liga entre eles os reverte ou faz com que um lado se cruze com o outro (alma/corpo, bem/mal, dentro/fora, memória/esquecimento, discurso/escrita, etc.). O 'pharmakon é o movimento, o 'locus' e a peça: a produção de diferença”. Parece adequar-se ao que quero expor e adequa-se, por conveniência ou por habilidade. Tudo isto a propósito do projecto Pharmakon da norte-americana Margaret Chardiet, com quem me foi dito que o mero acto da conversa seria um empreendimento arrojado. Educada, simpática (ainda que não afável), disposta a responder a tudo, Chardiet ainda está na primeira metade da sua terceira década de vida e já ofereceu ao mundo propostas fascinantes daquilo que se pode encarar como um noise acessível, mas enraivecido, que só alguém jovem poderia fazer. Não se fazem coisas como Abandon aos 30. Prestes a lançar Bestial Burden, segundo álbum pela Sacred Bones, e, mais importante do que isso, a dias de actuar no Hard Club, no Porto, no âmbito do Amplifest, Margaret falou-nos de noise, da morte e da operação a que se sujeitou no ano passado e que a obrigou a cancelar o concerto no Amplifest de 2013. O programa do evento da Amplificasom atribui-lhe 30 minutos na Sala 2 do Hard Club. Há que aproveitar cada segundo.
Em dois anos lançaste dois álbuns. Bestial Burden é uma continuação de Abandon ou é diferente?

É definitivamente diferente. Não diria que é uma continuação propriamente, mas existe sob esta estética e este manto auditivo que é Pharmakon, então é um ponto comum. Penso que ambos os álbuns foram criados como uma espécie de mecanismos que permitissem atravessar eventos marcantes da minha vida. Este talvez seja mais pleno do que o anterior.

Referes-te aos teus problemas de saúde ou vai mais fundo do que isso?

Vai mais fundo. Penso que os problemas de saúde que eu tive foram o catalisador que me levou a pensar nestas ideias e nestes conceitos que levaram às letras, à música e à capa do álbum. É algo em que eu já tinha pensado antes, claro, mas nunca me pareceu tão real e tão pessoal e nunca o senti de forma tão forte como depois dos meus problemas médicos.

Referes-te ao enfrentar da possibilidade de morrer?

Claro que pensei nisso antes, mas o álbum é sobre este tipo de desconexão que podes sentir entre ti próprio e que existe apenas na sala privada da tua cabeça que é a tua mente consciente, que não tem uma reflexão, mas que és tu, o verdadeiro tu. E este corpo que a carrega. Pensar na desconexão entre a mente e o corpo é algo que te leva a pensar na morte. Tens esta mente consciente que existe num recipiente que pode falhar a qualquer momento e envelhece e não tens muito controlo sobre aquilo com que te pareces e, ainda assim, é uma tão grande parte do julgamento das pessoas quando te vêem. Não tens muito controlo sobre que doenças é que tens tendência para desenvolver ou que idade vais ter quando morreres. E quando começas a pensar nestas coisas e a pensar na mente e no corpo enquanto entidades separadas podes sentir-te aprisionado num recipiente que tem a sua própria vontade, as suas próprias necessidades e está separado do que tu pretendes enquanto humano. O humano é a mente consciente. O humano é o único animal consciente da sua própria mortalidade. Não em termos instintivos, mas em termos intelectuais.



Como é que uma pessoa lida com essa separação entre mente e um corpo falível e a consequente influência do corpo sobre a mente?

Às vezes parece que tens de acompanhar porque o teu corpo vai mudar quer estejas lá ou não e acho que isso está na base da experiência humana. O que significa ser humano é assistir a isto a acontecer, sentir essa separação, sentir a mudança contigo ou sem ti e que estás a dirigir-te para a inevitabilidade da morte e a debater-te com essa realidade e com as implicações da morte em quem tu és e como vives a tua vida, tudo isso está na base do que é ser humano. Penso que este conhecimento da nossa própria mortalidade dá-nos um sentido de urgência do intelecto, de que temos de alcançar certas coisas, de que temos de nos ligar a outras pessoas. Comigo é assim, pelo menos. O conhecimento desta inevitabilidade, é assim que me afeta, é que sinto a necessidade de criar e de chegar às pessoas e aprender e saber mais e crescer e mudar porque o meu corpo vai mudar com ou sem mim.

Como é que traduzes essa urgência para o teu processo criativo?

Basicamente, quando escrevi grande parte das letras e pensei nas ideias que tinha para os sons do álbum estava numa cama e isso levou a esta separação entre a mente e o corpo. Na minha mente eu devia estar em digressão na Europa, mas tinha esta emergência médica e tinha de ser alvo de uma operação significativa e estava presa à minha cama durante três semanas e meia. E comecei a escrever todas estas letras por causa deste sentido de urgência porque a minha mente, claro, estava ativa. Fomentou e fervilhou e surgiu de dentro de mim. Há muito ritmo, há muita coisa reminiscente da batida do coração. Estava enredado no processo criativo, completamente. Porque foi o processo através do qual lidei com essa experiência.

Alguma vez pensas no desafio que podem ser os teus próximos trabalhos tendo em conta as experiências extremas que levaram ao que ficou para trás?

Sim, mas já faço Pharmakon desde que tenho 17 anos. Estes álbuns são os primeiros disponíveis de forma abrangente, mas já faço isto desde que era adolescente e a minha mente está sempre ativa. Já tenho as minhas ideias para o que quero fazer a seguir, mas para chegar lá há tanto que tenho para aprender. Quando voltar da digressão acho que é nisso que me vou focar, mas é estranho que os dois álbuns sejam o resultado de ocorrências muito extremas pessoalmente. Há tanta vida que vivi antes que me afetou e estou certa de que outras coisas, de formas mais subtis, há outras ideias e conceitos, coisas que quero explorar que resultaram do culminar disto.

Podes falar-me de algumas?

Não quero falar demais do próximo álbum porque está num estado muito infantil e as coisas mudam.



O que é que te levou ao noise?

Assim que ouvi noise pela primeira vez senti algo tão profundo porque respondeu a muitas perguntas que tinha. Tudo o resto que eu estava a criar não parecia certo, não parecia suficiente. E quando ouvi noise sabia que era para mim e a razão era porque era um género baseado na ideia de não ter regras. Baseado na ideia de não ser apenas música, mas também a escrita, a poesia, a letra, as performances, os lançamentos conceptuais, em vez de ser apenas “está aqui um single e as tuas canções”. Criei arte visual toda a minha vida, criei música toda a minha vida, mas as ideias que tinha não pareciam caber numa caixa e quando encontrei noise descobri um meio que era arte e música e que te permitia explorar coisas que nenhum dos dois sozinhos permitiam. Nenhuma destas pessoas que estavam a fazer noise soavam iguais às outras. Não tentavam soar a alguém. Era baseado em bandas que tinham conceitos diferentes para o que estavam a expressar.

Quais foram as primeiras coisas que ouviste em termos de noise?

As primeiras foram coisas como Anenzephalia na editora Tesco, da Alemanha, Whitehouse, da Inglaterra, claro, que foram os criadores do termo 'power electronics', os pais do género, Nicole 12, que é um projeto muito interessante da Finlândia, BLOODYMINDED dos Estados Unidos, Emil Beaulieau, que é incrível. Uma mistura de maioritariamente bandas antigas e depois bandas que comecei a descobrir no género quando comecei a ir a concertos, como Wolf Eyes e Yellow Tears.

Consegues conceber um ponto em que te cansas do noise? Em que precisarás de transcender novas fronteiras?

Não me detenho perante quaisquer fronteiras. É essa a ideia. Não tenho bem a certeza do que estás a perguntar. Parece-me que estás a perguntar se acabarei a fazer algum tipo de música mais fácil. Não com Pharmakon. Talvez venha a ter outras bandas que providenciem esse escape de música divertida, mas Pharmakon é o que está mais próximo do meu coração. Sou eu. Teria de me tornar numa pessoa completamente diferente para Pharmakon mudar. Estou bastante segura de mim então não penso que isso venha a acontecer.

Tens estado em digressão com Swans, certo?

Sim.

Há quanto tempo?

Talvez cinco dias. Já demos cinco concertos juntos, mas a digressão é de cinco semanas.

A questão que eu estava a colocar estava ligada a isso, a como eles, tal como outras bandas, mudaram no tempo e criaram coisas que não eram tão violentas como os primeiros álbuns.

Mas quando os ouves ainda tens a certeza de que são Swans. Será de esperar que qualquer banda que dure tanto tempo tenha uma progressão natural, que mude e seja fluída. Isso é bom, é saudável, é o que deve acontecer. Mas quando ouves, não perguntas o que é, ouves e consegues reconhecer Swans. É muito a sua música. E quando os vês ao vivo é tão pesado. Ainda é tão pesado. Tens razão, talvez não seja tão violento como a era de "Filth" ou "Cop", mas ainda é Swans e é pesado e a sua mensagem ainda é ouvida. Então, é possível progredir e mudar, mas não algo como 'pronto, já não vou fazer este tipo de música, vou fazer pop'.
Tiago Dias
tdiasferreira@gmail.com
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