ENTREVISTAS
Diabo na Cruz
Diabo a sete
· 07 Jun 2012 · 19:41 ·
© Rita Carmo
No ano da graça de 2012, os Diabo Na Cruz surgem com “Sete Preces” (o primeiro single) e outros tantos elementos: B Fachada ainda participou nas sessões de Roque Popular, gravado pelo núcleo duro composto por Jorge Cruz, João Gil, Bernardo Barata, Manuel e João Pinheiro, mas já não acompanha o grupo ao vivo. À sua saída corresponderam as entradas dos portuenses Márcio Silva e Sérgio Pires. E o sete, ao que parece, está a funcionar como um sinal de boa fortuna. Pelo menos é isso que decorre das audições do sucessor de Virou! e da confirmação que se concretiza no palco. Em estúdio e ao vivo voltam a afirmar-se como os genuínos jograis do roque popular, aprofundando o contraste entre o novo e o velho, numa fervilhante sopa da pedra onde apenas não há lugar para o preconceito. Jorge Cruz fala de tudo isto e de muito mais – como agricultura ou jams pimba –, sem se furtar a debater tópicos mais incómodos, sempre com observações acutilantes. Não é só o Nel Monteiro que tem mais tomates que o hardcore da Linha de Sintra.
Uma das coisas que se renovam neste disco é o casamento explosivo entre o rock (por vezes com urgência punk) e as sonoridades tradicionais portuguesas. De onde vem esta química?

Eu diria que o potencial dessa química já estava implícito no trabalho de outros grupos. Os Gaiteiros de Lisboa são um bom exemplo disso. Sem usarem cordas, muito menos instrumentos eléctricos, deixam adivinhar um elemento explosivo na sua música que serviu de inspiração para nós, mesmo antes da banda existir. Há uma parte do nosso trabalho que nasce das entrelinhas de uma certa música popular portuguesa onde descobrimos um legado que pretendemos sirva de mote para podermos ser simplesmente uma banda de rock, neste caso de roque popular.

Quando partiram para este disco havia a intenção de aprofundar ainda mais a fusão entre esse nervo e urgência com as sonoridades mais tradicionais da nossa cultura?

A intenção era conseguir sintetizar a nossa proposta de forma mais coesa e ao mesmo tempo apontar novos caminhos para o que podemos fazer. Este disco tornou-se mais abrasivo e mais intenso com o avançar dos ensaios em correspondência com a nossa urgência e um certo sentimento de indignação diária com que nos fomos deparando. O rock é o cenário da aspiração à mudança, da destruição do velho e da chamada pelo novo, essa dimensão catártica parecia adequar-se aos tempos correntes. E estando nós mergulhados num universo de imagens do interior e de tempos antigos, quisemos extremar o nosso som para que o contraste se adensasse.

Neste disco utilizam os sons do amolador e de foguetes, expressões populares, como “não morremos hoje nem casamos amanhã”. Existe um lado de recolha etno-musical?

Não de uma forma organizada ou académica. Vamos agarrando aquilo a que somos sujeitos e procurando com cada pormenor definir melhor o nosso território. Alguns elementos da nossa música ou das letras entram para nos situar. A ideia é partir, mas para se partir é mais importante descobrir o sítio de onde se parte do que o lugar onde se quer ir parar.

A capa também faz a ponte entre a arte pop e o mundo rural. Pediram alguma coisa específica ao Nuno saraiva, que fez um excelente trabalho?

Sim, o trabalho do Nuno correspondeu totalmente à nossa idealização de uma imagem para este disco. Partimos da vontade de citar o London Calling no meio de montes alentejanos, e o Nuno acrescentou a ideia da terra a ruir e acabou por se chegar a uma imagem simbólica com várias leituras possíveis que é o mais interessante. Queríamos uma capa mais complexa do que a do primeiro disco mas sem perder a capacidade de nos representar e de representar o nosso som.

© Rita Carmo

O B Fachada participou na gravação do disco, mas já não vos acompanha em palco. Foi o último episódio de Diabo na Cruz com B Fachada na formação ou é melhor esperarmos pelas cenas dos próximos capítulos para ver o que acontece?

É compreensível que as pessoas se afeiçoem a uma ideia do grupo com uma determinada formação mas a saída do Fachada fez todo o sentido, apesar de ter acontecido na pior altura, mesmo em cima das gravações do disco. Partilhámos momentos especiais juntos e a nossa intenção é respeitar essas memórias, o que passa por deixá-las ocupar o seu lugar natural. Este grupo tem propósitos muito claros e uma visão que não se confunde com outras. Qualquer que seja a formação no presente ou no futuro vai responder aos mesmos motivos, fazer o que tem a fazer e fechar a loja quando o assunto estiver tratado.

Saiu o B Fachada, mas entraram dois novos elementos: Márcio Silva e Sérgio Pires. De que forma pensas que estas mudanças se vão reflectir no vosso rumo?

Com o Márcio e o Sérgio o nosso som é maior e mais variado, isso já descobrimos, mas ainda falta descobrir outras coisas. Para já, há um grande potencial de jams pimba nos camarins. Tem sido bom para cantar à desgarrada e chegar rouco à hora dos concertos.

A propósito disso: vi no facebook uma foto do Barata e do Gil com o Quim Barreiros e ouvi dizer que vocês têm uma especial estima pelo “Puta Vida Merda Cagalhões” do grande Nel Monteiro. De onde vem o fascínio por estes artistas da Música Popular Portuguesa, tantas vezes alvos de chacota?

Uma parte do nosso trabalho consiste em atravessar a eito o preconceito para obter um grau de aceitação que reforce o nosso auto-conhecimento. Isto é uma parte do que nos tem atrasado relativamente à música de outros países. Foi aquilo que os tropicalistas fizeram nos anos sessenta e décadas seguintes, está na relação da boa música americana com as suas raízes country. A nós interessa-nos o que faz este povo dançar porque temos coisas algo desconfortáveis para dizer e é importante que o leve e o ridículo entrem na equação, se não corremos o risco de nos levarmos demasiado a sério. Esta banda funciona como a Sopa da Pedra, cabe tudo no caldeirão e é para atirar tudo lá para dentro, sendo que o verdadeiro assunto é a pedra e há-de calhar a quem deseje encontrá-la persistentemente.

© Rita Carmo

Ainda a propósito deste hino do Nel Monteiro: soube que o tocaram ou cantaram quando estiveram a tirar umas fotos promocionais no início de Abril, com vista para a Serra de Sintra. Poderemos vir a ouvir-vos tocar o “Puta Vida Merda Cagalhões” nalguns concertos?

Não é uma má ideia. Comprei um disco dele chamado Justiça Popular numa estação de serviço, aquilo é que é um disco revolucionário. As rimas podem ser previsíveis mas têm mais tomates que o hardcore da linha de Sintra.

Nessa sessão fotográfica fizeram umas imagens que metem fardos de palha e um tractor. Algum de vocês se safa nas lides agrícolas?

Estou convencido de que ninguém no grupo sabe o que devia sobre as lides da terra, o que significa que há muito a aprender se nos quisermos retirar para o campo antes do tsunami.

A “Bomba Canção” tem uma grande intro e uma frase que nos deixa ler nas entrelinhas: «Eram moços de ovelhas, deram belos presidentes com queda para presidiários». Os tempos que vivemos actualmente merecem algum comentário para lá do que está mais ou menos explícito no disco, nesta e noutras letras?

Vivemos num tempo em que se pressentem mudanças que todos desconhecem. Não parece provável que o mundo esteja igual daqui a dez anos. Está qualquer coisa para acontecer e ninguém sabe o que é. Procurámos reflectir essa sensação no disco. Por um lado, nós como toda a gente tendemos para um lugar de contemplação passiva perante a realidade, por outro não conseguimos ficar parados, daí que este disco aborde um certo tipo de ansiedade indignada e impotente que é do nosso tempo.

Podemos considerar-vos uma espécie de jograis do roque?

Procurei uma definição para jogral e encontrei «homens de condição inferior que ora cantavam música e poesia alheias, ora eles próprios compunham, para tirarem proveito da sua arte» e parece-me fantástico. Em particular «homens de condição inferior». É o tipo de rótulo que nos enche de vontade de cantar, não é? O nosso desejo é sempre a superação daí que gostemos de partir do chão, e se puder ser ainda mais abaixo, temos todo o gosto em vir da sarjeta.

O vosso nome ainda dá alguns problemas, como chegou a suceder mais no início, principalmente em terras com uma religiosidade pouco esclarecida?

Não me parece. O nome tem sido um factor positivo na divulgação do grupo, deve ficar no ouvido das pessoas e em geral elas parecem simpatizar. A maioria das festas pagãs giram à volta da figura do diabo, é uma imagem constante na nossa cultura.

Vocês têm outras bandas ou carreiras a solo para lá de Diabo na Cruz, mas isto não é um mero projecto secundário nem um combo all-star em que cada qual joga para o seu lado. O todo é mais forte do que a mera soma das individualidades, num projecto coeso e com forte personalidade. Como têm conciliado os vossos outros projectos com Diabo na Cruz, em termos de gravações e concertos?

Toda a gente se desdobra em diferentes direcções mas quando estamos juntos acreditamos que acontece algo de especial. Não sabemos andar zangados uns com os outros nem deixamos coisas por dizer. Temos um motivo comum e funcionamos como gangue, um por todos e todos por um. Por isso não nos aborrecemos e estamos prontos para dar tudo no concerto mais vazio ou no festival mais badalado.

© Rita Carmo

Tive oportunidade de ver o filme Calor e Moscas, em que participas a cantar “Os Loucos Estão Certos”. Como foi a experiência de participar nessa rodagem. Se já tiveste oportunidade de o ver, o que achaste do resultado final?

Ainda não consegui ver o filme mas tive prazer em participar pelas pessoas que estavam envolvidas na rodagem. Em particular o Bernardo “Matador”, que fez um disco maldito e é um grande personagem a quem dedico respeito.

Sendo que nas tuas letras existe um interessante trabalho em redor da língua portuguesa (talvez o mais importante património imaterial que temos), recorrendo nomeadamente a termos que caíram em desuso, gostaria de saber qual é a tua posição em relação ao acordo ortográfico.

É uma posição de simples antipatia. Gosto de palavras antigas e não aprecio a ideia de abrasileirar a escrita. Algumas alterações são razoáveis embora custem a assimilar, outras são submissas o que é historicamente típico do nosso Estado, que sempre foi muito mais submisso do que o povo e por isso nos sujeita aos piores negócios.
Hugo Rocha Pereira
hrochapereira@bodyspace.net
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