DISCOS
Aa
GAaME
· 20 Abr 2007 · 08:00 ·
Aa
GAaME
2007
Gigantic


Sítios oficiais:
- Gigantic
Aa
GAaME
2007
Gigantic


Sítios oficiais:
- Gigantic
Quem acreditava que Drum’s not Dead dos Liars mordia, bem pode manter as mãos dentro dos bolsos.
Tome-se como termos da equação os personagens que bipolarizam Drum's not dead dos Liars: Mt. Heart Attack (o quezilento e inseguro) e Drum (o mais enérgico e produtivo). Imagine-se agora que esses dois se movem muito mais compulsivamente e que vivem afectados por instintos auto-destrutivos – acordaram que deviam medir forças num duelo de arma branca, a ocorrer num cenário tribal onde não é supremo quem tem o mais longo órgão sexual, mas quem lhe atribui o melhor uso. Suponha-se, fantasiosamente, que Dave Sitek (TV on the Radio) aceitara arbitrar o duelo com a sua produção, mas que, nessa precisa altura, vivia um dia mais casmurro (daqueles em que encontra disponíveis na Internet discos caseiros que lhe haviam sido oferecidos para gozo unipessoal) e que se recusou a sofisticar o que fosse. GAaME pode ser a materialização de todas essas hipóteses e estes Aa mais um daqueles colectivos que fazem pensar que Brooklyn é um lugar cavernoso e jurássico, sem deixar de ser subversivamente cosmopolita, à custa da malha que deita a apontamentos musicais mais macabros recapitulados a centros de grande aglomeração populacional que ficam de fora dos roteiros turísticos.

O oculto, tal como escutado ao vudu de apartamento nova-iorquino, privilegia quase sempre a fecundação mais desenfreada de uma atitude no-wave que decompõe ao ponto de corpo residual os vários recursos filtrados – electrónica, um abuso de percussão e vozes que mais parecem machados ensanguentados. Terá sido essa farinha carbonizada a que passou por debaixo da mó dos Aa (diz-se Big A, Little A, mas pode-se também usar Alcoólicos Anónimos), ímpia turminha que inclui no seu arsenal a tal percussão de toda a espécie que tem à proa três bombásticas baterias (ainda assim, metade das que usam os infernais Shit & Shine).

E é praticamente impossível de se antever a localização exacta do trovão que sucede ao que lhe é anterior - para que, mesmo que falhe esse como agente de transformação estética, triunfe sempre surpresa. E essas sucedem-se com uma regularidade surpreendente. “Flag day” é completamente esquizofrénica na vizinhança que estabelece entre um suspense espacial e um par de explosões quase kizomba (será que o bruá de Buraka Som Sistema alcançou a Big Apple?). A “New Machine”, emerge uma natureza mais herética que não destoaria ao lado de Morricone na banda-sonora do segundo capítulo de O Exorcista. A fabulosa “Time in” podia ser a remistura vigorosamente Crooklyn de um tema de Muslimgauze ampliado à escala global. Até à data é impossível confirmar a veracidade da próxima revelação, mas o inconfundível timbre vocal de Tunde Adebimpe (o segundo TV on the Radio aqui referido) parece surgir em jeito de cameo em “Fingers to Fist”. Fica tudo entre lobos.

Bem medido, GAaME satisfaz mais que um CD-r ensaístico, mas deixa a ruminar alguma da fome que um longa-duração deve, por obrigação, apaziguar. É legitimo que os Aa não se queiram entregar de uma só vez (o misticismo NY funciona melhor faseado), até porque a mais medonha demonstração primitiva é aquela que não revela o seu real intuito, contendo-o entre as fronteiras do irracional. GAaME é o naipe de imprevisibilidade que traz entre os dedos um bode que denuncia a paternalidade de Belzebu quando dá coices ácidos e o carácter benigno de algumas criaturas de Myazaki quando retoma a um estado mais lúcido (e aos sintetizadores mais comedidos). Tal alternância qualifica GAaME a ser recebido como uma espécie de irmão mais nervoso e volátil de Drum's not dead (ambos os discos trazem acompanhamento visual integral num DVD anexo). A adesão depende da pachorra que cada um possa ainda reservar para acompanhar os passos alucinados aos que integram o segundo pelotão da bizarra escola de Brooklyn.
Miguel Arsénio
migarsenio@yahoo.com
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