DISCOS
Danielson
Ships
· 08 Ago 2006 · 08:00 ·
Danielson
Ships
2006
Secretly Canadian / Flur
Sítios oficiais:
- Danielson
- Secretly Canadian
- Flur
Ships
2006
Secretly Canadian / Flur
Sítios oficiais:
- Danielson
- Secretly Canadian
- Flur
Danielson
Ships
2006
Secretly Canadian / Flur
Sítios oficiais:
- Danielson
- Secretly Canadian
- Flur
Ships
2006
Secretly Canadian / Flur
Sítios oficiais:
- Danielson
- Secretly Canadian
- Flur
There is something going' round,
it's in this room, it's in the blood,
there is something going' round,
it's in these walls, it's in the blood,
there is something going' round,
it's in these floors, it's in the blood.
- "Southern Paws" (Tri-Danielson, Vol.1 (Alpha))
É com as frases acima transcritas que – logo ao abrir do pano do revelador Tri-Danielson, Vol.1 (Alpha) - Daniel Smith obtém o ambiente certo para as peripécias de cariz religioso que fazem da sua Danielson Famile uma anomalia indie imediatamente reconhecível (mais não seja por motivo do inconfundível tom estridente da voz de Daniel). A preze entoada alternadamente pelo filho pródigo e harmoniosas irmãs Megan e Rachel define em metade de um minuto três dos requisitos básicos para um disco da Famile: o espaço abrigado em irmandade e partilha, a predestinação sanguínea do peregrino e toda uma espiritualidade espontânea que alicerça os primeiros com a simplicidade das contas de somar. Com a convicção risonha de quem abandona imaculado a missa de Domingo, Daniel Smith soma discos capazes de – em doses iguais - sugerir uma moral aplicável e uma atitude punk por via do D.I.Y.. Perante tão práticos resultados, não admira pois que o líder iluminado de toda a criatividade familiar tenha optado por propagar essa fé(zada) aos núcleos mais próximos – e desta vez optou por convidar até à congregação os quatro Deerhoof (a saída de Chris Cohen é póstuma à gravação de Ships), o aprendiz tornado mestre Sufjan Stevens e o fiel e recorrente técnico de som Christiaan Palladino (que, convenhamos, tem o nome apropriado para o lugar que ocupa na Famile). Há motivos de sobra para entender Ships como um disco de tudo ao molho e fé em Deus.
Molho que não é necessariamente desequilibrado ou desconexo – nega isso mesmo as linhas que unem os pontos da palavra Danielson estampada na capa. Antes coeso, integro e substanciado por qualidades que se escutam directamente aos inspiradíssimos arranjos que oferecem as madrugadoras “Ship the Majestic Suffix” e “Bloodbook on the Half Shell” (que, do assobio ao headbanging, constitui um épico à escala do seu mentor). O facto de Sufjan Stevens se encontrar envolvido em Ships podia até fazer suspeitar que os momentos mais brilhantes fossem da sua co-autoria (cenário hipotético que podia transformar o disco presente numa espécie de Come on feel the Vatican aligeirado), mas não se encontram referidas no booklet as músicas em que interveio directamente e podemos apenas acreditar que o seu oboé e flautas estão por toda a parte – tal como a bênção omnipresente da supra-citada “Southern Paws”. O mesmo acontece com Greg Saunier, a versatilidade tornada baterista dos Deerhoof, que pode bem ter sido precioso na instalação de alguns ritmos mais solarengos e na captação da essência de câmara que transborda em Ships (ainda que seja suspeita a sua presença, quando também participa no próximo The Air Force dos Xiu Xiu, que não deixa uma imagem particularmente favorável da Igreja nos Estados Unidos). Enquanto peças enquadradas no colectivo xadrez Danielson, essa comunhão (tantas vezes reflectida nos crescendos corais do disco) também os purifica de serem portadores do peso que os seus nomes representam aos olhos da vigilância indie.
Peso e pressão são sintomas modernos que ficam à porta da arca de Daniel Smith. Podia muito naturalmente o corpo inteiro do cancioneiro duplo Tri-Danielson (divido nas metades Alpha e Omega) forçado uma linha a ser superada por comparação, mas cada passo que se lhe sucedeu tem sido igualmente despreocupado e lúcido. Que outra banda assumidamente cristã se arriscaria a solicitar os préstimos do vicioso produtor Steve Albini para o disco que marca ruptura com a label de sempre (uma Tooth & Nail orientada pelo cariz coincidentemente cristão)? Tal improbabilidade resultou no contagiante caleidoscópio de melodias Fetch the Compass Kids, que, além de ter servido como primeiro capítulo a uma nova fase Danielson (que agora conhece expoente), livrou o colectivo de partilhar catálogo com os meramente acessórios MxPx.
Ships volta a revelar sinais de aperfeiçoamento em termos de maturidade: o elo conceptual corta de vez com a aparência de receptáculo que tinha um disco como A Prayer for Every Hour(tese de curso e disco de arte e ensaio) e agora vivem paredes-meias – sem diferenciação flagrante - a solenidade ponderada do alegoricamente bíblico “My Lion Sleeps Tonight” e a pompa up-tempo de uma “Kids Pushing Kids” que rasga as ondas com uma corpulência imparável. Essa, tal como grande parte das músicas em Ships, cumprem a proeza de terminar em paragens de árdua antecipação e, mesmo assim, reunirem toda a lógica possível (e revelar a capacidade de brincar com fórmulas instituídas). Contudo, o mérito que merece Daniel é por todos os seus acólitos partilhado. Aponta para isso mesmo o modo triunfante como avança a final "Five Stars and Two Thumbs Up" que é reveladora da gratidão que sente Daniel Smith por todos os que contribuíram (nem que apenas com apoio) para que o navio não deixe de ir de vento em popa. Além disso, não haverá forma mais optimista de terminar um disco que três salvas de Thanks ladeadas por um frenesim imenso de instrumentos combinados como uma ovação.
É engraçado pensar que apenas um truncamento separa a entidade Danielson de Daniel Johnston, o genuíno e problemático escritor de canções cuja imensa produtividade caseira mantida na década de 80 fez dele uma lenda. Ambos são fervorosos cristãos, com a diferença de que Daniel Smith tece as suas referências religiosas de forma muito mais sóbria e sem as conjugar com heróis de banda-desenhada e tudo mais. O ano de 2006 passa pelos dois, se atendermos aos documentários que lhes foram dedicados e aos múltiplos destaques que têm merecido. Para assumir definitivamente um plano de igualdade, faltará a Daniel Smith encontrar "Ship The Majestic Suffix" a servir de banda-sonora a um anúncio da Optimus e exigir o banimento dos I Love You But I’ve Chosen Darkness da label que agora o edita, a Secretly Canadian (tal como exigira Johnston a extradição dos Metallica como condição para assinar pela Elektra por altura de Fun, que acabou por ser lançado pela Atlantic e resultar num enorme fiasco comercial).
Nem sequer é necessário um aprofundamento exaustivo nas suas características temáticas - Ships suscita realmente alguns efeitos caracteristicamente cristãos (mais pela vertente Padre Borga do que propriamente pela via sisuda da Eucaristia Dominical). Encontra um transcendental meio termo certo entre o cabaret e convento (que se revelava desastroso personificado por Whoopi Goldberg), promove o alcance que pode ter um esforço conjunto, frisa os prazeres e responsabilidades da entreajuda - o vento favorável abona todos os marujos, uma asneira leva ao fundo todos os tripulantes (tal nunca acontece). Celebra a noção de que para desenvolver algo tão eficientemente lúdico como o festim de vozes - em resposta e contra-resposta - que se escuta em “Did I Step on Your Trumpet” será necessário mais do que uma vontade isolada. A ocasião exige mesmo um dos maiores concentrados de talento que conheceu até aqui 2006. Encontrá-lo dedicado a uma boa causa gera por si só uma enorme satisfação em quem escuta. Ou seja, este tem tudo para ser o disco que faltou ao personagem Ned Flanders na transição para a idade adulta. Todos os outros ainda vão a tempo.
Miguel ArsénioÉ com as frases acima transcritas que – logo ao abrir do pano do revelador Tri-Danielson, Vol.1 (Alpha) - Daniel Smith obtém o ambiente certo para as peripécias de cariz religioso que fazem da sua Danielson Famile uma anomalia indie imediatamente reconhecível (mais não seja por motivo do inconfundível tom estridente da voz de Daniel). A preze entoada alternadamente pelo filho pródigo e harmoniosas irmãs Megan e Rachel define em metade de um minuto três dos requisitos básicos para um disco da Famile: o espaço abrigado em irmandade e partilha, a predestinação sanguínea do peregrino e toda uma espiritualidade espontânea que alicerça os primeiros com a simplicidade das contas de somar. Com a convicção risonha de quem abandona imaculado a missa de Domingo, Daniel Smith soma discos capazes de – em doses iguais - sugerir uma moral aplicável e uma atitude punk por via do D.I.Y.. Perante tão práticos resultados, não admira pois que o líder iluminado de toda a criatividade familiar tenha optado por propagar essa fé(zada) aos núcleos mais próximos – e desta vez optou por convidar até à congregação os quatro Deerhoof (a saída de Chris Cohen é póstuma à gravação de Ships), o aprendiz tornado mestre Sufjan Stevens e o fiel e recorrente técnico de som Christiaan Palladino (que, convenhamos, tem o nome apropriado para o lugar que ocupa na Famile). Há motivos de sobra para entender Ships como um disco de tudo ao molho e fé em Deus.
Molho que não é necessariamente desequilibrado ou desconexo – nega isso mesmo as linhas que unem os pontos da palavra Danielson estampada na capa. Antes coeso, integro e substanciado por qualidades que se escutam directamente aos inspiradíssimos arranjos que oferecem as madrugadoras “Ship the Majestic Suffix” e “Bloodbook on the Half Shell” (que, do assobio ao headbanging, constitui um épico à escala do seu mentor). O facto de Sufjan Stevens se encontrar envolvido em Ships podia até fazer suspeitar que os momentos mais brilhantes fossem da sua co-autoria (cenário hipotético que podia transformar o disco presente numa espécie de Come on feel the Vatican aligeirado), mas não se encontram referidas no booklet as músicas em que interveio directamente e podemos apenas acreditar que o seu oboé e flautas estão por toda a parte – tal como a bênção omnipresente da supra-citada “Southern Paws”. O mesmo acontece com Greg Saunier, a versatilidade tornada baterista dos Deerhoof, que pode bem ter sido precioso na instalação de alguns ritmos mais solarengos e na captação da essência de câmara que transborda em Ships (ainda que seja suspeita a sua presença, quando também participa no próximo The Air Force dos Xiu Xiu, que não deixa uma imagem particularmente favorável da Igreja nos Estados Unidos). Enquanto peças enquadradas no colectivo xadrez Danielson, essa comunhão (tantas vezes reflectida nos crescendos corais do disco) também os purifica de serem portadores do peso que os seus nomes representam aos olhos da vigilância indie.
Peso e pressão são sintomas modernos que ficam à porta da arca de Daniel Smith. Podia muito naturalmente o corpo inteiro do cancioneiro duplo Tri-Danielson (divido nas metades Alpha e Omega) forçado uma linha a ser superada por comparação, mas cada passo que se lhe sucedeu tem sido igualmente despreocupado e lúcido. Que outra banda assumidamente cristã se arriscaria a solicitar os préstimos do vicioso produtor Steve Albini para o disco que marca ruptura com a label de sempre (uma Tooth & Nail orientada pelo cariz coincidentemente cristão)? Tal improbabilidade resultou no contagiante caleidoscópio de melodias Fetch the Compass Kids, que, além de ter servido como primeiro capítulo a uma nova fase Danielson (que agora conhece expoente), livrou o colectivo de partilhar catálogo com os meramente acessórios MxPx.
Ships volta a revelar sinais de aperfeiçoamento em termos de maturidade: o elo conceptual corta de vez com a aparência de receptáculo que tinha um disco como A Prayer for Every Hour(tese de curso e disco de arte e ensaio) e agora vivem paredes-meias – sem diferenciação flagrante - a solenidade ponderada do alegoricamente bíblico “My Lion Sleeps Tonight” e a pompa up-tempo de uma “Kids Pushing Kids” que rasga as ondas com uma corpulência imparável. Essa, tal como grande parte das músicas em Ships, cumprem a proeza de terminar em paragens de árdua antecipação e, mesmo assim, reunirem toda a lógica possível (e revelar a capacidade de brincar com fórmulas instituídas). Contudo, o mérito que merece Daniel é por todos os seus acólitos partilhado. Aponta para isso mesmo o modo triunfante como avança a final "Five Stars and Two Thumbs Up" que é reveladora da gratidão que sente Daniel Smith por todos os que contribuíram (nem que apenas com apoio) para que o navio não deixe de ir de vento em popa. Além disso, não haverá forma mais optimista de terminar um disco que três salvas de Thanks ladeadas por um frenesim imenso de instrumentos combinados como uma ovação.
É engraçado pensar que apenas um truncamento separa a entidade Danielson de Daniel Johnston, o genuíno e problemático escritor de canções cuja imensa produtividade caseira mantida na década de 80 fez dele uma lenda. Ambos são fervorosos cristãos, com a diferença de que Daniel Smith tece as suas referências religiosas de forma muito mais sóbria e sem as conjugar com heróis de banda-desenhada e tudo mais. O ano de 2006 passa pelos dois, se atendermos aos documentários que lhes foram dedicados e aos múltiplos destaques que têm merecido. Para assumir definitivamente um plano de igualdade, faltará a Daniel Smith encontrar "Ship The Majestic Suffix" a servir de banda-sonora a um anúncio da Optimus e exigir o banimento dos I Love You But I’ve Chosen Darkness da label que agora o edita, a Secretly Canadian (tal como exigira Johnston a extradição dos Metallica como condição para assinar pela Elektra por altura de Fun, que acabou por ser lançado pela Atlantic e resultar num enorme fiasco comercial).
Nem sequer é necessário um aprofundamento exaustivo nas suas características temáticas - Ships suscita realmente alguns efeitos caracteristicamente cristãos (mais pela vertente Padre Borga do que propriamente pela via sisuda da Eucaristia Dominical). Encontra um transcendental meio termo certo entre o cabaret e convento (que se revelava desastroso personificado por Whoopi Goldberg), promove o alcance que pode ter um esforço conjunto, frisa os prazeres e responsabilidades da entreajuda - o vento favorável abona todos os marujos, uma asneira leva ao fundo todos os tripulantes (tal nunca acontece). Celebra a noção de que para desenvolver algo tão eficientemente lúdico como o festim de vozes - em resposta e contra-resposta - que se escuta em “Did I Step on Your Trumpet” será necessário mais do que uma vontade isolada. A ocasião exige mesmo um dos maiores concentrados de talento que conheceu até aqui 2006. Encontrá-lo dedicado a uma boa causa gera por si só uma enorme satisfação em quem escuta. Ou seja, este tem tudo para ser o disco que faltou ao personagem Ned Flanders na transição para a idade adulta. Todos os outros ainda vão a tempo.
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