DISCOS
Patti Smith
Land (1975-2002)
· 02 Set 2002 · 08:00 ·
Patti Smith
Land (1975-2002)
2002
Arista


Sítios oficiais:
- Arista
Patti Smith
Land (1975-2002)
2002
Arista


Sítios oficiais:
- Arista
Uma das mais importantes mulheres na história do rock, Patti Smith é uma figura impossível de esquecer em qualquer compêndio sobre a cultura pop (rock) do século XX. Esta compilação retracta os mais de 25 anos da ligação da poetisa, activista, cantora e crítica de rock à Arista Records, e permite um excelente olhar de síntese sobre uma obra muitas vezes esquecida pelas grandes massas, mas incontornável. Pertence àquele grupo de mulheres que acreditam, que o sorriso e as formas do corpo não são as principais armas no mundo da música, até porque muitas vezes essas mesmas “curvas” servem para esconder algo que está mal por trás, os sons.

Patti Smith nasceu em 1946 numa região a Sul de Chicago, de onde recorda o mau inglês que se falava por essas bandas. Ainda hoje, confessa que as más palavras que pronúncia provêm daí. Em meados de 60 esteve uma pequena temporada em Paris, onde ganhava dinheiro a tocar nas ruas. Diga-se a titulo de curiosidade que foi em Paris que conheceu o fotógrafo Robert Mappelthorpe, que assinaria a capa do seu primeiro álbum, numa fotografia histórica. Em finais de 60 vai viver para Nova York, onde ainda sob o estigma dos Velvet Underground e seus seguidores, um grupo de rockers (incluindo Smith) transporta de novo a cidade para a berlinda. Antes de se tornar cantora, Patti Smith ocupava o seu tempo como vendedora numa livraria, frequentes incursões no jornalismo musical, a escrita de peças de teatro, e a poesia.

Os New York Dolls, uma das bandas sensação da primeira vaga daquilo a que se viria a chamar depois “punk”, actuavam regularmente no Mercer Arts Center. Depois desse local fechar, um pequeno barzinho na zona Sul de Manhattan estava prestes a ter o seu lugar na história. Foi aí, já com a designação de CBGB (iniciais de country, bluegrass e blues) que começaram a actuar uma nova vaga de artistas. Desde os Ramones ao Talking Heads, passando por Jonathan Richman, Blondie ou Television e, claro está, Patti Smith. Patti Smith era um veículo de solidificação entre as letras e as diversas manifestações da cultura de vanguarda e o som rock cru e minimalista que tomava de assalto uma série de projectos emergentes. Foi a constante presença no CBGB que fez que a frequente visita de Clive Davis (da Arista Records) – o mesmo que descobriu Alicia Keys - o levasse a assinar a cantora da nova geração por uma multinacional. “Horses” o álbum de estreia é então editado e gravado ainda em 1975, sendo um dos mais importantes momentos da história do rock de 70. Na capa, a mulher era apresentada nas esferas do rock como até então nunca o havia sido, com uma roupa “à homem”, buço e completamente despenteada. Na produção encontrava-se nem mais nem menos que John Cale. A herança Velvetiana estava assegurada e o termo “punk” já circulava por aí...

O resto da história pode resumir-se em algumas palavras. Patti Smith continuou a editar discos, com uma pausa entre 1988 e 1996 para o casamento (com Fred Smith, ex-MC5) e dedicação à família. A despedida foi dada num concerto para 70 mil pessoas, no Outono de 1979. Smith esteve ligada a grandes poetas e foi aceite e venerada na família do rock. Testemunhou o nascimento do punk americano (o álbum “Horses é apontado cronologicamente como o primeiro álbum punk), conseguiu invocar anjos e demónios e chega a 2002 com uma aura de deusa à sua volta.

“Land” a compilação que percorre os 27 anos de carreira da artista recolhe momentos de todas as principais etapas da vida da cantora. O primeiro CD apresenta as músicas mais conhecidas de Patti Smith. Interessante foi a forma como foram escolhidas, foi o público e os fãs da cantora que decidiram o que deveria preencher esse primeiro disco. Assim, está lá tudo o que queríamos ouvir dos oito álbuns da cantora, como “Dancing Barefoot”, “Rock’n’Roll Nigger” (da banda sonora de “Natural Born Killlers”), “Gloria”, “People Have The Power”, “Because the Night” e “Frederick” e mais umas quantas. Inclui também uma versão interessante de uma música de Prince, “When Doves Cry”. É portanto um CD de cariz mais “tradicional”. O segundo, é preenchido por uma série de pequenos mimos e raridades. Nele incluem-se o primeiro single, “Piss Factory”, maquetas de “Redondo Beach” e “Distant Fingers”, bem como interpretações ao vivo, uma delas de espectáculos de 2001 e 2002. A caixa que acompanha os CD’s (“digipack”) respeita as formas dos discos da cantora, e é de notável bom gosto. No interior, o inlay apresenta uma série de manuscritos e fotografias que documentam em 36 páginas os 27 anos percorridos pelo disco, e inclui ainda algumas palavras da autoria da jornalista musical Susan Sontang

Esteve sempre longe do grande público, à excepção da canção “Because the Night”, co-escrita com Bruce Springsteen que deu à cantora fama global (mas que a fez recuar para o seu cantinho logo de seguida), e não é por isso difícil falar da música de Patti Smith. Tão intensa como o amor, tão violenta como um murro no estômago, mas por vezes tão doce como um gelado, tão estimulante como o sexo. Uma voz crua, única, pesada mas que nas baladas (?) atinge uma beleza infindável. Músicas feitas de paixão e entrega como tão poucas vezes se vê, plenas de um sentido de urgência, ousada no conteúdo e nas formas (leiam-se algumas das letras!). Uma identidade intelectualmente vitaminada, que estava bem distante (para melhor) do que os seus primeiros contemporâneos atingiam. Músicas de vanguarda, ligadas às mais diversas artes, com frequentes tiros pelo “spoken word”.

Uma música extremamente rude e dura, mas incrivelmente estimulante e acessível. Um mergulho nestes sons fazem-nos regressar ao passado. Mostram-nos momentos que a história não pode ignorar nem esquecer. Fazem-nos mergulhar no punk, na afronta ao sistema (mesmo assim não muito praticada por Smith, ao contrário de outros contemporâneos). Mas que continua a revelar cenas de actividade presente, e uma passagem por esta “terra” é indispensável. Uma terra feita de histórias, de textos, de músicas, de fotografias. “Land” é por tudo isto um olhar de síntese essencial. A mensagem chaga até nós, porque a força está com Patti Smith. E com todos os que ouvirem a sua música com a atenção que ela merece.
Tiago Gonçalves
tgoncalves@bodyspace.net
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