DISCOS
Sunset Rubdown
Shut Up I Am Dreaming
· 25 Abr 2006 · 08:00 ·
Sunset Rubdown
Shut Up I Am Dreaming
2006
Absolutely Kosher


Sítios oficiais:
- Absolutely Kosher
Sunset Rubdown
Shut Up I Am Dreaming
2006
Absolutely Kosher


Sítios oficiais:
- Absolutely Kosher
Breve história do rock nasal Capítulo CLXII – O superlativo período iluminado de Spencer Krug

Na escala que mede a ascensão de Spencer Krug, Fevereiro do ano passado já parece um mês irreversivelmente distante. Com a discrição própria dos lisonjeiros sete euros e meio do bilhete, eis que, numa noite desse Fevereiro, um singular all-star do indie canadiano testava a estabilidade às nem sempre estáveis placas tectónicas que servem de palco à Zé dos Bois. Depois de expurgado todo o fervor religioso à barba ruiva do pontífice dos Frog Eyes, Carey Mercer, e como que para recompensar o sono de ter resistido a Strugglers (apenas Randy Bickford), podia o indicador dar-se ao luxo de percorrer os presentes em palco ao jeito de “quem é quem no actual panorama canadiano”: Dan Bejar, a personificação de Destroyer e intermitente integrante da constelação New Pornographers, Carey Mercer, a pilha de nervos evangelista dos Frog Eyes, e, atrás de um teclado Yamaha vintage – creio - o protagonista do nosso capítulo, Spencer Krug, que há questão de um ano revitalizou o nome da Sub Pop ao encarregar-se de liderar o processo de composição do merecidamente aclamado Apologies to the Queen Mary e que agora rivaliza o seu próprio trabalho com a segunda longa intervenção de Sunset Rubdown – veículo que depende muito mais do momentum criativo de Krug que a matilha que afamou o seu nome.

Muito prometia o tal set de Destroyer que trouxe até ao Bairro Alto uma variante retro de um Mardi Gras boémio (que conhece crónica aqui pelo BS). Expectativas cumpridas, devo ascrescentar. As boas notícias dão conta de que os três muito em breve unirão esforços no projecto Swan Lake. As melhores notícias escutam-se directamente a Shut Up I Am Dreaming, que, traduzido metaforicamente, significa mais ou menos isto:”Atenção, por favor: Spencer Krug acabou de abandonar o calabouço lo-fi do primeiro disco e, com essa manobra de emancipação, confirmar o estatuto de escritor de canções a ter em conta na vigia do horizonte canadiano”. Uma só legenda não suportaria a tradução sugerida. Nem tão pouco será alguém capaz de contorcionar a dimensão de Shut Up I Am Dreaming a um parágrafo.

Muito mudou desde que ganhou pernas a serpente do debute. Pois se há característica que se capta de imediato ao disco que exporta agora a Absolutely Kosher é a sua superfície polida: deixou o output de Spencer Krug de soar como se tivesse acabado de ser captado por um gravador de quatro pistas à solta numa roulotte de cachorros quentes. Passa Shut Up I Am Dreaming a ter a refinada aparência de ter sido produzido num reino “muito, muito distante” e por lá ter sido retocado pelo imaginário de Tim Burton, conceptualmente magnificado pela estrutura da fabular de La Fontaine e projectado na mesma órbita que habita a compreensão lunática de Isaac Brock (o Modest Mouse que, nem por caso, produziu e apadrinhou o disco dos Wolf Parade). A isso, acrescente-se o peso da intertextualidade que parece opor o cepticismo de “Jason Believes Me, You Can’t Believe Your Dreams” - que se escutava ao disco anterior – e todo o voluntariado onírico do disco aqui chamado.

Pese embora o cliché que representa invocar ambos os nomes, não há como ignorar a flagrante influência de David Bowie (fase Low) e os tiques adquiridos a Carey Mercer enquanto pedras de toque em que a voz de Krug cumpre escala. Musicalmente, suporta a lareira da fantasia quase toda a qualidade de lenha: pop barroca, ragtime mortiço, valsa condenada a precipício (sobrevoa “The Men are Called Horsemen There” – se nos alhearmos do seu When someone says fuck me / Someone else says ok - um teor temático próximo daquele que Tom Waits explora em The Black Rider). Independentemente dos alvos que referencia, Shut Up I Am Dreaming é generoso, subtil e agradavelmente imprevisível na selecção de universos que submete à lente microscópica de Spencer Krug. Seja na intercepção do pensamento a uma lesma que, a meia distância do monte Sinai e da lenga-lenga que compõe “I’m Sorry I Sang on Your Hands That Have Been in The Grave”, se interroga sobre se deveria realmente ter dedicado metade da sua existência ao alpinismo. Ou na escrita de um prefácio para uma murder ballad de corte em The Empty Threats of Little Lord - com a guitarra acústica a acompanhar a tormenta do culpado antecipado, uma ladeante slide-guitar a chorar os nódulos de alguém por vitimar e o coro a meio fulgor a presenciar tudo isso.

Fica à disposição de bom entendedor a meia-palavra alegorizada de Shut Up I am Dreaming - como prova de que, para teatralizar um sonho grandioso, não é necessário mergulhar de cabeça em contextos bíblicos ou supra-romantismos. Spencer Krug tem bem medida a perna do seu Songwriting e até onde pode angular o aparato sinfónico a que lhe permite esse dom. Este é um daqueles discos que convida a pressão diurna a derreter-se horizontalmente sobre o feno ou algodão, com a vantagem de nunca o anfitrião delinear as nuvens que desfilam - ocupando-se apenas de servir a brisa que as movimenta. Para isso aponta a ausência de autoridade que sugere a ocultação da virgula entre "Up" e "I". Casam-se as duas palavras que realmente importam. As que elevam o ego a uma viagem de balão que lá por cima se manterá até que alguém ouse quebrar o silêncio e cruelmente interromper a frágil utopia que é Shut Up I am Dreaming.
Miguel Arsénio
migarsenio@yahoo.com
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