DISCOS
Kazumasa Hashimoto
Gllia
· 14 Abr 2006 · 08:00 ·
Kazumasa Hashimoto
Gllia
2006
Noble


Sítios oficiais:
- Kazumasa Hashimoto
- Noble
Kazumasa Hashimoto
Gllia
2006
Noble


Sítios oficiais:
- Kazumasa Hashimoto
- Noble
Uma sequela esperançosa-informativa para um texto de Nuno Catarino (a conhecer em http://www.bodyspace.net/album.php?album_id=548):

Não se sabe ao certo qual será realmente a ocupação daquela que namora o Fim do Mundo. Suspeita-se que atenda carinhosamente às ameaças e colapsos nervosos do parceiro e que o convença a adiar a sua consumação na medida do possível. Quando os tumultos da relação já ultrapassam as paredes da casa, justifica-se perante os vizinhos Armagedão e Holocausto com o optimismo apocalíptico de Michael Stipe: ”É o fim do mundo tal como o conhecemos e sinto-me bem com isso”. Nós também – The Lie Lay Land provocou mossa o ano passado. Nem que seja por ser passível de uma interpretação literal que proporcione cenários como este, a enigmática entidade musical que dá pelo nome de World’s End Girlfriend não enublará mais um dia que seja sem conhecer a oposição de um arqui-rival. Cornelius estava ocupado, tal era o empenho dedicado à demanda por mais e obscuros coleccionáveis do universo sci-fi Planeta dos Macacos. O estilo festivo de Zongamin (Susumi Makai) não se enquadraria à solenidade que exige confrontar o Fim do Mundo. Kazumasa Hashimoto nem sequer constava da lista de perfilados (embora Yupi e Epitaph já fossem indício dessa condição), mas também não foram mãos convencionais as que extraíram a espada do Rei Artur aos anos percorridos em maldição. Posto isto, acabou por recair sobre Hashimoto a responsabilidade de servir como antídoto ao negrume do Fim do Mundo. A unir o percurso de ambos surge a irmandade que implica a partilha da alçada comum da label Noble e o facto de num passado recente Hashimoto ter cedido o seu piano – de Hamelin, por certo – a prestações ao vivo de World’s End Girlfriend. Não será só George Lucas a conhecer os meandros às tragédias clássicas.

Que torna então as duas nemesis tão dispares entre si? A distância que separa a noite do dia. Um Inverno cerrado dos primeiros sinais de Verão (a temperatura do texto do Nuno Catarino era negativa). Um cenário aparentemente desolador de uma promessa eminente de esplendor. O tom hibernal de WEG apraz-se a preencher as horas à esquerda do a.m. nos relógios digitais, enquanto Hashimoto se ocupa de lapidar o mosaico sonoro que serve na perfeição as horas p.m.. A aproximá-los, muito provavelmente a capacidade para a jardinagem aprumada de atmosferas que, desde cedo, assumem uma desenvoltura narrativa espontânea. É essa que diminui a rigidez do controle alfandegário exercido sobre o que merece passagem entre o estreito que divide a ampulheta nipónica. Ainda que hajam instrumentos envolvidos em ambos os projectos, poucas serão as semelhanças encontradas no uso que lhes é atribuído. Hashimoto toca como que para salvar uma vida. World’s End Girlfriend como que para condenar uma nação.

Depois há um momento em que se escuta “milagre” ao estalar da casca do ovo Gllia: “Mr. Gleam”, prodigiosa deambulação entre o minimalismo e o distanciamento showgazer, que, além de um vincado grau de delicadeza que o liga inesperadamente ao novo Mr. Beast dos Mogwai, termina a flutuar ao lado das guitarras dos Modest Mouse (e, quem me conhece, sabe que não despendo tal comparação todos os dias). Reaproveita-se a elegância todo-o-terreno que os Air deixaram esquecida na Lua e essa destina-se a ser distributivamente pulverizada por piano e outros instrumentos de características clássicas, vocalizações alienígenas e tudo o mais que possa serenar a alma. Passam a apontar para o céu as extremidades das sobrancelhas que se encontram mais próximas do nariz. O sorriso cativado é igual ao que Paul Thomas Anderson filmou ao rosto da “junkie” no final de Magnolia (a flor com que Gllia melhor se identificaria): Charlize Theron materializa-se no lugar da girl next door, os domingos passam a ser dias adoráveis e é tal o fulgor da felicidade readquirida que, por momentos que sejam, Portugal parece a Finlândia.

Sem se escutar às faixas uma linearidade que condicione o terceiro disco de Hashimoto a refrões ou à métrica do verso, sobra terreno para que a fragmentação onírica se revele sob a forma de interlúdios ou partituras de bolso. Daí que seja imprevisível o diagnóstico que determine o trajecto do corpo pluma na sua fall from grace. Alie-se a isso a existência do apocalipse alegorizado de World’s End Girlfriend e fica a uma soma de números primos a constatação de que combinar continuamente os dois universos concede o direito à gestão equilibrante dos sonhos. Ao abrigo da lei da inclusão multiplicada pelas Matrioshkas, pode-se dizer sem arriscar o ridículo: sonhei que sonhei que tinha sonhado. Gllia recusa-se à responsabilidade do despertar.
Miguel Arsénio
migarsenio@yahoo.com
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