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CSS
Cansei de ser Sexy
· 08 Fev 2006 · 08:00 ·
CSS
Cansei de ser Sexy
2006
Trama Virtual


Sítios oficiais:
- CSS
- Trama Virtual
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Cansei de ser Sexy
2006
Trama Virtual


Sítios oficiais:
- CSS
- Trama Virtual
Fossem transpostos para a actualidade, e não sei ao certo como lidaria a indústria com a imaginária eventualidade dos Mutantes conhecerem sucesso à escala dos países de expressão portuguesa. Parece cada vez mais dominante uma sobriedade obediente que, recusando à partida o ridículo de “Meu Refrigerador não Funciona”, certamente impediria um disco como Divina Comédia ou Ando Meio Desligado de proporcionar a uma geração a oportunidade certa de desenvolver gosto pelo non-sense ou pela Tropicália mais efusiva. Os Mutantes não se acanhavam de usar um refrigerador avariado como motivo de lamento satírico-romântico porque não tinham noção do público que viria assimilá-los mais tarde. As Cansei de ser Sexy, ameaça surgida da incessante cena de São Paulo, parecem recuperar parte desse espírito autista e dedicam-se aguerridamente a uma profusão desbocada de mil referências com a mesma despreocupação piromaníaca de Nero. Com a diferença de que era a ingenuidade e a escassez de informação chegada do estrangeiro a reger naturalmente a sonoridade do trio que celebrizou Rita Lee, enquanto que, no caso das autoras do homónimo Cansei de ser Sexy, passa a ser a subversão e cosmopolitismo a assumir o papel das mãos sobre o barro exótico (qualidade adormecida, mas omnipresente no caso das CSS).

Antes sequer de adoptarem o nome de Cansei de ser Sexy – quase sempre exemplificado como um graffiti sobre parede suja -, as cinco miúdas, que formam o colectivo sob o supervisionamento técnico do sexto membro Adriano Cintra, mantinham alguma familiaridade com os meandros da moda, design, cinema e tantos outros meios onde floresce a subcultura paulista. A partir daí, foram-se desenvolvendo laços e cumplicidades que haveriam de resultar nas faixas que a Trama Virtual, divisão da diversificada Trama, tratou de disponibilizar gratuitamente na sua página em formato de MP3 (tal como acontece com centenas de outros projectos). Por obra dos efeitos imediatos de uma faixa como “Ódio, ódio, ódio, cansei C.”, os MP3 pioneiros conseguiram obter um consenso difícil de alcançar entre cibernautas (até os metaleiros aprovavam o simplismo das CSS). Para mais, o alcance popular de uma golpada tão crua quanto “Ódio, ódio, ódio, cansei C.” seria por si digna de um culto menor.

As miúdas não se ficaram por aí. Enquanto potencial alvo de ouvido alheio à euforia que no Brasil abafa Lovefoxxx e companheiras, Cansei de ser Sexy assume-se por obrigação como uma montra mais sofisticada e apurada (a produção é, de facto, uma mais valia a apontar ao debute) do que até aí era notoriamente tosco. Melhor que isso, acusa a evolução sofrida pelas faixas até à data da sua gravação e vale-se disso para tornar apetecível o disco junto de um público além do feminino sub-18 (que não deixa de ser o ideal). Nem todos aceitaram que as músicas mantidas em secretismo canarinho passassem, de um momento para o outro, a servir de banda-sonora ao reality-show protagonizado pela pin-up do momento, Paris Hilton, ao popular jogo The Sims e a toques de telemóveis acedidos em catadupa. Contudo, não deve um exemplar disco pop pagar pelo apelo universal que lhe incutiram com o tempo perdido numa produção de mestre.

Para já e sem equacionar os malefícios de uma curta longevidade eminente, as Cansei de ser Sexy merecem desde já menção honrosa por susterem de pé uma convincente empreitada de electroclash, que continua a não ser mais que uma excelente e apreciável anedota (tal como já era Reggie & The Full Effect para o EMO ou os Brujeria para o metal do hemisfério sul do globo). Além disso, o que já representa certeza no Brasil pode bem cair em graças das riot grrrls que não recusaram a actualização sintetizada (ou, mais especificamente, de quem venera o pós-punk amazónico das Slits), assim que a globalização acabar por estabelecer um pacto com as imoralmente francas e alarves letras das CSS. É preciso escutar “Art Bitch” para crer na frontalidade do ataque apontado ao sistema das galerias de arte. Contudo, a fórmula – e essa, claro está, existe aqui - resulta infalivelmente: Cansei de ser Sexy é o mais completo acervo de granadas pop descartáveis que 2005 conheceu.

Além disso, singra enquanto cornucópia de imprevisíveis referências. Subversivamente, “Let’s make love and listen Death From Above” revela o oposto daquilo que o seu título antecipa: um funk inflamado por adornos Shibuya-Kei, situado no extremo oposto ao rock suado da dupla canadiana DFA1979 (rói-te de inveja, James Murphy). Depois da dupla confissão de amor, estala num magno clímax, paredes-meias com o techno ampliado de Ellen Allien. “Bezzi”, adjectivação apontada a alguém que existe realmente, é cantada em português (em vez do dominante inglês) e não dá por mal gasto o tempo dedicado aos discos de Blondie. As principais debilidades surgem apenas com a segunda metade do disco – flagrantemente incapaz de balancear o objecto – e na colagem demasiado perceptível ao rock feminista das Le Tigre (o flow de Lovefoxxx é demasiado idêntico ao que Sadie Benning usa para incitar à revolta contra a imposição do soutien). Quanto a isso, podiam até seguir o exemplo português dos obscuros O Gafanhoto (tradução de The Locust) e adoptar O Tigrão como nome. Faria algum sentido numa esfera onde tal escasseia (e ainda bem).

Curiosamente, reside no teledisco gravado para “I’m so Excited” das Pointer Sisters, que – nem por acaso - conheceu recentemente uma versão das Le Tigre, o momento determinante da história do canal VH-1 que pode bem servir de paralelo ao efeito Cansei de ser Sexy. Quem estiver atento, reparará que é demasiado gráfico o momento em que a mais nova das irmãos Pointer, June, ascende de um banho de espuma e dá a ver algumas das suas partes mais íntimas (ao que parece, algumas versões foram censuradas, mas ainda há uma semana o alegadamente pudico VH-1 repetiu essa cena). Girl power vintage? Perante o choque que representa o confronto com algo tão obtuso, é relegado a um plano secundário a excelência pop de “I’m so excited”. O mesmo acontece com as CSS. Ninguém compreenderá ao certo como pregões ciosos como Lick, lick, lick my art tit / Suck, suck, suck, my art hole (pós-clímax de “Art Bitch”) terão trepado os calcanhares do mainstream, ao ponto de estarem prontos a tornarem-se icónicas manifestações do underground brasileiro, sem que se denote às praticantes a mínima preocupação perante o compromisso ético que implica as raízes marginais.

Enquanto não se desprenderem os olhos do aparato provocado pelo comportamento “camaleónico” das Cansei de ser Sexy, faltará ouvidos que escutem ao disco todo um lapidado progresso da sua eficácia catchy (“Bezzi” chegou a ser um petardo de garage rock) . Cansei de ser Sexy define sofisticadamente o momento de emancipação de alguém que, por força da Internet, recusou às limitações de um circuito fechado e promove agora um deboche incontestável à escala de um país e território circundante afectado por contágio cibernauta. Hoje São Paulo, amanhã o mundo. Tudo isto na certeza de que não há império que não tenha um prazo. Um dia, há-de se revelar fatídico o nome Cansei de ser Sexy. Por enquanto, viva a festa.
Miguel Arsénio
migarsenio@yahoo.com
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