DISCOS
World's End Girlfriend
The Lie Lay Land
· 01 Dez 2005 · 08:00 ·
World's End Girlfriend
The Lie Lay Land
2005
Noble


Sítios oficiais:
- Noble
World's End Girlfriend
The Lie Lay Land
2005
Noble


Sítios oficiais:
- Noble
Lá ao fundo há névoa, uma espécie de neblina fumada que dissolve a paisagem inteira, o monte deixa de ser claro e a limpidez das formas das árvores e das nuvens perde-se nas imprecisões da visão, talvez sejam crianças a brincar (improvável, estão graus negativos lá fora) ou talvez fantasmas brancos (incerto, não é norma deles andarem acompanhados), talvez seja alguém ou o vento, simples e mudo, uma tempestade maldita a anunciar a chegada ou uma mãe a chamar os amigos do filho para bolachas e marmelada, desde a sala grande de madeira velha a tarde corre impaciente e o tempo é impreciso, uma caixa de música toca em loop num deserto, aparece uma chuva inesperada e o jogo acaba num empate de cinco a cinco, as pedras da calçada estão demasiado escorregadias para correr, devagar, devagar, um acordeão vindo de fora traz alegria, uma janela aberta, um vizinho sem pudor nem preocupação com a meteorologia, na televisão há gente que se apaixona para sempre e é feliz (terrivelmente adormecidos) e lá fora um arco-íris quase parvo, mas ninguém sabe, não pode saber, é fim de tarde mas ainda é cedo, como se fosse madrugada mas ao contrário e só um cão, pequeno e preto, não há candeeiros, não há falsa luz, há movimentos subtilmente dispersos, da janela vê-se o mundo todo, agora o mundo, verde e com árvores, volta a ser cintilante, menos na cidade, à distância infinita de quilómetros o mundo é cinzento e industrial e metálico, quinhentas mil máquinas enormes e feias de motores a trabalhar em simultâneo e uma mulher de saia curta encostada à parede da fábrica que em rabiscos de graffiti promete a revolução na televisão, cedo se esquecem da sua subserviência de formigas, úteis até à medula e gostam de ser felizes desligados da consciência, acendem-se os candeeiros da rua e uma menina de meias às riscas olha pela última vez para trás antes de entrar em casa (ele não veio), a travessia arriscada da ponte é mais insegura quando é escuro e ninguém nos guarda, mesmo que se pressinta a elegância nascente das janelas de claridade (falsa ilusão de gente viva), a turbulência sobrenatural assusta e o frio demove, uma voz resiste à cadência solene das gotas pesadas da chuva, como um silencioso milagre incandescente, persegue o mundo, inebriada com as sombras, as cores, as almas e tudo, tudo, ainda assim nada se altera, mesmo que uma tenda mágica de circo já esteja montada e seja quase Natal, alguém aquece um chá de jasmim, o scone com doce de morango, perfeito (e a manteiga acabou), a porta está fechada (trancada), talvez lá fora esteja a trovejar, talvez seja mesmo uma tempestade, talvez aquele ruído ao fundo seja um trovão a anunciar temporal, a acompanhar um raio brusco de luz que estremece a aldeia perdida na montanha gigante, ou foi só um pesadelo escuro, melancólico, perturbador e quase vazio, esquecido na bruma oculta dos lençóis desalinhados de medo, já passou, já passou, é madrugada nascente, o frio vai embora e leva os tremores involuntários, há pequenas gotas de chuva transparente que pintam a terra, algumas nuvens tímidas encobrem o dia, pequenas abertas, as trevas vão semi-difusas, pássaros inebriados pelo reflexo do lago quase espelho, levanta-se a manhã na redescoberta repetida dos prazeres mínimos quotidianos, a última nuvem foge à chegada do sol, há música (os pássaros atrevem-se), o céu volta à sua glória azul e devolve, brilhante, a esperança de que tudo é possível outra vez, da chuva da noite já ninguém se lembra, pela luz atravessa uma candura sublime, abre-se a janela para um sorriso pateta, é dia claro, vamos acordar.
Nuno Catarino
nunocatarino@gmail.com